O Grande Ditador (1940), de Charles Chaplin


A década de 1930 se desenrolou concomitante à recuperação econômica após o Crash de 1929 e, também, à ascensão do nazi-fascismo na Europa. Por um lado, o capitalismo titubeava em sua crise mais relevante desde que as economias nacionais deixaram a rigidez das próprias fronteiras. Por outro, o comunismo se tonara uma possibilidade concreta e estabelecida a partir da Revolução Russa em 1917. Não obstante, a democracia ao modo ocidental ainda estava em vias de se solidificar, com as ditaduras eclodindo aqui e ali pelos continentes. Os governos de Alemanha e Itália ousavam para além dos próprios limites. E a arte das massas, sobretudo nos Estados Unidos da América (EUA), projetava-se nas telas de cinema. Uma Segunda Grande Guerra se tornou inevitável.

Eis a história recente e imediata que Charles Chaplin acompanhava com seu olhar de imigrante europeu na América do Norte. Quando lançou a película O Grande Ditador (1940), o sucesso de Chaplin estava consolidado nos EUA, sendo possivelmente o mais completo e famoso artista naquela fase inicial da sétima arte. Na esteira da transição entre os cinemas mudo e falado, Tempos Modernos (1936) se encaixou como a pedra mais preciosa lapidada pelas mãos do cineasta inglês.

Tais nuances cinematográficas devem ser levadas em conta quando da interpretação de O Grande Ditador, então o consentimento definitivo pelo autor ao cinema falado/sonoro. Trata-se por óbvio de uma película escrita sob o signo do engajamento social – um manifesto contrário à guerra. O discurso final do barbeiro judeu que toma o lugar do ditador antissemita não deixa dúvidas dos próximos passos que as nações indecisas devem tomar. Porquanto, não desejar a guerra se difere de fugir do combate.

Para efeito de comparação, podemos utilizar outro clássico realizado durante o conflito: Casablanca (1942), de Michael Curtiz. Enquanto na obra de Chaplin há uma dedicada busca pela tomada de decisão, no filme de Curtiz a decisão (do estúdio, do enredo, da direção…) já está tomada. A história e o cinema estadunidense assumem tons mais graves de 1940 para 1942. O ditador terá seu fim no reverso daquilo que buscou, como acontece com todos aqueles que não enxergam para além de si.

O manifesto político de Chaplin não impõe necessariamente um incômodo na dramaturgia de O Grande Ditador. Ao contrário, permite que se leia o filme a partir de sua época. Ainda assim, parece existir algo não muito bem resolvido e desajeitado na narrativa: o roteiro almeja contar duas histórias que se unem forçosamente ao final. Tal situação poderia ser evitada se Chaplin contasse apenas uma história, com duas tramas ocorrendo em paralelo. Essa impressão ganha respaldo na pantomima do barbeiro trabalhando ao som da composição clássica Dança Húngara nº 5, do alemão Johannes Brahms. A performance de Chaplin beira o sublime, mas não se une diretamente ao enredo. Entrementes, qual uma digressão, a cena tem sua razão de ser para colocar em oposição as visões do barbeiro e do ditador. Enquanto o primeiro trabalha inspirado pela música, colocando a arte no cotidiano das relações sociais, o segundo desdenha a melodia, tocando piano sem emoção e de modo burocrático. Mesmo a poesia que nasce a partir da cena na qual o ditador baila solitário com o globo terrestre tem qualquer coisa de alienação. Não por acaso, a dança ganha conotações sexuais, acompanhada por uma trilha sonora não diegética, alheia à gravidade das intenções cruéis da personagem.

A despedida de Carlitos, com seu fraque, cartola e chapéu característicos, dá-se com o barbeiro desmemoriado. E eis que temos Chaplin acenando para o seu legado criativo; conversando com sua filmografia; reiterando a imprevisibilidade do mundo, da arte, da ciência, da política…; retomando ideias que vão e vêm no tempo; terminando com um aforismo/trocadilho extemporâneo: na luta entre a civilidade e a barbárie, o barbeiro não é o bárbaro.

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Tempos Modernos (1936), de Charles Chaplin


Em todas as áreas da criatividade humana, poucos são aqueles que verdadeiramente podem ser chamados de gênios. Não que sejam melhores ou piores do que qualquer um de nós, mas sim dotados de uma percepção e uma compreensão de mundo raras. E este também é o caso de Charles Chaplin, cineasta genial que transformou o fictício Carlitos num símbolo de transformação por meio da inconformidade.

