Nesta história em quadrinhos que ainda não foi desenhada, existem balões mágicos que trazem textos e sonhos. Não é uma aventura de super-herói porque a Florianópolis não convém esse clima vintage. Mas é uma trama cheia de sutilezas e sabores peculiares.
Começa com um sujeito comum sentado à beira da praça engraxando os sapatos de outro sujeito prosaico. Prosa vai, verso volta e no quadrinho seguinte a notícia surge na voz de um menino apressado:
– …mas estão dizendo que não vai sobrar nada em pé.
Com tão pouca informação, o engraxate não tem a menor ideia sobre o que o infante comentava. O sujeito prosaico sequer ouviu qualquer coisa, pois estava com um desses aparelhos que tocam mp3. Então, veio a primeira onda: não uma tsunami, mas sim um marouço de pessoas. O engraxate terminou o serviço, cobrou o cliente e seguiu o balanço de gente.
Entrementes, damos com um desenho em página dupla. Um formigueiro de gente subindo a Rua dos Ilhéus. É uma ilustração do ponto de vista de um helicóptero, com um único balão de pensamento: “que destino nos aguarda?”, indaga-se o engraxate.
A sequência das duas próximas páginas é uma espécie de ordenamento do caos: gritos, sirenes, empurrões, apitos, tambores, cassetetes, retroescavadeiras, arranhões. A utilização de onomatopeias destaca o clima urbano e barulhento que se pretende.
Na janela de um casarão antigo, alguém grita:
– Não vou sair daqui!
No balão de pensamento do oficial de justiça entendemos a situação: “Eu estava saindo para comer um cachorro-quente e me mandam aqui despejar essa senhora porque é preciso demolir uma casa velha. Até aí, nada demais. Poderia ter feito tudo em cinco minutos. Mas foi só a imprensa aparecer e afirmar que esta é a construção mais antiga da cidade que isso aqui virou uma festa do arrivismo social! E eu continuo com fome”.
Este é um daqueles momentos em que deveria aparecer um super-herói, mas sabemos que isso não vai acontecer desde o primeiro parágrafo.
Outra página cheia: são as metades dos rostos da senhora da casa e do engraxate como que formando uma única pessoa. A frase de um parece completar a do outro.
Senhora:
– Garantir o futuro para vocês é…
Engraxate:
– …não se importar com o passado.
Última página: uma nuvem fecha o sol e o desenho fica escurecido aos poucos… no quadro seguinte, a imagem já está em preto e branco. A retroescavadeira avança no mesmo momento em que a mulher é puxada para fora da edificação. O sapato dela cai bem ao lado do engraxate.
O engraxate pega o calçado e fala para si mesmo:
– Um passo. Um passado.
Não há final feliz. Nem super-herói.
> Crônica publicada no Jornal Notícias do Dia em 27/08/2015.