Encontro de Vizinhos


Os vizinhos mal se conheciam até aquele fatídico dia. O ritmo agitado da cidade impossibilitava a convivência de outros tempos. Num prédio de vinte andares, apartamentos eram como pequenas ilhas suspensas no concreto. Difererente daquela Babiblônia dos jardins, ali a beleza estava escondida nalgumas poucas flores, enfeitando as salas dos moradores mais chegados ao contato com a natureza.

E foi ao natural, também, que os vizinhos do 2008 e do 2009 se encontraram na sacada de suas coberturas. Primeiro, o inevitável desconforto. Cumprimentaram-se meio sem jeito, como quando avistamos aquela pessoa de conversa longa e tediosa da qual não conseguimos escapar a tempo. Mas, para os dois vizinhos, agora já era tarde para recuar.

Quem puxou a conversa foi o senhor de idade avançada do 2008. Apresentou-se como aposentado e disse que iria passar aquele último dia do ano em casa. Mas é reivellon!, redarguiu a moradora do 2009 – uma ativa mulher de quarenta e poucos, com uma beleza jovem que lhe retirava uns bons dez ou doze anos. E então convidou-lhe para que viesse a sua festa, ali mesmo no apartamento que ficava a distância de apenas uma parede. O senhor relutou algum tanto, disse que não queria causar incômodo, mas foi demovido da idéia solitária de “virada de ano” ante a insistência da mulher.

À véspera da meia-noite, os vizinhos então tiveram algum tempo para conversar mais tranquilamente desde que ele chegara na festa. Bebiam ambos um saboroso champanhe, quando ela sugeriu para que mergulhassem um morango em cada taça. E assim o fizeram, incluindo um gostinho especial àquela noite.

Os fogos de artifício estavam colorindo o céu, quando ela percebeu que ele saía de mansinho pela porta da frente. Conseguiu alcançá-lo já no corredor, no instante em que ele abria porta do seu apartamento. Não pensem vocês que ela insistiu para que retornasse à festa e lá permanecesse. Não, nada disso. Apenas deu-lhe um beijo no rosto, como fazem os grandes amigos mesmo quando sabem que nunca mais vão se encontrar novamente. O encontro dos vizinhos 2008 e 2009 entrará para a história, assim como tantos outros que aconteceram uma vez por ano naquele mesmo edifício.

> Crônica publicada no Jornal Notícias do Dia em 31/12/2008 e 01/01/2009.

As lembranças de Noel


Quando as pernas começaram a doer, percebeu que já não era o mesmo de outros tempos. Deu consigo mesmo diante do espelho; a barba já se ia grande. Ainda que alguns traços lhe recordassem certas memórias, não se reconheceu de imediato. Caminhou até a sacada coberta de neve (era dezembro no Norte) e contemplou o mundo, como fazia todas as manhãs. E até mesmo o mundo estava mudado.

Que teimosa essa história que não pára!, pensou enquanto coçava a barba branca com a mão direita. Não pôde conter uma pequena lágrima que saltava dos olhos azuis contra sua vontade. Era uma lágrima de 2008 anos, datada desde aquele dia no qual os três magos vieram ter com os pais do recém nascido mais famoso da Galiléia. Mas era também uma lágrima ambígua: sabores e dissabores destes muitos e muitos anos.

Já estavam nos livros os tempos dos imperadores do mundo, aqueles que do centro de Roma pensavam ter toda a antiguidade ao seu alcance. Aqueles dias medievos, de cavaleiros e príncipes, também tornaram-se tão demodè. E que dizer da industrialização do mundo, dividindo ainda mais as classes que, um outro barbudo nascido na Alemanha, dizia existir desde que os humanos pisaram neste planeta?

Mas o que mais lhe tirava as noites de sono eram as lembranças daquele último século. Duas grandes guerras que atravessaram o Atlântico; aproximações poucas e demasiados recuos do Ocidente para com o Oriente (ou vice-versa); uma guerra que não saiu das intenções e, mesmo assim, assustou a todos. Tantas mudanças ou – neologismo indispensável – “mundanças” que deixaram marcas tão díspares quanto um muro de concreto separando uma cidade em dois universos ou uma simples ponte de ferro que uniu a pequena Ilha de Santa Catarina com o continente. Fora um século de construções, tempos em que o bicho inventor (nas palavras de Monteiro Lobato) mostrou a sua face mais bela e, ao mesmo tempo, mais vil.

Será que ainda tem espaço para mim neste mundo?, indagou-se Noel enquanto vestia suas roupas vermelhas. Sem obter resposta, deixou a dor nas pernas de lado e caminhou na direção do trenó que lhe aguardava ao lado da sua casa. Quase ao sair, deu alguns passos para trás. Já ia esquecendo o gorro vermelho que, assim como a sua barba, as crianças insistiam em puxar.