Ainda que tenha realizado outras obras que fogem à temática social, foi com o elegante vagabundo de bigode quadrado, calçados largos, bengala de bambu e cartola curta que sua arte ultrapassou as fronteiras da chamada indústria cultural. Chaplin, por sinal, foi um crítico contundente da industrialização desmedida. Na obra-prima Tempos Modernos (1936), Carlitos surge na tela qual um peão de fábrica, incapaz de se adaptar ao intenso ritmo exigido por seus muitos chefes. Este herói acidental, mesmo sendo vítima da exploração capitalista, decide não ser um mero cidadão conformado, tomando para si ações vigorosas que acredita serem essenciais. Cada escolha sua desafia o espectador; ele acena com sua singeleza para nós, revelando o óbvio que agora já não parece tão obtuso assim. Somos todos como o trabalhador tomado pelo trabalho, quando deveria ser o contrário. E quando encontra uma pobre garota órfã (Paulette Goddard), enfrenta até mesmo a lei na medida em que seus ideais estão em jogo. A jovem vem acompanhada pela dúvida: será que vai dar certo? Carlitos, sem responder pede que a jovem sorria. Uma estrada vazia aponta para possibilidades infinitas. E percorrer este caminho acompanhado de quem lhe quer bem pode ser mais interessante do que ter as respostas. O american way of life ficará para trás, qual um sonho incompleto.

Carlitos aparenta ingenuidade, mas não se trata disso. A personagem compartilha com seu criador algo muito maior: a sensibilidade artística e social. Chaplin compreende que o cinema mudo não trazia na ausência dos diálogos falados uma deficiência a ser resolvida. Ao contrário: o som se lhe torna um parceiro inequívoco. Carlitos, por sua vez, prosperou com a força da mímica e as palavras não lhe trariam novas sensibilidades. E, por isso mesmo, canta em seu adeus às telas uma canção debochada: a Tintina. Uma pantomima ao reverso, cheia de sentidos ocultos ao melhor estilo non sense.

Desde os primeiros curtas-metragens nos Estúdios Keystone, logo na segunda década do século XX, o ilustre vagabundo nunca se deixou enganar pelos outros, mesmo acreditando que todos possuem um lado bom. Deste modo, seu otimismo não o torna um fraco incapaz de encarar a pauperidade dos dias. Pelo contrário, suas habilidades aparecem justamente quando necessárias. Tirando um sarro de policiais e outras autoridades, Carlitos sempre foi um cidadão que exerceu seus direitos com plenitude. Pleno também o era Charles Chaplin: diretor, ator, compositor, roteirista, produtor. Tempos Modernos, último filme mudo do cineasta, apresenta uma crítica à sociedade ocidental que, sob uma determinada perspectiva, pode até mesmo ter se estabelecido como um clichê. Entretanto, o inconformismo para com a realidade que move Carlitos/Chaplin foi um momento tão singular e genial que dificilmente se repetirá.

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Fred Astaire (1899-1987)


Um braço envolvia Ginger Rogers, o outro conduzia a parceira de dança, enquanto Fred Astaire cantava que estava no céu, como um anjo flutuando entre as nuvens acompanhando a melodia, dando um sentido sofisticado à própria ideia de interpretar. As contribuições de Astaire ao cinema, como na cena descrita anteriormente do clássico filme O Picolino (1935), são fundamentais para entender a história da sétima arte, suas nuances evolutivas – o aparecimento do som! – e, ainda, a relevância dos gêneros que consagraram artistas de elevado talento.

A sofisticação de Fred Astaire é genial porque genuína. Se havia uma persona para além do indivíduo, esta era o resultado de uma dedicação técnica sem precedentes e, tampouco, descendentes. Ninguém dançava como ele. E, ainda hoje, sua destreza física parece ser inalcançável, mesmo que Michael Jackson tenha flertado com a mágica do sapateado astairiano. Um exemplo clássico de que o improviso advém de muito preparo e ensaio.

Astaire iniciou a carreira fazendo dupla com sua irmã, quando ambos ainda eram crianças. Após o final da parceria familiar em espetáculos amadores, Fred logo subiu nos principais palcos dos Estados Unidos e da Europa. E não tardou a ser convocado para se eternizar nas imagens em movimento. Assim, o cinema se tornou seu maior parceiro, enquanto Ginger Rogers a sua grande companheira em cena, somando 10 filmes juntos.

Porque compreendia que os filmes musicais precisavam ir além de canções e danças, Astaire fez sua visão prevalecer: as músicas passaram a ampliar os roteiros e as cenas ganharam mais conteúdo, privilegiando o trabalho dos bailarinos e não a ousadia de planos rebuscados ou a edição repleta de cortes. Lição de um mestre que fora aprendida também por outro dos mais importantes atores de musicais: Gene Kelly. Por falar em Kelly, o próprio artista revelou que a sua melhor companhia nas danças não se dera com nenhuma atriz, mas sim com Astaire, no clássico Ziegfeld Follies (1945), em um segmento dirigido por Vincente Minnelli, outro ícone dos musicais nos anos dourados de Hollywood.

Música e cinema foram feitos um para o outro. Basta lembrar que, mesmo na época em que os filmes eram mudos, muitas sessões contavam com um pianista ou um conjunto de músicos acompanhando a cadência da projeção. Difícil foi conter os ânimos na sala de cinema para que o público não afastasse as poltronas e começasse a dançar. Porque a história da arte também sempre teve a ver com ritmo. E, no final da dança, a sofisticação sob medida de Fred Astaire deixa o público no céu.

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Em primeiro plano


O cinema é uma construção atemporal, ainda que tenha data de origem: 28 de dezembro de 1895, quando os Irmãos Lumière exibiram o filme A chegada do trem na estação. O público se assustou com medo da locomotiva em movimento. Desde então, renasce essa vida paralela, escondida entre planos e efeitos de cena.

