Sonho de uma noite de Primavera


24 de Junho, dia de São João. O que me lembra de uma peça de William Shakespeare. Explico: todo mundo acha que aquela peça “Midsummer night’s dream” é sobre um “Sonho de uma noite de verão“. Não é. No título original, nem mesmo há a palavra summer, mas sim midsummer – que alguns tradutores poderiam pensar ser o meio do verão, só que não.

Descobri a solução deste mistério que sequer sabia existir por meio de uma edição portuguesa intitulada “Sonho duma noite de S. João”, traduzida por Visconde de Castilho. Antes do texto traduzido, há uma interessante explicação sobre a titulação da obra traduzida. Os trechos a seguir, aliás, foram escritos, de facto, por Victor Hugo, e incluídos pelo tradutor. Acompanhem comigo:

Midsummer não significa propriamente o meio do Estio. Não é um prazo incerto do ano“.

Midsummer é um dia de festa, inteiramente britânico, marcado no calendário protestante no dia 24 de junho, isto é, no começo do Estio, correspondente ao S. João no calendário católico“.

Muitos comentadores por desatentarem nesta explicação dada pelo próprio poeta, fantasiaram que por este título ‘Midsummer night’s dream’, quisera ele especificar o prazo em que o enredo da comédia se passava. A prova de que andaram errados neste juízo, é o cuidado com que o autor nos precaveu, por boca de um dos interlocutores, de que a acção se dá no começo de maio. Quando Teseu descobre na mata maravilhosa os quatro amantes por terra a dormir, diz a Egeu que certamente haviam de ter vindo celebrar o rito de Maio, e para isso madrugaram. Portanto, não é, como geralmente se cuida, numa noite de Estio, que Botom (Canelas) e Titânia se enamoraram; foi sim numa noite de Primavera“.

Assim posto, numa adaptação ao hemisfério sul, onde as estações são contrárias às do norte, teríamos o sonho numa noite de outono.

Sao Joao

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A liberdade de Hamlet


Sem papas na língua, Hamlet não chegou ao fundo do poço por dizer o que pensava, mas sim porque já havia percorrido o topo do mundo munido de sua ferramenta mais ilustre: o pensamento. Para o príncipe da Dinamarca o resto foi silêncio, mas para nós aqui do outro lado das páginas o resto estourou como uma bomba moral; e, mesmo sem o gás lacrimejante, as lágrimas escorreram na certeza de uma caminhada humana contraproducente.

A loucura de Hamlet, criada qual o melhor disfarce detetivesco, determina uma mudança no entendimento da realidade. Essa sensação de que algo lhe escapa e de que nem mesmo a fé, o amor, a arte, o progresso ou os sonhos trarão uma satisfação tão sublime quantos as possibilidades sugerem. Rosencrantz e Guildenstern poderiam ser bons amigos, mas o príncipe não busca esperança no outro – afinal, já é muita responsabilidade ter de lidar com a morte de Ofélia, única pessoa em sua história recente por quem teve algum apreço e empatia. A dor dela, para o bem e para o mal, é a mesma daqueles para os quais os sentimentos importam contrários à razão.

Há alguma ingenuidade em acreditar que a vingança do fantasma (também chamado Hamlet e outrora pai do príncipe) se dá apenas por questões políticas ou por ciúme – afinal, seu irmão Cláudio usurpou-lhe o trono e sua mulher Gertrudes num ato vil de regicídio. Oras, o Fantasma, avistado inicialmente por simples guardas quais Marcelo e Bernardo, é o chamado nebuloso pelo qual alguém pode esperar uma vida inteira sem ter por onde. Quis o destino (ou Shakespeare, vá lá) tornar a aparição também visível aos olhos do gentil Horácio, a quem restou a difícil tarefa de relatar o estranho acontecimento ao legítimo herdeiro do trono. Vai daí que a conversa entre Hamlet e o fantasma seja também um ponto sem retorno, no qual as glórias serão deixadas de lado porque a consciência lhe será o único reinado – a digna nobreza que não tem a ver com castelos ou soberania alheia.

