Entre a Praça e o Porto (2008), de Angelo Renato Biléssimo


Sob a égide da liberdade, parece-nos que a faceta mais relevante da história é sua capacidade de jamais se esgotar. O recorte objetivo de uma documentação disponível (mas pouco explorada) nos permite ir além do que os dados contam na superfície. Neste Entre a praça e o porto: grandes fortunas nos inventários post mortem em Desterro (1860-1880), o historiador Angelo Renato Biléssimo lida com o passado da capital catarinense, então chamada Desterro, para discutir as relações humanas na sua complexidade de sempre, porém com um vigor pioneiro. Os inventários post mortem, que servem de eixo condutor do livro, revelam nuanças de uma elite que se estruturou na cidade e cujos desenlaces socioeconômicos ainda são presentes no cotidiano de Florianópolis. A escravidão também marca presença no livro – os cativos faziam parte do patrimônio de muitas destas famílias com grande poder na economia e na política. Porque a cidade e as pessoas nunca param no tempo.

> Entre a Praça e o Porto: grandes fortunas nos inventários Post Mortem em Desterro (1860-1880). Escrito por Angelo Renato Biléssimo. Casa Aberta, 2008.

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Florianópolis e os nomes capitais


Ainda que seja uma abstração humana, o tempo está aí feito aquele convidado indesejado. As ruas e outros locais públicos de uma cidade também têm seu próprio tempo: uma história singular que as colocam numa estreita sintonia com o desajeitado percurso da humanidade.

Nesta Florianópolis que os humanos aterraram além da conta, algumas de suas principais ruas, praças e até mesmo a própria cidade já tiveram seus nomes alterados em função da forma de governo vigente.

Vejamos o caso da praça onde nosso maior monumento vivo, a figueira centenária, descansa solenemente. O local marcou o nascimento da Vila de Nossa Senhora do Desterro. Francisco Dias Velho, o fundador deste pedacinho de terra, construiu sua casa no mesmo lugar em que hoje se encontra a praça, além de erguer uma capela que ocupava o local da atual Catedral Metropolitana. Naquela época, em 1678, a comunidade que ocupava a Ilha era então composta por aproximadamente 400 pessoas. No período de 1748 a 1756, seis mil açorianos aportaram na vila e agregaram outros aspectos culturais às vidas dos moradores já estabelecidos. Em 1823, um ano após a proclamação da Independência do Brasil, o imperador Dom Pedro I elevou Desterro à categoria de cidade. A Ilha era a capital de Santa Catarina, província do Império. Em 1889, o marechal Deodoro da Fonseca proclamou a República e o dia do ato, 15 de novembro, daria nome à praça mais famosa da Ilha.

E, agora, nossa atenção se volta para a própria Ilha: com a renúncia de Deodoro em 6 de setembro de 1893, Floriano Peixoto assumiu seu lugar. Alguns revoltosos da Marinha, porém, se dispuseram a derrubar o novo presidente. Mas Floriano conseguiu desmantelar a revolta. Em Santa Catarina, alguns revoltosos tiveram um desfecho trágico: na Fortaleza de Santa Cruz, situada na Ilha de Anhatomirim, cerca de quarenta presos políticos foram fuzilados. Em 1º de outubro de 1894, o governador Hercílio Luz trocou o nome de Desterro para Florianópolis, em homenagem a Floriano. A Ilha ganharia seu nome atual às custas do sangue derramado. E o nome de Hercílio Luz seria utilizado por todo o município, incluindo a mais antiga ponte que une a Ilha ao continente, a praça nas proximidades da mesma ponte, uma avenida no centro da cidade, etc.

Outra homenagem de gosto duvidoso está presente na Rua Felipe Schmidt, que antes se chamava, pela ordem, Rua Bela, Rua Bela do Senado e Rua da República. Já a atual Rua Conselheiro Mafra chamava-se Rua do Príncipe. Deduzimos, pois, que o tal Príncipe em questão perdeu a coroa quando da Proclamação da República. Assim, os bons conselhos do Sr. Mafra tomaram-lhe a alcunha do logradouro.