Película, fita magnética, disco laser… compressão em preto e branco ou colorida, decodificada por matizes indefinidas, processos tecnológicos e, essencialmente, humanos. Mundo em technicolor, cinemascope ou qualquer ideia difusa, quase um efeito de neblina em filmes noir.

O cinema é um eterno paradoxo de si para si mesmo: porque se fez pioneira sendo a sétima das sete artes.

Todas as narrativas reveladas ou subtraídas por um roteiro jamais se medem; distância incalculável entre dois eixos fora de lugar. As personagens são pessoas comuns, reais, famosas, animadas, fictícias, ou até mesmo criaturas de outros planetas, de outras dimensões, de qualquer um dos sete mares conhecidos.

O cinema é uma exasperação conceitual, sintoma de incômodo necessário, inquietação premente e obtusa, dessas que chegam à perfeição possível em deslizes geniais, firulas mercadológicas do acaso. Um mundo de desculpas e réquiens; filosofia do contemporâneo em formato retangular.

Caminhos convergentes, som e vídeo, pintura e literatura, fotografia e arquitetura, sentimento e suor. A história em 24 quadros por segundo.

O cinema é uma vingança social, produto do capitalismo para fins socialistas; fronteira submissa das teorias humanas.

Arte de revolta para revolucionários conscientes, concisos e inconstantes. Guerreiro de vanguarda carregando as armas da tradição.

O cinema é além de tudo isso, muito mais e outro tanto de desconhecido.

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L’Arrivée d’un train en gare de La Ciotat ou L’Arrivée d’un train à La Ciotat é um filme francês de 1895, gravado por Louis Lumière e por Auguste Lumière. Foi um dos primeiros filmes a serem apresentados publicamente pelos irmãos Lumière, na cave do Boulevard des Capucines em Paris, em 28 de dezembro do mesmo ano. No dia 6 de janeiro de 1896, foi exibido Salão Indiano (uma saleta nos fundos de um café), naquela que entrou para a história como a primeira exibição pública comercial de um filme. O bilhete custou 1 franco. (Fonte: Wikipedia)

> Uma homenagem aos 125 anos do cinema, a data simbólica que marcou o início de uma paixão humana.

James Stewart (1908-1997)


James Stewart era um ator de closes. Não que fosse sinônimo da beleza no século XX, mas trazia consigo a expressividade da vida comum, com seus dramas reais. Porque poucos tiveram um rosto tão confiável quanto Jimmy. Disso sabiam os grandes que o dirigiram, como Frank Capra em A Felicidade Não Se Compra (1946) e Alfred Hitchcock em Um Corpo Que Cai (1958).

Em A Felicidade Não Se Compra, o tom otimista de Capra se espraia por todo o rosto de Stewart. A justiça, tão cara às melhores e maiores narrativas humanas, encontra no cinema do diretor estadunidense um momento de reencontro. As duas Grandes Guerras ficaram para trás – ainda assim, se faz necessário rever a própria história. Até mesmo as figuras celestiais (Deus, São Pedro e o anjo Clarence) procuram uma o entendimento da outra, como se a solução para o drama de George Bailey (Stewart) não estivesse pronta. O aprendizado do anjo tem a ver com as nuanças encontradas pelo caminho: eis que Bailey sugere que a felicidade não pode ser comprada quando pensa em trocar a própria vida pela segurança financeira de seus próximos. A sutileza no olhar de Stewart dá conta do recado.

Por sua vez, em Um Corpo Que Cai, Hitchcock coloca a câmera a serviço da história – ou vice-versa. Se o drama desta produção tem origem psicológica, nada mais sensato e estrutural do que centrar a ação no rosto de seu ator mais marcante: seja ao acordar de um sonho vertiginoso ou mesmo no clímax dentro da torre. Nas duas versões da mesma farsa, John “Scottie” Ferguson (Stewart) deixa-se enganar até o inevitável embate consigo mesmo. Assim, supera os medos como se ele próprio estivesse numa queda livre vertiginosa. A dor talvez seja deixada de lado porque rediviva – mesmo que para nunca mais.

Os closes sobre James Stewart ajudaram a definir sua persona cinematográfica num período em que o cinema se transformava na arte do século. Depois de Stewart, dificilmente outro ator carregará sob seu próprio rosto um papel tão singular na história dos filmes.

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Marilyn Monroe (1926-1962)


Ao mesmo tempo em que a história se realiza a partir de pequenos grandes momentos, o cinema se completa com cenas tão modestas quanto nobres. E poucas imagens se fizeram tão intrínsecas à sétima arte quanto o vestido esvoaçante de Marilyn Monroe em O Pecado Mora ao Lado (1955), de Billy Wilder. Claro que não cabe os méritos da cena devem ser compartilhados – o cinema é uma arte de equipe por excelência! –, mas o poder visual da atriz permanece como um fato indiscutível.