Ser ou não ser sugere fim e início. Se há história, sempre haverá drama – e quais de nós estarão livres no desfecho disso tudo? Hamlet, de alguma maneira trágica, descobre a liberdade na ponta de uma espada envenenada porque também não era redenção o que lhe apetecia. Sua partida serena ainda lhe permite profetizar questões menores, políticas até, como a escolha de Fortimbrás que chega da Inglaterra com notícias das quais o príncipe nunca saberá. Se Hamlet seria um grande rei como o próprio Fortimbrás aponta? O resto é imaginação.

hamlet

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Romeus e Julietas em “Nada se cria, tudo se inventa”


As letras, as palavras, as ideias estão aí. O que fazemos com elas e a forma que utilizamos é que as tornam interessantes, tais quais as obras de William Shakespeare. Se a própria convenção admite que o Renascimento (e/ou o Maneirismo) surge para “resgatar” valores da Greco-Romanos, temos de supor que os argumentos de ambos os momentos são os mesmos ou muito próximos uns dos outros.

Com Shakespeare, que Harold Bloom afirma ter “inventado o humano”, não ocorre de forma diferente. O dramaturgo inglês lia as Metamorfoses de Ovídio, além do poeta Petrarca, vide Mercucio em Romeu & Julieta: “Ro sem meu tem rosto de arenque seco. Ah, carne, carne, estás peixificada. Vai deslizar em versos de Petrarca”. Escrevera sobre os romanos, como está evidenciado em Antônio & Cleópatra e os gregos, notório em Sonho de uma noite de verão. E também conhecia um tanto sobre as cidades italianas de Verona e Veneza (Otelo). Resumindo, sua cultura era ampla, chegando até mesmo a flertar com o Novo Mundo em Noite de Reis.

Aos que acusam-no de plágio, convém afirmar que isso é no mínimo um anacronismo, posto que esse conceito de copyright é muito posterior aos tempos de Shakespeare. Romeu & Julieta teve alguma ou grande influência nos textos greco-romanos. Principalmente no que concerne à ideia de destino. Em vários momentos da peça, as personagens têm maus presságios, ainda que tenham vaga esperança que tudo acabará bem.

A Tragédia dos Amantes de Verona, porém, fora escrita anos antes do bardo, contendo as mesmas personagens e a mesma trama, com pequenas alterações. Romeu & Julieta talvez seja a adaptação mais descarada que Shakespeare fez de um texto. Ainda que não se saiba exatamente qual o texto lido pelo bardo, anteriormente já existiam versões de Luigi da Porto (Amanti Veronesi) e Matteo Bandelo com o seu Romeo e Giulietta em prosa. Até mesmo os nomes das duas famílias rivais já eram conhecidos literariamente antes da tragédia do bardo.

Evidentemente que o gênio do inglês de Stratford-upon-Avon não deixou por menos e transformou seu texto numa desconcertante obra de arte, misturando trechos rimados e prosa poética. Shakespeare também concentrou a ação em poucos dias, para que o amor desmedido (?) dos jovens de Verona fosse ainda mais intenso.

Enfim, Romeu & Julieta é obra de inspiração; a peça mais amada do bardo, como afirma a crítica teatral e tradutora Barbara Heliodora, mesmo que não seja sua maior criação. Talvez, o ainda incompreendido (pelos fãs mais ardorosos) filme Shakespeare Apaixonado (1998), de John Madden, tenha demonstrado isso de forma bem interessante. Não à toa, a adaptação se deu pelas mãos de um grande admirador de Shakespeare, o também inglês Tom Stoppard (autor do roteiro de Rosencrantz e Guildenstern Estão Mortos, este sobre o universo não contado de Hamlet).

Particularmente, concordo com a Heliodora.

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Quem escreveu as obras de Shakespeare


Existem registros concretos de que existiu um William Shakespeare nascido em Stratford-upon-Avon e estes se encontram preservados até os dias atuais. O fato é que os dados sobre Shakespeare são poucos. E pouca informação gera milhares de teorias – muitas furadas, é bem verdade. Que ele não tinha cultura para tanto, que o seu texto era muito parecido com Philip Marlowe, Francis Bacon, etc, etc.

Nem mesmo seu rosto é consenso. Há poucos anos, a jornalista canadense Stephanie Nolen anunciou a descoberta de uma pintura de 1603 que seria então o único retrato legítimo do bardo. Depois de ser publicada pelo jornal The Globe and Mail, a reportagem se tornou livro, publicado no Brasil em 2004 com o título O Rosto de Shakespeare. Stephanie Nolen busca identificar em que medida um quadro com o tal novo rosto de Shakespeare, cujo atual dono é um canadense e vizinho da mãe da jornalista, poderia ser considerado como a única pintura do bardo feita em vida. O livro possui uma reconstituição de época interessante e revela alguns detalhes e sugestões de como pode ter sido a vida do nosso prezado Will.