Que histórias estes locais urbanos ainda guardam? E até que ponto as mudanças alcançarão nossas esquinas do passado? Fosse possível viajar pelo tempo, recuar às lembranças ou avançar no inimaginável, quão extraordinário seria visitar estes lugares que nos são tão próximos. O curioso é que nem sempre percebemos que o tempo da cidade é tanto aquele no qual vivemos quanto aquele que a história conta.

Aniversário de Floripa


Você fica sabendo do aniversário de Florianópolis pelo telefone celular. Terra em que nasceu ou escolheu para ser seu lar. São 344 anos resumidos em um único bipe; mas há muitos outros dias idos ainda no tempo de Meiembipe. As tradições gostam de marcar o tempo por cerimônias formais. E não importa se muito antes de Dias Velho já moravam as tribos locais. Antes, apenas uma Ilha perdida no meio do mar. Hoje, o continente trouxe histórias para somar.

– Mas, esperem aí, esta Ilha não é o paraíso de que todos falam?, pergunta o visitante oriundo de um país estrangeiro.

– Talvez seja, ô. Mas mesmo no paraíso há os que apenas consentem e calam!, responde o ilhéu com seu típico linguajar ligeiro.

Como toda metrópole, esta é uma cidade de dicotomias e desigualdades. Mas quem a conhece de perto, e parte, sempre carrega consigo amigos e saudades. No fundo, somos todos imigrantes numa terra cheia de leis. Porque a natureza não reconhece cartórios ou reis. Em alguns lugares, há corpos delineados por plásticas e carros importados num clima de ostentação. Noutras regiões, a infraestrutura mais básica sequer recebe alguma atenção. Os erros se repetem em todo o mundo, mesmo que tenhamos o sentimento mais profundo.

Na esfera pública, os aniversários de um município são praticamente todos iguais. Se há dinheiro no caixa, a população se anima toda para ver artistas internacionais. Seria uma contradição celebrar o lugar e exaltar o exterior? Ou talvez esta seja nada mais que uma questão posterior. Na pergunta primeira, gritamos: – O que temos para celebrar? E, com o rabo entre as pernas, fingem ter alguma noção para administrar. É a velha e manjada narrativa de quem escolhe um progresso que nada se parece com um justo futuro. No outro lado da balança, os moradores (a grande maioria) seguem firmes sem sucesso, pagando impostos e trabalhando duro.

Tudo bem, ô, falemos de coisas boas e divertidas. Como um chopp no Mercado ou a quitação das dívidas. Afinal, o dia parece ser muito mais urgente. Assim o é para mim e para toda gente. Passado e futuro estão noutras estações distantes. Longínquos como os falsos moinhos de Cervantes. Melhor pedir outro chopp em taça tulipa. Afinal, é aniversário de Floripa.

> Crônica publicada no jornal Notícias do Dia em 23/03/2017.

A Ilha e as perguntas sem respostas


Para azar de 2017, o ano que lhe antecedeu foi sobremaneira desastroso, ainda mais quando levamos em consideração um recorte político. Pois que mesmo os otimistas estão olhando duas vezes antes de atravessar a rua, ou mesmo uma travessa miúda como a Travessa Ratclif, ali no Centro da Ilha. Se é tempo de cuidado e atenção, o mesmo deveria valer para uma administração municipal assim que assume um novo mandato. Em Florianópolis, por sinal, fazia bastante tempo que um mesmo prefeito ficava apenas quatro anos no seu gabinete – claro que, de vez em quando, os alcaides sempre arranjam uma maneira de tomar um ar nas ruas longe das vaias ou dos aplausos. Ao novo prefeito e, por consequência, seus colaboradores, resta a pergunta de sempre: qual progresso estão buscando? “Buscando”. No gerúndio mesmo, já que parece que nunca chegamos nele de fato.

Florianópolis tem suas particularidades, como qualquer outra cidade, mas com aquele ligeiro diferencial que só cabe a outros vinte e cinco municípios – descontando o Distrito Federal, claro: trata-se de uma capital de Estado. E uma capital na qual os principais serviços se encontram numa Ilha, ligada ao continente por duas pontes quase sempre entulhadas de veículos e outra ponte que virou cartão postal em permanente estado de reforma. É bem verdade que os administradores públicos estão cansados de saber disso. E, talvez, tantas singularidades empolguem os candidatos no pleito municipal. Mas a questão do parágrafo anterior continua em aberto.