Ainda que conhecida e lembrada por papéis quase sempre de garotas ingênuas ou interesseiras, não há como negar: o talento de Marilyn saltava aos olhos. Entrementes, as performances da atriz nas películas soaram ligeiramente parecidas umas para com as outras. Uma realidade característica da chamada Era dos Estúdios, quando fórmulas pré-estabelecidas cerceavam a versatilidade de suas principais estrelas. Logo, a sensualidade ficara qual marca indelével da diva loura enquanto o dinheiro das bilheterias abarrotava os cofres dos seus empresários em Hollywood.

Apesar dos estigmas, Marilyn Monroe eternizou sua relação para com o cinema ao trabalhar com alguns dos melhores diretores em uma curta e produtiva carreira. Wilder repetiu a dose com a atriz no icônico Quanto Mais Quente Melhor (1959). Howard Hawks, um às atrás das câmeras em gêneros tão distintos quanto o faroeste ou as comédias românticas, tirou o melhor da atriz nos divertidos O Inventor da Mocidade (1952) e Os Homens Preferem as Loiras (1953). E Otto Preminger a colocou num papel ligeiramente mais sério no excepcional O Rio das Almas Perdidas (1954). Para além do imprescindível, talvez nem seja preciso elencar as parcerias com outros grandes mestres como Henry Hathaway, George Cukor e John Huston.

Mas se o cinema lhe sorriu, a vida pessoal foi um amontoado de momentos felizes intercalados por períodos atribulados. Norma Jeane Mortenson passou por lares adotivos, lidou com relacionamentos que não deram certo, além de fazer uso excessivo de drogas para dormir – que pode ter lhe causado a morte em 1962, quando ainda estava no auge aos 36 anos. Marilyn partiu cedo demais, mas suas pequenas grandes cenas ficarão para sempre!

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Judy Garland (1922-1969)


O ano de 1939 foi um dos mais icônicos na história do cinema estadunidense. E seria especialmente definitivo para Judy Garland, que protagonizava em technicolor O Mágico de Oz, de Victor Fleming. Mas Garland também estava bem acompanhada: John Wayne aparecia soberano em No Tempo das Diligências, de John Ford; James Stewart, já consagrado, estrelava A Mulher Faz o Homem, de Frank Capra; e, claro, Clark Gable e Vivien Leigh apareciam na mega-produção …E o Vento Levou, finalizado pelo mesmo Fleming.

Mas o clássico musical que imortalizaria a canção Over The Rainbow foi singular tanto na produção hollywoodiana daqueles anos dourados quanto na vida pessoal da talentosa Garland. A atriz, que começara no cinema aos dois anos e meio de idade, praticamente teve a infância e a juventude consumidas pela indústria. Durante a escolha do elenco, alguns afirmavam que Judy, aos 16 anos, era muito velha para encarnar a infante Dorothy dos livros de L. Frank Baum. Mas Louis B. Mayer, chefão do estúdio MGM, apostou na atriz e o resto é história… ainda que não das mais felizes.

A atriz tinha dificuldades em manter o peso e, para sedimentar sua imagem de estrela, o estúdio lhe impôs remédios de emagrecimento. Assim, começou um vício em drogas que lhe acompanharia até o final da vida, época em que se encontrava relativamente afastada do cinema.

Em 1944, quando estrelou Agora Seremos Felizes, de Vincente Minnelli, a atriz de 22 anos já havia participado de 19 produções. Desta vez, Judy quase recusou o papel da adolescente do começo do século, mas Minnelli soube convencê-la naquela que pode ser considerada uma de suas melhores performances em cena. Um ano após o filme, Garland e Minnelli se casaram e, outro ano mais tarde, nasceria a filha do casal: Liza Minnelli, que herdaria o talento cênico e vocal da mãe.

Ainda seria indicada ao Oscar como melhor atriz no filme Nasce uma Estrela (1955), de George Cukor, e como melhor atriz coadjuvante em Julgamento em Nuremberg (1961), de Stanley Kramer – mas o prêmio lhe escapou nas duas oportunidades.

Judy Garland teve três filhos e se casou cinco vezes. Morreu de overdose acidental aos 47 anos. Sua obra permanece com aquele mesmo frescor inocente, trazendo em si mesma uma nostalgia agridoce típica de Hollywood. Os dramas pessoais da atriz são um exemplo clássico da distância entre a vida dentro e fora das telas de cinema. Além do arco-íris, os sonhos se tornam realidade, mas nem sempre do jeito que as pessoas desejam.

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Humphrey Bogart (1899-1957)


Seu rosto de traços fortes não era assim tão belo quanto o de Cary Grant. Sua elegância em cena poderia até não ser tão charmosa se comparada a de Clark Gable. Sua atuação impiedosa nem mesmo ecoava tão emocional como a de Marlon Brando. Mesmo assim, parece haver algo em Humphrey Bogart que falta em todos os outros atores: Bogie era “o cara”. Ou, ainda, “a cara” do cinema estadunidense.