Já o espanhol Fernando Martínez Laínez vai mais pelo lado da imaginação no capítulo “O homem que pode ser Shakespeare” de seu livro Escritores e Espiões, no qual aborda onze autores que teriam uma outra atividade além da escrita. Laínez aponta que Marlowe teria forjado a própria morte para continuar escrevendo sob o pseudônimo William Shakespeare. E tudo porque Marlowe era espião.

Para se responder a questão “Shakespeare era Shakespeare?” é preciso ter fé, acreditar, ponderar e opinar sobre o que temos de informação sobre o tema. No entanto, quaisquer dúvidas sobre a figura do dramaturgo não interferem no que é mais precioso: sua obra. Se é importante saber quem a escreveu? Suponho que sim. A vida de um autor sempre tem importância naquilo que lhe é creditado. Shakespeare escreveu no tempo certo as palavras certas, por isso é tão difícil alguém superá-lo.

Alguém foi Shakespeare, independente se foi o próprio Shakespeare ou outrem. E é esse alguém que é o Shakespeare que conhecemos hoje.

O resto é história. Ou melhor, literatura.

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Shakespeare romântico?


Doce é a tristeza lida nas palavras de um amor que se ausenta. Porque trágica, sentimental e libertadora, tal frase bem poderia abrir um capítulo qualquer de um livro romântico. Enquanto estilo artístico, o romantismo ocupa um determinado período na história da arte (ainda que estas fases não sejam tão claras como naquelas perguntas de vestibular). William Shakespeare poderia ter escrito frase similar em alguma de suas obras – ainda que o fizesse com muito mais talento literário. Algo assim: “Parting is such sweet sorrow, that I shall say good night till it be morrow”. / “Toda despedida é dor… tão doce todavia, que eu te diria boa noite até que amanhecesse o dia“. Apesar dos sentimentos românticos nos textos do bardo serem abordados com seu característico esmero, o mesmo pode ser dito a favor de outros elementos, como os filosóficos, os dramáticos, os históricos, etc… Logo, não cabe ao poeta inglês a identificação qual autor romântico como pede o figurino (aqui um jogo de palavras proposital para com o teatro e a coxia). Ao mesmo tempo, os românticos se inspiraram largamente em Shakespeare para escrever suas histórias, não restam quaisquer dúvidas! Romeu & Julieta é uma obra basilar para a criação romântica, sendo referenciada em diversos momentos nas obras de escritores, pintores e toda sorte de artistas. Além disso, os românticos são responsáveis (não isoladamente, saliente-se) por um reavivamento dos textos shakespearianos. Uma hipótese definitiva: talvez tenha sido somente a partir do romantismo que Sir William se tornou um autor clássico! Por isso, melhor ficar com as palavras dele.

romeus

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Gata em Teto de Zinco Quente (1958), de Richard Brooks


Um tipo de filme que ficou um pouco esquecido com este cinemão de entretenimento pós-1990 foi aquele calcado num texto próprio, quase teatral porque não cotidiano, mas fundamentalmente feito para expor sentimentos que, por quaisquer motivos ocultos, caem na inevitabilidade do conflito humano. Gata em Teto de Zinco Quente (1958), de Richard Brooks, está inserido neste contexto, do qual temos como exemplo dos mais conhecidos a produção Closer – Perto Demais (2004), de Mike Nichols. E qual o filme de Nichols, a película de Brooks também utiliza de grandes astros do cinema estadunidense para contar outra história de fragilidades típicas de uma sociedade burguesa. Mas não confundamos tal assertiva com alguma ideia de crítica ao modelo estamental ou mesmo com a má afamada luta de classes que padece sempre de argumentos mais genuínos e menos ideológicos.