O progresso tem muitas formas. Diria até que ele possui muitas aparências que se disfarçam de conteúdo. Por isso, sempre que posso, procuro não misturar os conceitos de progresso e de evolução. Enquanto a evolução está meio que por aí, rindo do destino e sorrindo ao acaso, o progresso permanece calado, fruto de uma decisão fria e calculada. Progresso e evolução têm seus defeitos e suas qualidades, sejamos justos. Ambos não nasceram para se transformarem em vilões da história. Pelo contrário, quem carrega esse fardo, em geral, são justamente os líderes políticos, militares, etc… quando ignoram o resto de nós em troca da bonança e do mais do mesmo.

Nós, ilhéus por nascimento ou por adoção, questionaremos até que a resposta seja, ao menos, satisfatória – o que já será um ganho e tanto.

> Crônica publicada no jornal Notícias do Dia em 05/01/2017.

A ostra do Sr. Holmes


Tendo aceitado o convite de um velho amigo, o Sr. Holmes veio aproveitar a primavera numa casa com vista para o mar lá no Ribeirão da Ilha. Para não perturbar o pobre senhorio, vamos manter a identidade desse amigo no anonimato, mas convém dizer que o mesmo não faz parte dessa elite antropofágica que só faz deglutir os próprios bens. Era um sujeito simples, tão cordial que o Sr. Holmes tomou-lhe por melhor amigo tão logo seu companheiro de aventuras, Dr. Watson, foi para um universo indecifrável até mesmo para o mestre das deduções. É assim que a vida faz com quem insiste nela: ceifa-lhe tudo – do pó ao pó.

Assim que colocou os pés na areia, o Sr. Holmes se deu conta de que, pela primeira vez, estava numa praia única e exclusivamente motivado pelo lazer. Claro que noutras oportunidades visitara o mar. No litoral sul da Inglaterra, sentia certo apreço por Brighton, uma cidade que atrai muitos turistas, mesmo não sendo tão fascinante pela qualidade de suas praias. O Ribeirão em nada lembrava Brighton, como Florianópolis pouco se assemelhava à Londres.

Entrementes, Holmes, com sua idade avançada, cansara de Baker Street. Logo após o enterro de Watson, revistou as velhas anotações do doutor e decidiu rever amigos de um tempo que estava deixando de ser lembrança viva para se tornar história. Visitou uma ou duas pessoas no Reino Unido, quando o nome de um brasileiro lhe chamou a atenção. Fora aquele nome pitoresco para um londrino ou fora o Brexit (a saída do Reino Unido da Europa)? Não importava: A decisão de cruzar a oceano já estava tomada.

O anfitrião ilhéu do Sr. Holmes levara-o para comer ostras logo na primeira noite. Ah, e como o convidado ficara fascinado com o sabor da iguaria. Trocaria os milhares de chá que tomara no passado para ter conhecido as ostras muito tempo atrás. Mas nem mesmo o detetive mais brilhante de todos os tempos pode alterar o passado. Assim, contentou-se em pedir mais uma dúzia do molusco gratinado – para dividir com seu amigo, evidentemente. Foi aí que lhe ocorreu a solução de um caso que ficara perdido num canto escuro de sua memória. Lembrara-se, agora, de uma história mais surpreendente que Um Estudo em Vermelho ou O Cão dos Baskervilles. Sim, tinha a resposta na ponta da sua língua. Mas, primeiro, haveria de terminar com as ostras.

– Deliciosas!, exclamou.

Uma dedução elementar.

> Crônica publicada no jornal Notícias do Dia em 17/11/2016.

Predicados litorâneos


Quem mora no litoral sabe que o calor quase sempre vem acompanhado de uma chuva passageira. É um jeito divertido de a natureza oferecer a companhia do mar, o calor tão indispensável à vida e, ao mesmo tempo, lavar tudo como quem apazigua os ânimos mais exaltados.

