O melhor dos anos, o pior dos anos


2020 foi o melhor dos anos. 2020 foi o pior dos anos. A referência à abertura de Um Conto de Duas Cidades, romance histórico de Charles Dickens lançado em 1859, também se apresenta qual um lembrete do que desejamos esquecer; do que não esqueceremos jamais. De tempos em tempos, uma geração se coloca numa situação limite. E as provações aparecem. Alteramos o conceito de pandemia para sindemia por razões próprias deste contemporâneo. Talvez nada tenhamos de especiais ou melhores ou maiores em relação àqueles que já se reencontraram no pó.

Para além do mistério insuperável, a vida se faz dentro do infinito particular. O universo, ou tão somente a ideia do universo, cabe dentro de mentes e corações. As hipóteses se confundem sem um critério definitivo. No fim das contas, tudo tende a permanecer em aberto. E, quando se fecham, cicatrizes ou feridas expostas têm a mesma importância. A existência se desenrola noutros corpos que ainda respiram: universos diferentes e, por vezes, quase antagônicos. De ilusão se vive e se morre.

Os que podemos também passamos um ano inteiro reclusos, com pouca interação social; distantes de familiares e amigos; ausentes de encontros e comemorações que jamais ocorreram ou foram postergadas. Os que escrevemos também deixamos um legado em interpretações que se querem miúdas ou que se ambicionam épicas. Tanto faz. A cada qual conforme suas habilidades.

A arte se fez companheira porque sempre esteve ali, mesmo contra a crueza do real e a impassividade daqueles que já não se importam mais com ninguém. Livros, filmes, canções, gibis, fotografias, pinturas… na bagagem de cada universo a expansão em multiversos.

O poeta jamais se cansa, a poeta nunca desiste.

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Noite Estrelada Sobre o Ródano (1888): óleo sobre tela de Vincent van Gogh (1853-1890)

Em primeiro plano


O cinema é uma construção atemporal, ainda que tenha data de origem: 28 de dezembro de 1895, quando os Irmãos Lumière exibiram o filme A chegada do trem na estação. O público se assustou com medo da locomotiva em movimento. Desde então, renasce essa vida paralela, escondida entre planos e efeitos de cena.

Película, fita magnética, disco laser… compressão em preto e branco ou colorida, decodificada por matizes indefinidas, processos tecnológicos e, essencialmente, humanos. Mundo em technicolor, cinemascope ou qualquer ideia difusa, quase um efeito de neblina em filmes noir.

O cinema é um eterno paradoxo de si para si mesmo: porque se fez pioneira sendo a sétima das sete artes.

Todas as narrativas reveladas ou subtraídas por um roteiro jamais se medem; distância incalculável entre dois eixos fora de lugar. As personagens são pessoas comuns, reais, famosas, animadas, fictícias, ou até mesmo criaturas de outros planetas, de outras dimensões, de qualquer um dos sete mares conhecidos.

O cinema é uma exasperação conceitual, sintoma de incômodo necessário, inquietação premente e obtusa, dessas que chegam à perfeição possível em deslizes geniais, firulas mercadológicas do acaso. Um mundo de desculpas e réquiens; filosofia do contemporâneo em formato retangular.

Caminhos convergentes, som e vídeo, pintura e literatura, fotografia e arquitetura, sentimento e suor. A história em 24 quadros por segundo.

O cinema é uma vingança social, produto do capitalismo para fins socialistas; fronteira submissa das teorias humanas.

Arte de revolta para revolucionários conscientes, concisos e inconstantes. Guerreiro de vanguarda carregando as armas da tradição.

O cinema é além de tudo isso, muito mais e outro tanto de desconhecido.

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L’Arrivée d’un train en gare de La Ciotat ou L’Arrivée d’un train à La Ciotat é um filme francês de 1895, gravado por Louis Lumière e por Auguste Lumière. Foi um dos primeiros filmes a serem apresentados publicamente pelos irmãos Lumière, na cave do Boulevard des Capucines em Paris, em 28 de dezembro do mesmo ano. No dia 6 de janeiro de 1896, foi exibido Salão Indiano (uma saleta nos fundos de um café), naquela que entrou para a história como a primeira exibição pública comercial de um filme. O bilhete custou 1 franco. (Fonte: Wikipedia)

> Uma homenagem aos 125 anos do cinema, a data simbólica que marcou o início de uma paixão humana.

James Stewart (1908-1997)


James Stewart era um ator de closes. Não que fosse sinônimo da beleza no século XX, mas trazia consigo a expressividade da vida comum, com seus dramas reais. Porque poucos tiveram um rosto tão confiável quanto Jimmy. Disso sabiam os grandes que o dirigiram, como Frank Capra em A Felicidade Não Se Compra (1946) e Alfred Hitchcock em Um Corpo Que Cai (1958).