As protagonistas de Gata em Teto de Zinco Quente são, por assim dizer, pessoas levadas por uma determinada onda familiar deturpada, na qual muita coerência se confunde com pouca afetividade. Maggie Pollitt (Elizabeth Taylor), por ser o ente mais estranho naquele mundo particular, é provavelmente a que melhor compreende a situação, mesmo que suas ações estejam limitadas por seu marido Brick Pollitt (Paul Newman), que a ignora não sem padecer de sua própria crueza. Newman e Taylor, por suas vezes, jamais se limitam à força dos diálogos, e falam com o corpo ainda mais do que com palavras. Brooks não se cansa de filmar suas estrelas no mesmo plano, quase sempre com uma das personagens de costas para a outra. Dar as costas, então, como quem retorna à infância, quando não se quer enfrentar nada que seja complicado. Brick, no espaço que lhe cabe dentro do roteiro, nunca submerge à vida adulta porque se lhe parece uma opção interessante ser uma criança aos 30 anos, na superfície preguiçosa dos dias.

As muitas discussões familiares envolvendo ora Brick, ora Maggie, ora o resto da família – sim, “o resto” porque, a princípio, estão alheios à vida do belo e jovem casal – são surpreendentemente encenadas num cenário quase único: a casa do patriarca que está no fim de seus dias. Ainda que seja uma casa sobremaneira ampla, tudo se apequena ante a gravidade quase trágica de seus ocupantes. Por isso, cada elemento em cena – o sofá no qual Brick dorme, a cama com uma grade a prender as motivações da gata Maggie ou mesmo o espelho que reflete as mentiras criadas pelas próprias personagens – está ali por uma intenção dramática tão necessária quanto uma base estrutural coesa. Quando caminham sobre essa quebradiça linha sentimental, até mesmo uma simples conversa pode mudar os rumos dos que imaginavam a tragédia inevitável e consertar o possível, desde que ninguém dê as costas mais uma vez.

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Auto da Compadecida (1955), de Ariano Suassuna


Ariano Suassuna flertava entre o conservadorismo religioso e a modernidade desafiadora. Como quando João Grilo, quase ao final, chama A Compadecida com estes versos: “Valha-me Nossa Senhora, Mãe de Deus de Nazaré! A vaca mansa dá leite, a braba dá quando quer. A mansa dá sossegada, a braba levanta o pé. Já fui barco, fui navio, mas hoje sou escaler. Já fui menino, fui homem, só me falta ser mulher. Valha-me Nossa Senhora, Mãe de Deus de Nazaré”.

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Hamlet: Poema Ilimitado (2003), de Harold Bloom


A peça teatral A tragédia de Hamlet, príncipe da Dinamarca, escrita pelo dramaturgo inglês William Shakespeare provavelmente entre 1599 e 1601, foi urdida por temas universais. Conquanto do ponto de vista ocidental, o texto como que define o imaginário e, para além deste, a própria consciência humana em suas dores e humores. O professor e crítico literário Harold Bloom, um dos maiores estudiosos e entusiastas da obra shakespeariana, busca sentidos e significados históricos neste texto que parece renascer qual fênix a cada nova leitura. E porque a humanidade ainda não encontrou sua possibilidade de convivência, parece ser mais do que legítima esta sentença: a ficção que mais se aproxima da experiência humana é, inevitavelmente, uma tragédia – no sentido da catarse apontada por Aristóteles. Ler ou reler?, eis a questão!

> Hamlet: Poema Ilimitado. Livro de Harold Bloom. Editora Objetiva, 2004.

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Sem limites para errar


Encarar as fronteiras como quem ri do vilão. Uma linha imaginária, quer ela ganhe a concretude de pedras ou fios, só faz atualizar um discurso que está mais vazio do que as praias de Florianópolis no inverno. Do Tratado de Tordesilhas à Faixa de Gaza, do Muro de Berlim à Coluna Prestes: delimitar é, também, aceitar que a derrota existe para os dois lados, como uma história eternamente incompleta ou uma geografia desnecessária.

Não há contexto melhor para uma experiência dramática do que essa ampla ausência de identidade que toma conta do que é contemporâneo. Dêem-me um martelo e um prego que moverei o mundo melhor do que o compadre Arquimedes. E, ao microfone, ouvimos em pleno Largo da Alfândega, no eixo central da Ilha, as sonoras marteladas que repetem incessantemente: Geografia Inutil… Geografia Inutil… Geografia Inutil… (sem o acento mesmo, porque talvez ele não tivesse qualquer utilidade).