Para o verão, temos um incremento considerável nas chuvas, no calor e em tudo o mais porque a natureza é tão mágica quanto científica. Vide o caso desta Ilha, capital do estado e das discórdias emocionais. Esta cidade, carinhosamente apelidada por estrategistas publicitários de “ilha da magia”, é igualmente um paraíso da ciência construído a partir das mais imbricadas e complexas relações químicas. Átomos, quarks e bósons fazem valer sua presença tanto quanto as bruxas e outros seres fantásticos elencados por Franklin Cascaes. E é justo que seja assim, porque deuses e homens sempre compartilharam do mesmo universo.

Se a natureza foi divina para com a Ilha de Santa Catarina, devemos-lhe prestar algum tributo; seja numa crônica ou tomando um banho de mar antes que comece a chover. Estas homenagens, claro, dão-se cotidianamente ao longo do ano, mas acentuam-se no verão porque, então, a cidade torna-se amplamente ocupada, como se não houvesse lugar vazio ou inexplorado. Há locais, sim, subjugados à vontade de uns poucos – reservados pela separação física inerente ao capital. Mas o verão sempre foi uma estação marginal e, como tal, destinada à democracia muito mais que suas três irmãs. A chuva que cai molha o rico e o pobre deitados sobre o mesmo solo arenoso chamado praia. Uns bebem champanhe, outros cervejas populares: todos saúdam a algo muito maior e mais relevante.

Hoje, aqui no litoral, é dia de compor uma ode ao verão. Por isso, pego meu violão e sigo toda vida reto até a primeira praia que me apetece. Não estou nem aí para o trânsito lento, as buzinas mal educadas ou a fumaça dos veículos. As únicas reações químicas que me interessam passam longe da combustão que nos leva de lá para cá. Sigo contra a corrente, mas a favor da maré e dos mares. Navego sem conexões wi-fi.

Pronto, cheguei. Sinto-me mais do que preparado para traduzir em melodia esses predicados litorâneos sempre ligados a sujeitos ocultos e felizes. Enquanto o sol ponteia o horizonte, ponteio cá as cordas do violão comprado em dez prestações. Agora, a canção está pronta, mesmo que ninguém além de mim a conheça ou venha a conhecê-la. Será para sempre um mistério não resolvido disputado pela magia e pela ciência: um empate técnico sob a chuva.

> Crônica publicada no Jornal Notícias do Dia em 03/03/2016.

Surrealidades no contexto capital


Querem que a lama seque e vire areia do mar. Anseiam para que a poluição não contamine o coração afoito de turistas e passageiros de primeira viagem. Mas tudo bem, damos um desconto porque por aqui sempre passaram administrações surreais. Quase idílicas, dependendo do seu grau de comprometimento com o mundo dos sonhos.

Nada disso me comove de fato. Nem mesmo uma nevezinha em pleno verão acabaria com todos esses mosquitos e desafetos políticos. Por mais diferentes que sejam, inverno e verão trazem as mesmas dúvidas primeiras porque se estabelecem numa única realidade paralela. Ou perpendicular. O drama se dá em tom de comédia pastelão. Torta na cara e esgoto no mar. São situações tão previsíveis quanto a queda de um asteroide ou uma nova Idade do Gelo. Já não fazem rir, pois os burros não levam mais os bondes ou as culpas.

Sei que você não quer nada com superfaturamento, corrupção ou labaredas alcoólicas. E faz muito bem. Noutros tempos, quando a guerra era fria e o céu era o limite, apenas pretensões como estas já davam cadeia. Hoje, o trivial virou factual que virou viral e foi parar no youtube ou no facebook. Tanta exposição e ainda não descobrimos mistérios elementares sobre o cosmos, a política ou as mulheres. E todos são fascinados e vacinados, mesmo que precisem de óculos 3D.

