Espera fictícia


Como numa produção de cinema, os acontecimentos a seguir podem até ter sidos inspirados pela realidade, mas são frutos primordiais daquela escola chamada ficção, a qual tantos autores frequentaram. Quem relata estes mal chamados fatos urbanos é um senhor centenário, o mais velho morador da Ilha, com a saúde um pouco fragilizada, mas ainda lúcido como poucos costumam ser na experiência urbana deste século XXI.

Foi numa tapera à beira mar que a memória veio feito as tsunamis das metáforas. Recordou-se da juventude nos idos de 1900. As máquinas começando a aprontar das suas e os homens há muito deixando tudo fugir do controle. Aquela Ilha era uma cidade afastada do continente. Sequer a Ponte Hercílio Luz, o cartão postal que agora jaz sob a ferrugem das horas, havia iniciado os seus dias de glória. E Glória também era como se chamava o motivo de sua espera, porque aquele local abandonado um dia fora sua morada, feliz residência abençoada pela natureza. Tendo a oportunidade rara de ler as notícias sobre o navio Titanic à época de seu insucesso marítimo, o decano ilhéu de nome Salvador sofreu ao saber que sua Glória, amor juvenil de tão curta duração, desaparecera com o naufrágio. Ainda assim, uma esperança ínfima de que alguma embarcação tivesse resgatado a jovem enfermeira sempre lhe perturbava as horas; incômodo prazeroso porque permitia que Salvador flutuasse nas águas dos sonhos. Ela era enfermeira, mas deveria ter sido socorrida pelo seu Salvador.

Quando aquele filme chamado Titanic (vencedor de 11 estatuetas na festa do Oscar) passou nas telas dos cinemas da capital, Salvador não teve vontade alguma de assistir. Tinha seus motivos, é compreensível. E, além do mais, com o fim dos cinemas de bairro em Florianópolis, o Senhor da Tapera não aceitava que era preciso entrar num shopping para conferir as exibições da sétima arte; porque público tem de ser cativado e jamais obrigado.

Como todos aqueles cidadãos de seu tempo já foram ter com os anjos, não sobrou qualquer testemunha para garantir a veracidade de seus argumentos. Sua fala apaixonada de uma mulher e uma cidade que já não mais existem podem ser pura ficção e aquela espera fictícia, então, servirá apenas para inspirar algum roteirista de cinema, que por sua vez inscreverá o projeto num edital cultural e, com verbas públicas, será realizado mais um longa-metragem em Santa Catarina intitulado “O Senhor da Tapera”, que, com sorte, umas centenas de pessoas poderão assistir em algum shopping da cidade.

> Crônica publicada no jornal Notícias do Dia em 16/06/2011.