O Artista (2011), de Michel Hazanavicius


Se Martin Scorsese foi omisso com seu A Invenção de Hugo Cabret (2011), o mesmo não pode ser dito, pelo menos quanto aos momentos-chave, deste O Artista (2011), do diretor e roteirista Michel Hazanavicius. Mas isso também não significa qualquer bom sinal para a produção muda e filmada sem cores. Ao contrário da omissão de estilo, Hazanavicius incorre num excesso que chega a soar didático. Como noventa e tantos por cento do filme se realiza apenas com a trilha sonora musical, os diálogos (as caixas de texto, no caso) interrompem para além da narrativa – o que acontecia naquele cinema antes do advento do som – e freiam, inclusive, a criatividade de um filme que se quer original.

Tão ausente de O Artista parece-nos uma intenção maior do que aquela que cabe a uma boa ideia. Ideias, porém, nem sempre têm êxito quando de suas execuções. Ao fazer a homenagem ao cinema produzido no início do século XX, como também o quis Scorsese, a produção deixa uma sensação pouco familiar. Deste modo, a história do ator de cinema mudo que vai à bancarrota com o surgimento dos filmes falados se transforma numa aventura desnecessária.

A imediata comparação com o clássico dos musicais Cantando na Chuva (1952), de Gene Kelly e Stanley Donen, só piora as coisas para a película de 2011. A época desse conflito sonoro teve o registro mais digno e multifacetado que nenhuma outra produção posterior ao filme de Kelly e Donen deveria se dar ao sacrifício de iconizar. Não obstante, tal iconização foi, precisamente, o escopo adotado por Hazanavicius, num contexto dos mais descabidos jamais vistos nesses tempos pós-modernos. Sem vínculos históricos ou de ordem prática, temos um cinema retratado à maneira clássica, ainda que distante de condições indispensáveis como pesquisa cinematográfica e a identificação daquelas sutilezas tão necessárias quando se pretende abordar o passado com alguma dose de nostalgia.

Com tais tropeços admitidos de maneira indulgente pelo diretor, não há como esperar grandes atuações de Jean Dujardin na pele do astro George Valentin ou de Bérénice Bejo como a sensação sonora Peppy Miller. Os coadjuvantes John Goodman e James Cromwell não fazem outra coisa que somente mais do mesmo – situação semelhante com a utilização da a fotografia em preto e branco. A Academia de Artes e Ciências Cinematográficas pode ter se rendido ao filme de Hazanavicius, premiando-lhe com o Oscar mais importante de 2012, mas ainda assim O Artista não permanece para além de uma boa ideia mal aproveitada.

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A Invenção de Hugo Cabret (2011), de Martin Scorsese


Quando deste A Invenção de Hugo Cabret (2011), de Martin Scorsese, surgem algumas dúvidas: 1) Que cinema é este tão diferente das produções dos anos 1970 e 1980?; 2) Onde se encontra o Scorsese que vasculha, tateia, incomoda-se com o desconhecido e, finalmente, exibe o resultado em cenas como as de Taxi Driver (1976), Touro Indomável (1980) e O Rei da Comédia (1983)?; 3) Se convém ao diretor o artifício do conflito – físico, psicológico, social –, por que não aplicar o método consagrado por sua própria cinematografia nas sequências de Hugo Cabret?

Algumas hipóteses: 1) Temos um diretor encantado pela aurora da sétima arte, mas sobremaneira deslumbrado para tornar sua película muito mais do que uma homenagem qualquer; 2) O fascínio de Hugo Cabret pelo cinema em paralelo à habilidade quase genética para com as peças mecânicas em nada se completa num todo coerente; 3) As questões relacionadas ao universo infantil/adulto vivido por Hugo não possuem a sublevação necessária para validar as referências históricas concernentes à época em que se passa a narrativa.

Entrementes, sejamos alguma coisa gentis com Scorsese ao dizer que seu anacronismo proposital tem sua razão de ser. Quando assistimos uma nova Viagem à Lua (1902), de Georges Méliès, desta vez em 3D, compreendemos uma outra dimensão, também, deste seu filme-tributo. Um período de formação cinematográfica, no qual a intuição dos cineastas se tornou o grande legado à arte de fazer e assistir filmes. Enquanto espectadores que todos somos, incluindo aqui o Scorsese e todos os autores desde os irmãos Auguste e Louis Lumière, tivemos ao longo dos anos o cuidado em não admitir a passividade que a imagem em movimento poderia nos incutir.

Ainda que não seja óbvio para as pessoas, assim como para boa parte dos críticos, a grande singularidade do cinema em relação às outras artes se dá, justamente, na participação de um processo que vai da ideia do filme, passando por sua execução e, claro, finalizando com a “leitura” realizada pelo público, seja na tela grande ou nas poucas polegadas de um computador de bolso.

Logo, não parece obra do acaso que a personagem mais intrigante na película de Scorsese seja o dono de uma livraria – aquela pessoa que parece saber o que se esconde por aí. Já Méliès, também presente em cena, como que se isenta de participar na história, deixando que sua obra cumpra esta ação. Entre livros e filmes, projeta-se uma sinestesia incompleta e A Invenção de Hugo Cabret termina como uma obra menor de um diretor que, um dia, foi sério para com todos nós.