Abandone a sessão de cinema do shopping mais perto de sua casa e marque um encontro na primeira estação de metrô. Metrô? Não, não existe isso nessa Ilha. Há terminais de ônibus e food trucks espalhados ao longo da cidade. O trânsito se afoga sob a chuva, sob o contingente turístico e sobre si mesmo. São caminhos de tijolos amarelos que não terminam na Terra de Oz ou no País das Maravilhas. Nas filas de carros, a única diversão advém das ondas do rádio – pois as do mar demoram a chegar. Qualquer música, de valsas vienenses aos sertanejos pós-graduados, aumenta uma expectativa que será frustrada pela quantidade de coliformes fecais nas águas. Mas culpem os queijos quentes que tudo parecerá correto.

E agora, como impediremos o danado do progresso fora de propósito? Com foice e martelo ou postando vídeos da internet? Somos todos imigrantes nesse planeta e ainda não conhecemos nossos vizinhos da pátria-mundo. Eu tenho um sonho, como o Martin L. K. antes de mim: toda a lama secará e os prêmios das loterias transformarão gananciosos em gentis doadores de sangue, suor e lágrimas. Talvez seja disso que Florianópolis esteja precisando: nada mais que surrealidades no dia a dia.

> Crônica publicada no Jornal Notícias do Dia em 28/01/2016.

Navios e aviões em águas internacionais


A temperatura está tão indecisa quanto as pessoas. Há dias de choro nos quais é possível dar risada; há dias nublados em que se vê mais longe do que o próprio coração. As estações foram uma iniciativa grandiloquente em sua origem, principalmente porque se acreditava ter algum controle sobre o que torna a todos tão pequenos. Mas fingido é o clima em qualquer lugar, seja na seca Brasília (uma ilha-avião que nunca decola) ou na úmida Florianópolis (ilha-embarcação que navega sobre si mesma).

E se o clima pode variar, por que não as taxas de câmbio? O dólar nas alturas aquece e esfria mercados ainda mais severamente que uma frente fria oriunda de uma massa polar. Qual o aquecimento global que nos aproxima mais rapidamente de uma nova idade do gelo, essa economia de capitais especulativos nos encaminha às crises que se repetem tanto quanto aquele Vento Sul na ilha-embarcação. E mesmo o dólar dos turistas não é o suficiente para aplacar o sopro dos gigantes que estremecem lojas, empresas e fábricas de Naufragados à Ponta das Canas. Naveguem por aqui, verdes desenhos de George Washington, Ulysses S. Grant e Benjamin Franklin. Hoje, mais do que antes, dólares são mais do que reais.

Mas se o boom do turismo em dólar na capital catarinense ocorreu ali pelo final da década de 1990, o mesmo não pode ser dito da capital da nação. Lá, as verdinhas sempre falaram alto, seja como patrocínio indevido, incentivos fora de ordem ou, claro, corrupção na cara dura. A ilha-avião é, também, um porto-seguro para quem passeia por tempestades e afins. Para os que têm contatos, não há dia ruim, mesmo que a falta de umidade bata recordes históricos. Ali, como em qualquer parte, a opção do jeitinho sempre é uma segunda via quando a burocracia e as leis soam incômodas aos malandros de carteirinha. O motor de Brasília não funciona porque a gasolina foi desviada.

Pode ser ingenuidade acreditar que as leis ainda dão sinal de vida. Mas esta é uma sensação que permanece no ar apesar de tudo, como uma brisa quente anunciando mudanças no termômetro. Em princípio, não adianta esperar por uma chuva torrencial que lave a alma dos corruptos e incompetentes, mas também não é hora de abandonar o navio (ou o avião) e se deixar levar pelas águas internacionais. O que é o dólar se não um artifício fingido que também depende de tudo o mais para se manter de pé? Se o clima favorece a moeda estrangeira, vamos mudar o mundo de lugar. Olha o vento sul chegando…

> Crônica publicada no Jornal Notícias do Dia em 01/10/2015.

Quadrinhonópolis


Nesta história em quadrinhos que ainda não foi desenhada, existem balões mágicos que trazem textos e sonhos. Não é uma aventura de super-herói porque a Florianópolis não convém esse clima vintage. Mas é uma trama cheia de sutilezas e sabores peculiares.

Começa com um sujeito comum sentado à beira da praça engraxando os sapatos de outro sujeito prosaico. Prosa vai, verso volta e no quadrinho seguinte a notícia surge na voz de um menino apressado:

– …mas estão dizendo que não vai sobrar nada em pé.