Em A Felicidade Não Se Compra, o tom otimista de Capra se espraia por todo o rosto de Stewart. A justiça, tão cara às melhores e maiores narrativas humanas, encontra no cinema do diretor estadunidense um momento de reencontro. As duas Grandes Guerras ficaram para trás – ainda assim, se faz necessário rever a própria história. Até mesmo as figuras celestiais (Deus, São Pedro e o anjo Clarence) procuram uma o entendimento da outra, como se a solução para o drama de George Bailey (Stewart) não estivesse pronta. O aprendizado do anjo tem a ver com as nuanças encontradas pelo caminho: eis que Bailey sugere que a felicidade não pode ser comprada quando pensa em trocar a própria vida pela segurança financeira de seus próximos. A sutileza no olhar de Stewart dá conta do recado.

Por sua vez, em Um Corpo Que Cai, Hitchcock coloca a câmera a serviço da história – ou vice-versa. Se o drama desta produção tem origem psicológica, nada mais sensato e estrutural do que centrar a ação no rosto de seu ator mais marcante: seja ao acordar de um sonho vertiginoso ou mesmo no clímax dentro da torre. Nas duas versões da mesma farsa, John “Scottie” Ferguson (Stewart) deixa-se enganar até o inevitável embate consigo mesmo. Assim, supera os medos como se ele próprio estivesse numa queda livre vertiginosa. A dor talvez seja deixada de lado porque rediviva – mesmo que para nunca mais.

Os closes sobre James Stewart ajudaram a definir sua persona cinematográfica num período em que o cinema se transformava na arte do século. Depois de Stewart, dificilmente outro ator carregará sob seu próprio rosto um papel tão singular na história dos filmes.

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Marilyn Monroe (1926-1962)


Ao mesmo tempo em que a história se realiza a partir de pequenos grandes momentos, o cinema se completa com cenas tão modestas quanto nobres. E poucas imagens se fizeram tão intrínsecas à sétima arte quanto o vestido esvoaçante de Marilyn Monroe em O Pecado Mora ao Lado (1955), de Billy Wilder. Claro que não cabe os méritos da cena devem ser compartilhados – o cinema é uma arte de equipe por excelência! –, mas o poder visual da atriz permanece como um fato indiscutível.

Ainda que conhecida e lembrada por papéis quase sempre de garotas ingênuas ou interesseiras, não há como negar: o talento de Marilyn saltava aos olhos. Entrementes, as performances da atriz nas películas soaram ligeiramente parecidas umas para com as outras. Uma realidade característica da chamada Era dos Estúdios, quando fórmulas pré-estabelecidas cerceavam a versatilidade de suas principais estrelas. Logo, a sensualidade ficara qual marca indelével da diva loura enquanto o dinheiro das bilheterias abarrotava os cofres dos seus empresários em Hollywood.

Apesar dos estigmas, Marilyn Monroe eternizou sua relação para com o cinema ao trabalhar com alguns dos melhores diretores em uma curta e produtiva carreira. Wilder repetiu a dose com a atriz no icônico Quanto Mais Quente Melhor (1959). Howard Hawks, um às atrás das câmeras em gêneros tão distintos quanto o faroeste ou as comédias românticas, tirou o melhor da atriz nos divertidos O Inventor da Mocidade (1952) e Os Homens Preferem as Loiras (1953). E Otto Preminger a colocou num papel ligeiramente mais sério no excepcional O Rio das Almas Perdidas (1954). Para além do imprescindível, talvez nem seja preciso elencar as parcerias com outros grandes mestres como Henry Hathaway, George Cukor e John Huston.

Mas se o cinema lhe sorriu, a vida pessoal foi um amontoado de momentos felizes intercalados por períodos atribulados. Norma Jeane Mortenson passou por lares adotivos, lidou com relacionamentos que não deram certo, além de fazer uso excessivo de drogas para dormir – que pode ter lhe causado a morte em 1962, quando ainda estava no auge aos 36 anos. Marilyn partiu cedo demais, mas suas pequenas grandes cenas ficarão para sempre!

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Judy Garland (1922-1969)


O ano de 1939 foi um dos mais icônicos na história do cinema estadunidense. E seria especialmente definitivo para Judy Garland, que protagonizava em technicolor O Mágico de Oz, de Victor Fleming. Mas Garland também estava bem acompanhada: John Wayne aparecia soberano em No Tempo das Diligências, de John Ford; James Stewart, já consagrado, estrelava A Mulher Faz o Homem, de Frank Capra; e, claro, Clark Gable e Vivien Leigh apareciam na mega-produção …E o Vento Levou, finalizado pelo mesmo Fleming.