Descoberto no teatro, seus primeiros filmes na década de 1930 não foram grandes sucessos. Ainda que tenha feito boas parcerias com grandes diretores, caso de Beco Sem Saída (1937), de William Wyler, somente na década seguinte Bogart cravaria seu nome na sétima arte. Com as produções Relíquia Macabra (1941), de John Huston, Casablanca (1942), de Michael Curtiz, Uma Aventura na Martinica (1944), de Howard Hawks, e À Beira do Abismo (1946), também de Hawks, a persona cinematográfica de Bogart estava praticamente estabelecida.

Mesmo com as atenções sobre si, o ator encarou o trabalho durante a chamada Era dos Estúdios em Hollywood com extremo profissionalismo. Certa vez, referindo-se aos comentários sobre sua atuação, comentou: “Eu queria dizer aos críticos que eu preciso, de verdade, saber atuar para engolir água sabor caramelo e fazer o público acreditar que é uísque”. Uma frase com a ironia fina ou cinismo requintado que caracterizou boa parte de seus papéis, inclusive aquele que o imortalizou em cena: Rick Blaine, o herói amargurado de Casablanca.

Casablanca abordava a Segunda Grande Guerra enquanto conflito acontecia. E Blaine surgia na tela qual figura rara, aparentando certa indiferença, mas alguém que no seu âmago sabia que a vitória seria dos aliados. Por isso, pela presença de Ingrid Bergman, por ser uma história de amor, por ter um roteiro certeiro com diálogos divertidos, e por milhões de outros motivos, Casablanca e Bogart se tornaram ícones de um período fundamental na história do cinema. Não por acaso, o renomado American Film Institute o elegeu como a maior estrela masculina do cinema norte-americano em todos os tempos. E quem há de discordar?

HumphreyBogart

Casablanca (1942), de Michael Curtiz


casablanca

Quando Rick Blaine fala para Ilsa Lund que ambos sempre terão Paris, todo o sentimento da frase tem muito mais a ver com o cinema, a história e a história do cinema em si, do que de fato com o caso de amor de ambos na Cidade Luz. Esta cena, quase ao final de Casablanca (1942), de Michael Curtiz, é tão devastadora que faz do filme uma obra definitiva, porque altera todos aqueles sentimentos ingênuos por uma ideia de nostalgia que é, afinal, a origem de toda arte.

Baseada numa peça teatral intitulada Everybody Comes To Rick’s, a película de Curtiz funciona tão bem devido à consistência com a qual foi desenvolvida. Ao abordar a Segunda Grande Guerra enquanto a mesma acontecia, Casablanca traz o absurdo século XX na forma de um amor do passado que retorna ao som da melodia As Times Goes By. Rick e Ilsa sofrem porque percebem naquele mesmo instante que são tão fundamentais quanto insignificantes; o que é uma história do amor quando o mundo está sendo dominado pela barbárie?

E não é por acaso que Richard Blaine se transforma num cínico ao partir sozinho para Casablanca, onde abre o Rick’s Café Américain ao lado de seu fiel companheiro Sam. O cinismo permite-lhe tomar partido na guerra sem levantar suspeitas, como quando lhe perguntam sua nacionalidade e Rick responde sem pestanejar: Eu sou um bêbado. E isso faz dele um cidadão do mundo, completa o Capitão Renault. O diálogo certeiro de um roteiro escrito durante as filmagens. De alguma forma, naqueles tempos interessantes e cruéis, ninguém sabia qual seria o fim das personagens como também não se poderia afirmar quem sairia vencedor da guerra.

Eis a inocência perdida que Curtiz tão bem pontuou ao lado do talento indiscutível de Humphrey Bogart (Rick Blaine) e Ingrid Bergman (Ilsa Lund). Bogart é a alma do filme e Bergman o coração. Enquanto ele faz de tudo para esquecer o passado, ela não foge às lembranças de alguém vítima daquela abominável guerra. Assim, o típico herói, representado pelo marido que Ilsa achava ter sido morto num campo de concentração nazista, só existe porque também outros cidadãos comuns, como Rick e Ilsa, lutaram como lhes era possível, desistindo da Paris pré-guerra, agora ocupada pela França de Vichy.

Apresentando o viés dos Aliados, a produção conta com uma cena em particular que muda profundamente o cinema e, mesmo, toda a cultura ocidental: em seu café, Rick está conversando com Victor Laszlo, o marido de Ilsa, no momento em que soldados alemães entoam o hino de seu país. Indignado, Laszlo pede que a banda toque a Marselhesa, que logo é interpretada vigorosamente pelos presentes, fazendo com que os alemães desistam de sua própria exaltação pátria. Este é o momento de ruptura, tanto no filme quanto da história contemporânea. A partir dali, não há mais volta para Rick e Ilsa, como também está definido o inimigo a quem deve ser calado, seja através de armas (o tiro de Blaine no Major Heinrich Strasser) ou de uma música.

A arte não é apenas uma propaganda de guerra, mas uma condição essencial de nossa própria existência. Logo, a Marselhesa é tocada pela banda que entretém os frequentadores do Café Américain, enquanto o hino alemão parte dos bárbaros soldados nazistas. “De todos os bares do mundo, de todas as cidades em todo o mundo, ela entra no meu”, diz para si mesmo Rick, sabendo que não há mais tempo para fugir de quem ele realmente é. “Você é um sentimental”, lhe diz o Capitão Renault, seu mais novo amigo naquele mundo também recente com as cores de Marrocos e do Oriente. O sentimento não é de tristeza, seja como for. Da ausência de amor à amizade que se apresenta entre as nações – o francês Renault e o americano Blaine –, o futuro não é trágico, apesar da guerra.