Com tão pouca informação, o engraxate não tem a menor ideia sobre o que o infante comentava. O sujeito prosaico sequer ouviu qualquer coisa, pois estava com um desses aparelhos que tocam mp3. Então, veio a primeira onda: não uma tsunami, mas sim um marouço de pessoas. O engraxate terminou o serviço, cobrou o cliente e seguiu o balanço de gente.

Entrementes, damos com um desenho em página dupla. Um formigueiro de gente subindo a Rua dos Ilhéus. É uma ilustração do ponto de vista de um helicóptero, com um único balão de pensamento: “que destino nos aguarda?”, indaga-se o engraxate.

A sequência das duas próximas páginas é uma espécie de ordenamento do caos: gritos, sirenes, empurrões, apitos, tambores, cassetetes, retroescavadeiras, arranhões. A utilização de onomatopeias destaca o clima urbano e barulhento que se pretende.

Na janela de um casarão antigo, alguém grita:

– Não vou sair daqui!

No balão de pensamento do oficial de justiça entendemos a situação: “Eu estava saindo para comer um cachorro-quente e me mandam aqui despejar essa senhora porque é preciso demolir uma casa velha. Até aí, nada demais. Poderia ter feito tudo em cinco minutos. Mas foi só a imprensa aparecer e afirmar que esta é a construção mais antiga da cidade que isso aqui virou uma festa do arrivismo social! E eu continuo com fome”.

Este é um daqueles momentos em que deveria aparecer um super-herói, mas sabemos que isso não vai acontecer desde o primeiro parágrafo.

Outra página cheia: são as metades dos rostos da senhora da casa e do engraxate como que formando uma única pessoa. A frase de um parece completar a do outro.

Senhora:

– Garantir o futuro para vocês é…

Engraxate:

– …não se importar com o passado.

Última página: uma nuvem fecha o sol e o desenho fica escurecido aos poucos… no quadro seguinte, a imagem já está em preto e branco. A retroescavadeira avança no mesmo momento em que a mulher é puxada para fora da edificação. O sapato dela cai bem ao lado do engraxate.

O engraxate pega o calçado e fala para si mesmo:

– Um passo. Um passado.

Não há final feliz. Nem super-herói.

> Crônica publicada no Jornal Notícias do Dia em 27/08/2015.

Sobre tudo


Encontraram-se em Paris. Não, foi em Nova Iorque. Talvez Amsterdã? Mais provável que tenha sido em Florianópolis mesmo, num lugar bem comum. Um shopping. Nada disso: uma típica padaria. O mês do encontro poderia ser junho ou julho. Fiquemos, pois, com agosto. Um dia de sol, mas chovia bastante. Garoava apenas. Ele de terno; ela de vestido. Ele de bermuda e manga curta; ela com uma roupa tão curta que o autor fica indeciso entre um short ou uma minissaia. Encararam-se, enfim.

– Muito quente para esta época do ano, não acha?; ela abriu a conversação.

– Acho; ele disse engolindo rápido o pão de queijo e quase se engasgando. – E tenho até uma teoria do sobretudo.

– Uma teoria sobre tudo?

– Não, não. Uma teoria do so-bre-tu-do; falou destacando as sílabas para mostrar que era apenas uma palavra. – Aquele casaco comprido, sabe? O sobretudo é algo que praticamente não vemos mais por aí. Antigamente, todo mundo andava com um. Hoje em dia, conheço dezenas de pessoas que sequer compraram um sobretudo nos últimos dez ou quinze anos. E, mesmo quem os usa atualmente, prefere sempre um modelo mais estiloso, tão fininho que esquentar é um elemento quase dispensável.

– E o que mais sua teoria aponta?; ela questionou, atenta aos gestos que ele fazia com as mãos, quase desenhando a teoria no ar.

– Não sei bem certo. Mas pode apontar uma mudança na moda, como foi com o fim do uso dos chapéus nas grandes cidades, por exemplo. Se bem que pode indicar também o fim da civilização como a conhecemos. Ainda preciso de mais tempo para preencher as lacunas; ele disse como se vislumbrasse a quantidade de trabalho que teria pela frente.