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F for Fake – Verdades e Mentiras (1973), de Orson Welles


Orson Welles foi um poeta que fez cinema. Fernando Pessoa, que não fez cinema e sim poesia, confirmou que “O poeta é um fingidor. / Finge tão completamente / Que chega a fingir que é dor / A dor que deveras sente”. E quais os limites entre a sinceridade e o fingimento?

No filme F for Fake – Verdades e Mentiras (1973), o diretor, ator e roteirista usa e abusa das linguagens cinematográfica e poética para contar uma história farsesca com elementos de realidade construída. Falsários e falsificadores apresentam relatos conflitantes e, na maioria das vezes, desconfiáveis. E tudo se dá em ritmo de documentário. Ao espectador, resta crer no que mais lhe convém ou, em caso extremo, duvidar de tudo e de todos.

A obra de mestre Cidadão Kane (1941) antecipava o mundo de hoje, deslumbrado em si e por si mesmo. Verdades e Mentiras inverte tal ideia, quase como uma metáfora nestes tempos de pós-verdades. O final do século XX e este início do XXI trouxeram de forma abrupta a negação como postura intelectual, dado que a dúvida deixou de entusiasmar os inteligentes e foi usurpada por idiotas inconsequentes. A pós-modernidade não nos trouxe uma noção de conjunto da obra e, pelo contrário, fragmentou ainda mais as pessoas nesta má distribuída sociedade do capital.

Ainda que F for Fake aborde essencialmente o mundo da pintura, o dilema “realidade versus ficção” pode ser aplicado à sociedade contemporânea. Ao insinuar que o mundo concreto existe mesmo que seja etéreo, Orson Welles, novamente flerta com o jornalismo e a imaginação. Por que novamente? Oras, impossível conhecer sua trajetória nas artes sem levar em conta o episódio no qual dramatizou o livro A Guerra dos Mundos, de H. G. Wells, numa rádio americana em 30 de outubro de 1938. A transmissão narrou com tons jornalísticos uma fictícia invasão de alienígenas, causando uma dose de pânico em algumas pessoas que, desavisadas ou não, entenderam se tratar de um programa real. Ainda que, possivelmente, não fosse a intenção original de Welles naquela ocasião, seu amplo domínio da dramaturgia trouxe à tona um desejo ardente de alguns seres humanos em se deixar iludir – e as fake news atuais tão somente se aproveitam desta característica fragilizada. Qual um poeta, também o próprio autor foi seu maior fingidor.

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Cidadão Kane (1941), de Orson Welles


Há cineastas de uma obra apenas, mas há aqueles que fizeram uma definitiva – obra-prima, obra-de-mestre, qual seja a titulação – que acabou ofuscando tanto suas obras seguintes quanto suas carreiras como um todo. Para Orson Welles, Cidadão Kane (1941). Impressionam os fatos do diretor-ator-roteirista-produtor ter realizado a obra aos 25 anos e sem jamais ter dirigido um longa-metragem. Um desses casos raros de genialidade cósmica, algo que ultrapassa as possíveis explicações mundanas.

Nunca uma reportagem investigativa rendeu um trabalho tão interessante, ainda que o filme se situe numa fina intersecção entre realidade e a ficção: Charles Foster Kane (interpretado pelo próprio Welles) teria inspiração numa poderosa figura da imprensa estadunidense, o magnata da imprensa William Randolph Hearst. O roteiro montado como os quebra-cabeças da segunda mulher de Kane fica na tênue alternância de uma história consagradora ou de uma tragédia aos moldes clássicos.

Orson Welles era um prodígio antes mesmo de almejar Hollywood. Em sua precoce carreira, fizera fama no teatro ao adaptar obras de William Shakespeare para o cidadão comum. Também fora um ícone no rádio, que ficou à beira do abismo com A Guerra dos Mundos, sua versão radiofônica da ficção científica do escritor britânico H. G. Wells. Mas o tumulto inesperado alçou ainda mais o nome de Welles, que ganhou um contrato para dois filmes com a RKO Radio Pictures, nos quais teria controle total sobre as obras. Era tudo o que o jovem autor precisava. E a história do cinema agradeceria, colocando Cidadão Kane repetidamente em primeiro lugar na lista das produções cinematográficas mais importantes já realizadas – às custas, claro, da carreira vindoura de seu criador. Assim, parece ser necessário assistir Kane saindo de cena justamente ao atravessar um espelho de imagens repetidas e infinitas: Welles ficaria aprisionado em si mesmo dentro daquele seu primeiro e definitivo filme.

Poderoso que era, Hearst fez o que pôde para retirar Welles da mídia – talvez por considerar Charles Foster Kane uma homenagem um tanto quanto ofensiva. Não obstante, os próprios excessos do cineasta lhe impingiram certa impopularidade. Ainda assim, Welles participou de importantes produções como tanto como diretor/ator – vide A Dama de Shanghai (1947), Othello (1952) e A Marca da Maldade (1958) – quanto somente atuando – vide O Favorito dos Borgia (1949), de Henry King, e O 3º Homem (1949), de Carol Reed. Entretanto, nenhuma destas obras obteve o frescor criativo das ideias exploradas por Cidadão Kane, obra que retomou o artesanato de Charles Chaplin e deixou espaço para a consagração do cinema artístico e de entretenimento realizado por Alfred Hitchcock.

O que é Rosebud? A resposta vale uma carreira inteira nos cinemas.

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