Todo o elenco de apoio da película insere também uma dignidade que provavelmente não se compara a nenhuma outra produção daqueles anos de guerra. Paul Henreid (Victor Laszlo), Claude Rains (Capitão Louis Renault), Conrad Veidt (Major Heinrich Strasser), Peter Lorre (Ugarte) e Dooley Wilson (Sam, que nunca recebeu um pedido para tocar As Times Goes By de novo), especialmente, são pura sofisticação naquela sinceridade característica de Michael Curtiz.

A relevância de Casablanca em suas muitas décadas de exibições poderia residir na inocência perdida de um cinema e de um ideal de mundo que não existem mais. Mas os clássicos assumem muitos outros sentidos ao longo do tempo. Desta feita que, para além das mudanças, estão as qualidades de uma obra de arte definitiva, coisa que o cinema, e apenas o cinema, poderia nos proporcionar.

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Coleção particular de livros sobre Casablanca, seus protagonistas, o roteiro de uma peça teatral escrita por Woody Allen sobre um fã da película, uma continuação semioficial da história, além de versões do filme em VHS, DVD e Blu-Ray.

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Não Somos Anjos (1955), de Michael Curtiz


É realmente curioso e empolgante pensar que um cineasta como Michael Curtiz tenha dirigido tantos filmes e com tanta qualidade ao longo de quase cinquenta anos. De 1912 a 1961, Curtiz dirigiu pelo menos um filme por ano, mas sua média ia além disso. Além de ter filmado a mais famosa história de amor do cinema e um dos melhores filmes em qualquer lista especializada – estamos cá falando de Casablanca (1942), que fique claro –, o diretor nascido em Budapeste era conhecido por seu extremo profissionalismo, tendo participado dos mais variados gêneros da sétima arte.

A emotiva e divertida comédia Não Somos Anjos (1955) é um exemplar digno do talento de Curtiz, além de trazer Humphrey Bogart num dos raros papéis cômicos de sua carreira. O ator, famoso por encarnar mafiosos ou detetives impiedosos, está tão à vontade como o foragido Joseph que por si só fornece toda energia necessária à produção. O elenco complementar, por sua vez, também honra o enredo politicamente incorreto, mas deliciosamente certeiro. Aldo Rey e Peter Ustinov completam o trio de fugitivos da Ilha do Diabo, em pleno Natal de 1895. Juntos, os três sintetizam o desajuste social que o mundo ocidental pode proporcionar, bem como suas consequências para o bem e para o mal. Se há pecado e perdão, cada qual deve saber de si e viver para escolher.

Quando o trio encontra a simpática família Ducotel, todos são convidados a repensar seus dias e sua capacidade para as mudanças. O pai é um esforçado comerciante que toma conta da loja de seu primo Andre Trochard; enquanto a mãe queria ter um cotidiano menos repetitivo e, por isso, a certa altura afirma ter alguma inveja de Joseph. Já a filha é uma jovem apaixonada pelo sobrinho de Andre, Paul Trochard, o qual não tem o sentimento recíproco, no que se importa mais com o próprio sucesso.

E se Michael Curtiz repetidas vezes filma o trio atrás das grades de uma janela, ainda joga a dúvida para os dois lados: afinal, qual a situação mais prisioneira de si mesma, os presidiários fugitivos no telhado ou os que vivem as dificuldades típicas de uma família estagnada? Pois a grade está para os dois lados, envolvendo a todos num mesmo destino que pode ser decidido por uma simples picada de cobra, como aquela que um dos fugitivos carrega numa pequena maleta.

As bobagens que as pessoas cometem jamais ajudarão para que estas se transformem em anjos. Mas, por vezes, as boas ações aparecem nascem das desventuras, tal e qual Michael Curtiz revela neste filme quase cruel, mas necessariamente bem humorado.

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Trapaça (2013), de David O. Russell


O bom mentiroso acredita na própria mentira. Mas não basta fingir como quem esconde a idade para parecer mais novo. As inverdades se encaixam no universo real, com as leis as posturas éticas endossando um comportamento bastante suspeito. No cinema, a ficção abre a cena como o cerne da questão. Arte alguma existiria sem as mentiras sinceras. Talvez até mesmo o mundo tal como o conhecemos seja uma grande armação bolada por golpistas como os do filme Trapaça (2013), de David O. Russell.

As personagens que protagonizam esta história ambientada nos Estados Unidos no final da década de 1970 são experientes jogadores. As diferenças entre os vitoriosos e os perdedores residem numa linha de fé que se rompe quando o desejo fala mais alto. E o vigarista Irving Rosenfeld (Christian Bale) irrompe da mediocridade social para fé absoluta no real. Claro que ele tropeça, mas sempre se levanta sozinho ou com a ajuda da sua companheira de farsa Sydney Prosser (Amy Adams). Amante e parceira de negócios, Prosser dobra o agente do FBI, Richie DiMaso (Bradley Cooper) apenas com a verdade, nada mais que a verdade – algo sobremaneira interessante para uma mentirosa profissional. Eis o momento no qual a corda da inverdade se rompe e tudo passa a ser o contrário do que é.