Peça, intervenção teatral, show… não adiantar criar divisões porque as fronteiras já ficaram para trás no primeiro parágrafo desta crônica. Para o Erro Grupo não tem conserto musical. Ou tem? De um hit de Rita Pavone pulamos para os berros alucinados da banda The Doors. Geografia Inutil… ainda é uma colagem de caracteres facilmente reconhecíveis porque se permitem ao consumo. Cabem algumas certezas quando o imprevisto é a ordem. O roteiro é um guia, como o é um acorde para o músico. E as mensagens são todas aquelas transitórias. Parece haver coincidências demais: como não relacionar os morcegos de Batman e Drácula (nas performances de fôlego dos atores travestidos) ao voo multi-direcional das pombas tão comuns do Centro desta cidade-ilha.

Talvez os mais antiquados façam alguma cena quando enxergam atores de roupa íntima no seio da urbe. São uns tolos. Não existe nada mais respeitável do que as peças (íntimas ou não) do Erro. Respeito é, sobretudo, enxergar o outro, perceber suas intenções e, ainda assim, dizer – e cantar! – a que veio. Moradores de rua, transeuntes, críticos ocasionais, cronistas: um largo iguala quaisquer tipos de observadores, escondendo-os de si mesmos, transformando-os em co-autores.

Porque o verbo se fez carne, temos esta emoção à flor da pele de não buscar uma moral concreta – apesar desta existir, porque cada um vive como quer. Se não haverá clímax, igualmente as canções cessam sem ter por onde. Não há limites para a arte. Até os pombos sabem disso.

> Crônica publicada no Jornal Notícias do Dia em 18/09/2014.

Alguma margem de erro


Quando o psiquiatra Carl Gustav Jung elaborou o conceito da sincronicidade, ninguém fazia ideia de que o Erro Grupo provocaria reações adversas com sua intervenção Hasard justo num 11 de Setembro, dia histórico dos velho e novo milênios. Mais sincrônico e crônico ainda é algo como a demissão da Ministra da Cultura, Ana de Hollanda, ter ocorrido no mesmo dia, então em 2012, data que o cronista viu Hasard em plena Praça Nereu Ramos, no Centro de Biguaçu.

Nem eu e tampouco Jung previmos tudo isso, mas não deixa de ser um jogo dedutivo que tantas circunstâncias se apresentem concomitantes. E jogos são nossos flertes com o imprevisível. Mesmo num baralho de cartas marcadas, há sempre o momento de perda… Perdemos o controle, ou um sentimento, ou um aspecto simultâneo da realidade que nem chegou a ser. Se Hasard é qualquer coisa muito aleatória, também assim nos parece todo o resto do cotidiano. Mesmo que estejamos juntos, lado a lado, eu e você veremos recortes que serão mais ou menos vagos a partir do que melhor nos aprouver.

Como noutras intervenções, não importa o momento que o espectador/partícipe modifica os rumos da história. E se há uma história, esta é a da humanidade, porque chegamos ao ponto em que tudo se dilui, estejamos atentos aos erros – e ao Erro Grupo – ou não. Como o cidadão não pode fugir da sociedade, a cultura também não escapará ao desavisado transeunte que estava apenas caminhando pela praça para pagar suas contas, ou comprar novos bens (bons ou maus) materiais.

As quatro performances que acontecem em sincronia durante Hasard são infinitas porque também se parecem com os fractais – pois que um fractal pode ser dividido em várias partes, todas semelhantes ao modelo original. E nesse mundo matemático-analítico, que mistura uma ministra demitida, violações sociais históricas (11 de Setembro, seja no golpe chileno de 1973 ou nos atentados aos estadunidenses em 2001), os pensamentos de uma práxis junguiana e tantos outros jogos mais, pouco vale perder ou ganhar. As muitas crianças e jovens que acompanharam a intervenção em Biguaçu foram e são testemunhas de que o divertimento (o motivo mais nobre da cultura) se dá por formas inesperadas. E o inesperado também é sincrônico, e cômico, e econômico na medida em que toda forma contemporânea de arte esconde ou mostra uma face do mercado.

Não interessa que a sociedade não compreenda a sincronicidade. Há muito mais experiência em cada segundo da realidade que qualquer conceito ou crônica urbana possam revelar. E isso é um problema?, você me pergunta. Não, respondo: basta admitir que num jogo é possível perder e ganhar com alguma margem de erro.

> Crônica publicada no Jornal Notícias do Dia em 13/09/2012.