– Se for o fim da civilização, espero que sua teoria ainda demore bastante para ser comprovada.

– Não será neste inverno, isso eu posso garantir.

Riram. Trocaram despedidas e combinaram um novo bate papo para a semana seguinte.

Desta vez, ela estava de calça jeans. O vento sul viera com tudo e pegara ambos desprevenidos. Na frente da padaria, ele levantou seu paletó para protegê-la dos papéis e da sujeira que voavam pela rua. Entraram e foram se sentar na mesma mesa em que conversaram da outra vez, mas estava ocupada por um sujeito que lia um livro tão antigo quanto sua aparência. Era um sujeito fora de sua época, como se tivesse existido entre os séculos quinze e dezenove. Não dava para distinguir.

– Pena que a mesa estava ocupa…; ele começou a falar quando foi interrompido por ela.

– Você viu o livro que aquele homem estava lendo? O título era “Teoria sobre tudo”. Acho que você deveria falar com ele…

Mas o sujeito já tinha ido embora.

Pediram um café e foi só então que ela contou que trabalhava como meteorologista. Depois, casaram-se. E estão planejando uma viagem para Nova Iorque. Ou Paris. Talvez Amsterdã?…

> Crônica publicada no Jornal Notícias do Dia em 13/08/2015.

Memórias de inverno


Quando ainda estudava no ginásio (ou seja lá como o chamam agora), tive a sorte de ser levado para a escola no carro da família – o que fazia uma enorme diferença no inverno. Meu pai me conduzia ao colégio que ficava a aproximadamente dois quilômetros da minha casa, em Florianópolis. O que aparenta ser uma distância grande fica minúscula quando ouço meu avô materno contar que minha mãe e seus irmãos andavam dez quilômetros para estudar lá na gelada Bom Retiro. Mas o que podemos desejar que não o melhor para cada geração seguinte? De tal modo, não tenho palavras para agradecer a educação que tive dentro de casa, o que me ensinou a dar valor para gestos tão modestos quanto esta carona familiar.

Como sempre frequentei o colégio de manhã, muitas vezes seguia rumo aos estudos com algum bocado de sono (que aumentava ainda mais no inverno), e cochilava no banco traseiro do carro. Em oportunidades ocasionais, meu pai conduzia o carro no itinerário automático da manhã; saía de casa, passava em frente à escola, e voltava para casa. E eu? Às vezes, ficava dormindo no banco traseiro que não despertava sequer a atenção do meu pai, e acordava já na metade do caminho de volta, sempre avisando: “ei, passamos da escola!”. Hoje, lembrando destes momentos, já não busco encontrar o responsável por aquelas desventuras, mas perceber como estas situações do cotidiano transformam nossa realidade e formam nosso caráter.

Numa destas muitas idas e vindas, uma ou duas vezes meu pai deu carona para alguém. Lembro especificamente de um dia de inverno, daqueles em que até os cães mais peludos buscam um cobertor ou a perna quente do dono. Fora do carro, um rapaz de uns vinte e poucos anos e um outro tanto de roupas quentes pedia carona. Meu pai parou; o rapaz entrou, e conversaram até chegarmos ao meu destino estudantil. Ficamos então sabendo que o jovem encasacado era do Nordeste, e nunca passara tanto frio assim na vida. Fico imaginando se ele chegou à capital catarinense no verão e encontrou nas praias e na agitação dos dias quentes as similaridades de sua terra natal. Então, o inverno chegou como um convidado indesejado e PUFT! Derrubou suas expectativas familiares. E, para ser sincero, creio que ele tem alguma razão. Num país tropical, fica difícil entender como o inverno pode ser tão surpreendente no litoral, com as praias vazias quando antes era difícil encontrar um cantinho na areia para abrir o guarda-sol.

As memórias de inverno são geladas demais para esquecer. E os cachorros, outra vez, estão encolhidos sobre o cobertor.

> Crônica publicada no Jornal Notícias do Dia em 25/06/2015.