Irving e Sydney são obrigados a colaborar com o FBI para prender figurões que se corrompem por dinheiro. Nalguma atualização do ditado popular, “ladrão que rouba ladrão colabora com o FBI”. Trágicas verdades de um sistema legal afetado, manipulado ao sabor dos agentes que lhe preenchem as vagas.

Numa digressão sociológica, uma brecha para a análise das instituições sociais realizada por Max Webber. Em algum ponto de suas próprias histórias, os fins primeiros das instituições se perdem e o objetivo dos indivíduos que as compõem passa a ser a manutenção de seus privilégios e/ou vantagens. Até mesmo as armadilhas se institucionalizam. Menos uma vitória dos criminosos, mais uma incapacidade da justiça, das leis e de tudo o mais em perceber que a sociedade existe a partir de uma trapaça sem lucro para a imensa maioria de seus integrantes.

Mentir pode não ser necessário, mas parece ser inevitável.

Christian Bale;Amy Adams;Bradley Cooper

Assalto em Dose Dupla (2011), de Rob Minkoff


No cinema, como em outras artes, a percepção da diversão causa certo pudor nos críticos mais sisudos e se torna lugar comum para aqueles que procuram justamente o entretenimento mais gaiato. Filmes de ação e comédia, principalmente aqueles hollywoodianos aos repletos de clichês, tergiversam por este falso conflito inventado pela indústria cultural. Para que, afinal, desobrigar a arte de ser, também e fundamentalmente, uma grande diversão?

Mais ou menos por aí se situa Assalto em Dose Dupla (2011), de Rob Minkoff, com um apanhado de personagens curiosas – algumas mais bem desenvolvidas comicamente que outras. O roteiro se unta de empatia porque em momento algum tenta ser mais esperto que o espectador: eis a grande qualidade que até mesmo o diretor soube compreender.

Patrick Dempsey assume, mais uma vez, o papel do cara comum metido numa grande encrenca, como aquelas bobagens divertidas dos anos 1980. Dempsey possui aquela atuação mimética de si mesmo, característica de alguns grandes atores que seguem ou não o método de Constantin Stanislavski. A certeza de rever sempre o mesmo estilo em personagens distintas possibilita ao espectador uma fluidez quase natural na assimilação da história.

Em pouco menos de uma hora e meia de duração, temos atuações honestas de praticamente todos os coadjuvantes, incluindo Ashley Judd como a funcionária de um banco que está sendo assaltado. Entretanto, quem dá o arremate na coerência é mesmo Dempsey, munido de seu desengonçado senso de urgência. Um álibi para reviver aquela década na qual protagonizou diversões tipicamente adolescente como Namorada de Aluguel (1987), Essas Garotas (1988) e Loverboy – Garoto de Programa (1989).

Entre as fronteiras do absurdo e do politicamente correto, Assalto em Dose Dupla pode ser mais uma gaiatice da qual tanto sentimos falta. E ainda bem que podemos contar, pelo menos de vez em quando, com um tipo de filme que década de 1980 nos legou. Porque nenhuma arte precisa ser levada a sério em demasia.

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Gnomeu & Julieta (2011), de Kelly Asbury


Da animação inglesa (na verdade, uma co-produção entre EUA e Reino Unido), surge o rápido e certeiro Gnomeu & Julieta (2011), de Kelly Asbury. Ainda que o diretor seja estadunidense, a produção abarca em si mesma tons do humor característicos aos britânicos. Ao contar as aventuras de anões de jardim que são vizinhos e travam batalhas devido às antigas rixas familiares (Capuletos vs Montéquios ou, no caso, Vermelhos vs Azuis), Asbury apresenta indiretamente William Shakespeare às gerações mais novas. O próprio bardo destila sua sagacidade ao ser representado por uma estátua falante em uma praça qualquer da Inglaterra. Gnomeo e Julieta são os anões de jardim das casas rivais que fazem Shakespeare parecer ainda mais divertido. Harold Bloom (1930-2019), talvez o mais influente pesquisador shakespeariano do final do século XX e início do XXI, comentou certa vez que os jovens deveriam ler obras de alta qualidade literária desde cedo, porém não aquelas muito rebuscadas, e citou Romeu & Julieta como um texto adequado. Evidentemente, faz-se necessário descontar o fato de que a obra original se desenvolve à maneira trágica, com um final ligeiramente perturbador para quem tem pouca experiência de vida. Entretanto, viver também se aprende nestas inconsistências sociais. E a rivalidade desmedida acompanha a própria narrativa humana. Ao longo de conflitos e disputas, enfrentamos o desconhecido, munidos de uma capacidade única de não enxergar a paz. O bardo provavelmente daria seu aval para esta produção que, se não é brilhante, ao menos homenageia o sentimento de sua obra mais conhecida.