> Crônica publicada no Jornal Notícias do Dia em 24 e 25/12/2008.

Maktub ou Youtube


Até que ponto a internet teria conseqüências relevantes na vida dos escritores e, mesmo, todos os artistas de outras épocas? Escrever é ato solitário, na maioria das vezes. As ferramentas dest’ arte evoluíram sobremaneira desde que a palavra se firmou: a pena, a máquina de escrever, o computador. É sabido que, para o artista das palavras, o meio físico que utiliza pode ter sérias influências na sua obra, tanto no que diz respeito a sua realização quanto no que concerne ao seu legado.

Neste 2008 que tão breve nos acenará com seu adeus histórico mas jamais definitivo (pois não é só 1968 que nunca acaba), está em processo a transposição para o meio virtual de toda a obra conhecida do maior nome das letras nacionais: Machado de Assis. O autor carioca que nos deixou há cem anos possivelmente olharia com seu olhar atencioso este processo que deixa o papel de lado para consagrar a tela dos computadores de todo o mundo ligado na rede de computadores. Talvez o próprio Bruxo do Cosme Velho não imaginasse que seria possível estar próximo de um número tão grande de leitores.

Para o Machado que acompanhou o nascer do século 20, tais revoluções tecnológicas não lhe passariam incólume, tendo por fineza “… catar o mínimo e o escondido” e, assim, divagar “… com a curiosidade estreita e aguda que descobre o encoberto”. O autor que viveu a mesma época do nascimento do cinema, qua presenciou a troca dos bondes puxados por burros para os movidos com eletricidade, identificaria os muitos aspectos de nossa brasilidade e, principalmente, que implicações nos desvios de humanidade a internet possibilitaria. Com muita ironia e munido de seu olhar antropológico , o próprio Machado de Assis poderia colocar um vídeo qualquer no You Tube, site da internet de conteúdo audiovisual tão bem afamado na internet entre os jovens. Talvez aparasse melhor a barba cor de palha seca que tanto lhe imprimia um ar austero e, com o rosto limpo, diria que toda essa onda já começara desde a invenção do humano por William Shakespare. Maktub, reiteraria Machado, fazendo mais uma de suas muitas citaçãos. Agora, porém, seria na internet.

> Crônica publicada no Jornal Notícias do Dia em 12/12/2008.

A dama dos céus


Ela está lá fora agora, ao mesmo tempo em que escrevo estas mal traçadas. Não que seja uma convidada a quem deixo esperando enquanto me divirto na frente da tela do computador. Muito pelo contrário. Ela sabe que seu lugar é solta, na liberdade inata de sua natureza.

Quando sozinha, esporádica, assemelha-se em suavidade às carícias de um grande amor. Onda de refrescância perene, sem hora certa de chegar ou sair. Mas quando acompanhada, principalmente daquelas companhias que não sabem o momento de ir embora, pode ser um tanto abrupta, mas nunca deixa de ser necessária como, veja só, os carinhos do mesmo eterno amor – pois todos o são.

Por estes meses idos e vividos, alguns a estão culpando pelos maus dias que têm se seguido. Ainda que não apresente modos ou face de vilã, acusam-na como a principal responsável de uma tragédia que não lhe diz respeito. Dão a sentença sem ao menos avaliar os pontos obtusos – e todos não têm o direito legal da dúvida?

Em determinadas épocas do ano, ela ainda é mais necessária. Bate-nos uma saudade de sua presença como naquela canção do Roberto na qual ele corre demais. Noutros períodos, costuma deixar muitos por aí mal humorados, feito aqueles que não conseguem assistir ao final do filme, sem saber se o casal principal terminou unido. Alguns querem-na aqui; outros acolá – mais para o Nordeste. Mas ela não faz nem pede cerimônia. Temperaturas altas ou baixas, dias quentes ou de bater queixo: podemos ou não contar com a sua presença; basta ela querer. Ela vem e vai embora como que cumprindo sua função: uma mensageira de recados doces e amargos.

Neste final de ano, ela visitou com mais freqüência algumas cidades catarinenses, principalmente aquelas do Vale, entrecortadas por rios. No meio de tanto destruição e tristeza, o lado humano de todo um país falou mais forte. Suas constantes visitas transformaram-se num alerta do nosso longo caminho de exploração. Mas não, não se trata de vingança. É apenas um lembrete de quem somos e onde estamos. Afinal, é preciso respeitar essa dama dos céus chamada chuva.

> Crônica publicada no Jornal Notícias do Dia em 04/12/2008.