Mas o clássico musical que imortalizaria a canção Over The Rainbow foi singular tanto na produção hollywoodiana daqueles anos dourados quanto na vida pessoal da talentosa Garland. A atriz, que começara no cinema aos dois anos e meio de idade, praticamente teve a infância e a juventude consumidas pela indústria. Durante a escolha do elenco, alguns afirmavam que Judy, aos 16 anos, era muito velha para encarnar a infante Dorothy dos livros de L. Frank Baum. Mas Louis B. Mayer, chefão do estúdio MGM, apostou na atriz e o resto é história… ainda que não das mais felizes.

A atriz tinha dificuldades em manter o peso e, para sedimentar sua imagem de estrela, o estúdio lhe impôs remédios de emagrecimento. Assim, começou um vício em drogas que lhe acompanharia até o final da vida, época em que se encontrava relativamente afastada do cinema.

Em 1944, quando estrelou Agora Seremos Felizes, de Vincente Minnelli, a atriz de 22 anos já havia participado de 19 produções. Desta vez, Judy quase recusou o papel da adolescente do começo do século, mas Minnelli soube convencê-la naquela que pode ser considerada uma de suas melhores performances em cena. Um ano após o filme, Garland e Minnelli se casaram e, outro ano mais tarde, nasceria a filha do casal: Liza Minnelli, que herdaria o talento cênico e vocal da mãe.

Ainda seria indicada ao Oscar como melhor atriz no filme Nasce uma Estrela (1955), de George Cukor, e como melhor atriz coadjuvante em Julgamento em Nuremberg (1961), de Stanley Kramer – mas o prêmio lhe escapou nas duas oportunidades.

Judy Garland teve três filhos e se casou cinco vezes. Morreu de overdose acidental aos 47 anos. Sua obra permanece com aquele mesmo frescor inocente, trazendo em si mesma uma nostalgia agridoce típica de Hollywood. Os dramas pessoais da atriz são um exemplo clássico da distância entre a vida dentro e fora das telas de cinema. Além do arco-íris, os sonhos se tornam realidade, mas nem sempre do jeito que as pessoas desejam.

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Humphrey Bogart (1899-1957)


Seu rosto de traços fortes não era assim tão belo quanto o de Cary Grant. Sua elegância em cena poderia até não ser tão charmosa se comparada a de Clark Gable. Sua atuação impiedosa nem mesmo ecoava tão emocional como a de Marlon Brando. Mesmo assim, parece haver algo em Humphrey Bogart que falta em todos os outros atores: Bogie era “o cara”. Ou, ainda, “a cara” do cinema estadunidense.

Descoberto no teatro, seus primeiros filmes na década de 1930 não foram grandes sucessos. Ainda que tenha feito boas parcerias com grandes diretores, caso de Beco Sem Saída (1937), de William Wyler, somente na década seguinte Bogart cravaria seu nome na sétima arte. Com as produções Relíquia Macabra (1941), de John Huston, Casablanca (1942), de Michael Curtiz, Uma Aventura na Martinica (1944), de Howard Hawks, e À Beira do Abismo (1946), também de Hawks, a persona cinematográfica de Bogart estava praticamente estabelecida.

Mesmo com as atenções sobre si, o ator encarou o trabalho durante a chamada Era dos Estúdios em Hollywood com extremo profissionalismo. Certa vez, referindo-se aos comentários sobre sua atuação, comentou: “Eu queria dizer aos críticos que eu preciso, de verdade, saber atuar para engolir água sabor caramelo e fazer o público acreditar que é uísque”. Uma frase com a ironia fina ou cinismo requintado que caracterizou boa parte de seus papéis, inclusive aquele que o imortalizou em cena: Rick Blaine, o herói amargurado de Casablanca.

Casablanca abordava a Segunda Grande Guerra enquanto conflito acontecia. E Blaine surgia na tela qual figura rara, aparentando certa indiferença, mas alguém que no seu âmago sabia que a vitória seria dos aliados. Por isso, pela presença de Ingrid Bergman, por ser uma história de amor, por ter um roteiro certeiro com diálogos divertidos, e por milhões de outros motivos, Casablanca e Bogart se tornaram ícones de um período fundamental na história do cinema. Não por acaso, o renomado American Film Institute o elegeu como a maior estrela masculina do cinema norte-americano em todos os tempos. E quem há de discordar?

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