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Casamento Grego (2002), de Joel Zwick


Nia Vardalos escreveu uma peça sobre sua própria vida. Rita Wilson, esposa de Tom Hanks, assistiu a encenação. Rita, por sua vez, indicou o trabalho para Tom. Tom também foi ao teatro, gostou do que viu e, junto com a sua esposa, decidiu produzir uma adaptação da história para os cinemas. Eis que temos aí Casamento Grego (2002), de Joel Zwick, sucesso repentino que pegou os norte-americanos num interregno artisticamente meio que atordoado após os atentados terroristas de 11 de Setembro de 2001.

Neste contexto, pareceu inevitável que uma divertida história inspirada na vida real, com possibilidades dramáticas tão grudadas ao cotidiano, tenha feito sucesso. Americanos, ocidentais e demais interessados na democracia liberal daquele início dos anos 2000 precisavam de alguma esperança concreta: a realidade ainda poderia ser um bom lugar, onde a felicidade do indivíduo prospera mesmo contra as previsões ruins do momento.

Deste modo, o gênero comédia romântica cumpre, também, a função de fazer crer que tudo dará certo, porque de um jeito ou de outro os problemas sempre se resolvem. No entanto, claro, dilemas fundamentais envolvendo economia e política devem ficar ausentes da narrativa. “Aceite o mundo do jeito que ele sempre foi”, afirma sem pudores o mainstream capitalista.

Daí também a ilusão cinematográfica hollywoodiana confundir propositalmente arte com entretenimento. O roteiro comum e objetivo de Nia Vardalos era o produto exato de que careciam os consumidores naquele cenário. Não se trata de achar vilões ou culpados, mas de compreender a dinâmica do mundo contemporâneo tanto nas vicissitudes sociais quanto nas variáveis artísticas. Enquanto a vida segue e a poeira das Torres Gêmeas vai parar no Afeganistão ou no Iraque, o status quo permanece oculto e silenciado.

Na história do cinema estadunidense, Casamento Grego revisita o leitmotiv do cinema da era New Deal de Frank Capra, mesmo que desconheça a iminência do estouro da bolha econômica imobiliária alguns anos à frente. E, talvez, por serem Democratas convictos, o casal Hanks apostou na fórmula certeira do amor como matéria prima, incluindo uma pitada de respeito às diferenças e outro tanto de bom mocismo. Ao final, damos com uma mercadoria de consumo rápido, quase mágica, feito um limpa-vidros capaz até mesmo de curar cravos e espinhas.

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Control (2007), de Anton Corbijn


Alguns ídolos culturais são oportunamente lembrados mais em função das suas mortes do que em razão de suas vidas. Temos sempre os casos típicos dos ícones que levaram uma vida dita desregrada e, não por acaso, partiram cedo, como no início dos anos 1970, quando Jimmy Hendrix (1942-1970), Janis Joplin (1943-1970) e Jim Morrison (1943-1971) partiram dessa para outra, ou ainda na década de 1990 com o precoce adeus de Kurt Cobain (1967-1994) e, em pleno século XXI, com a voz de Amy Winehouse (1983-2011) calando-se em definitivo. O fato de que todas estas personagens de si mesmas tenham partido aos 27 anos parece ser mais uma trágica coincidência, além de representar o sentido de urgência que tais criaturas sentiram na própria carne.

Vida breve, urgente e exagerada também foi a de Ian Curtis (1956-1980), vocalista da banda Joy Division, a quem o diretor Anton Corbijn procura retratar no filme Control. Corbijn faz uso do preto e branco (e seus inevitáveis tons de cinza) para emoldurar essa curiosa existência – o que nos remete a um quadro fotográfico com movimento próprio, justo recorte cinematográfico que tem na lente do cineasta o fiel instrumento de interpretação. E este recorte sobre a vida de Curtis ganha a dramatização vivaz do talento comedido de Sam Riley. O ator, britânico qual Curtis, assume a persona do vocalista de maneira impiedosa, transformando a aventura de um casamento juvenil, da fama inesperada e dos conflitos pessoais (exteriores e interiores) numa poesia sobre a tragédia que espera a todos.

As apresentações da banda Joy Division são as únicas fugas as quais Curtis se permite. Suas desilusões e impressões da realidade que lhe foi impingida estão por toda a parte nas próprias letras das canções – como em Love Will Tear Us Apart, sempre apontando para uma ruptura. Mas o tom não é propriamente depressivo, como podemos imaginar ao se tratar de um jovem que deu fim à própria vida aos 23 anos. A corda no pescoço de Ian Curtis não foi trançada por uma doença específica (o cantor sofria de epilepsia), por uma dor de amores (casado, vivera um romance com uma jornalista belga) ou mesmo a sisudez materialista do mundo que conhecera em Manchester. Não há julgamento para um ato cujo propósito mais evidente é não ter propósito algum. E o diretor Corbijn, ao falar de uma história marcada pela morte, termina por fazer de Control um dos grandes elogios à existência, algo que o cinema, e apenas o cinema, é capaz de produzir.

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