Florianópolis estrangulada


Muito mais do que um estrangulamento físico, refletido nas vias entupidas de veículos, nos prédios que crescem sem uma gestação saudável e na carência cada vez maior de áreas ocupadas pela natureza, Florianópolis vive um estrangulamento político – e em seu pior momento, diga-se de passagem. A política aqui não entra apenas na questão partidária ou nas atuações dos governos municipais que se alternam sem alterar os paradigmas. O estrangulamento político pelo qual a cidade é sufocada tem muito mais a ver com a demanda equivocada dos mais diversos segmentos sociais.

Não obstante o fato da capital do estado ter se tornado um chamariz por suas belezas naturais, há aqui também um palco ideal para a criação de forças políticas vazias e, ainda assim, contraditórias. Esses rivais de fachada se alimentam mutuamente, girando uma roda que não sai do lugar, quais escravos de si mesmos. À direita ou à esquerda, as brasas dormidas não reacendem porque lhes faltam interesses comuns. Para essa gente preocupada demais consigo mesma, é necessário refutar tudo o que não lhe diz respeito, partindo para acusações mesmo que não existam testemunhas. Alguns, claro, costumam pedir que o Ministério Público investigue, como que lavando as mãos do processo.

Essas deficiências de entendimento imputaram à cidade uma condição peculiar de urgência e ausência do pensamento reflexivo. Esse drama já vem de muito tempo, mas começou a ficar mais evidenciado na época dos aterros da região central e da Beira Mar Norte. Para o aterro do Centro da Ilha, o arquiteto-paisagista Roberto Burle Marx pôde até ter desenvolvido um projeto impecável, mas a pergunta que ficou até hoje ainda não foi respondida: era preciso? O mau uso do aterro, que inclui estacionamento, um centro de convenções tão elaborado quanto um caixote de madeira e uma usina de tratamento de esgoto que recebia os recém-chegados à Ilha com um desagradável fedor de excreções, é o exemplo perfeito dessa incompetência para conceber a cidade a longo prazo.

As demandas, então, efervescem como comprimido no copo d’água, sendo engolidas tão rapidamente quanto surgem: os movimentos sociais pelo passe livre e contra o aumento da tarifa, as greves dos motoristas de ônibus, as manifestações contra obras que interferem no meio ambiente… e outros tantos pleitos factuais ou sazonais não criam vínculo porque o estrangulamento é anterior a tudo isso. Vale destacar que essas reivindicações populares são legítimas bem como necessárias à democracia. Mas, sem o entendimento, o sufoco só tende a aumentar.

Vamos respirar enquanto ainda for possível.

> Crônica publicada no Jornal Notícias do Dia em 07/05/2015.

Hierarquia na urbe


A hierarquização é um processo antinatural. E, claro, antiartístico. Do que se perde daquilo que não se apreende, sobram-nos as saborosas migalhas do conhecimento. Esse pequeno deleite que se revela em cenas inventadas desde que o universo teve origem se vale da constituição histórica e corpórea das coisas, como nos fragmenta a intervenção urbana PORNOSUSPENSE, apresentada pelo Erro Grupo no Centro de Florianópolis.

É um drama histórico porque lida com as frágeis tristezas de sempre, existentes desde o Big Bang, passando pela Ditadura Militar e culminando num presente que eternamente coexiste, mas nunca acontece em sua plenitude. Assim, os desaparecidos do período ditatorial também estão em cena, colados como imagem projetada numa das paredes laterais do Teatro Álvaro de Carvalho. A morte ou o sumiço ou tudo isso e mais um pouco é uma ausência que não se perde nessa hierarquização histórica. O espectador olha para cima, forçando o pescoço como um incômodo igualitário, e lá estão mimetizadas as imagens da disciplina em interpretações da política vigente e na aceitação da Catedral Metropolitana como um ícone de fé. Abaixo, na pichação da parede, a palavra ARTE escrita, assim mesmo, com letras maiúsculas.

Entrementes, há uma erupção corpórea, pois que a ordem e o progresso se exibem numa bandeira brasileira que logo é ocupada por um corpo nu. O Erro, sempre a provocar qualquer coisa crônica e urbana, lembra-nos de que não há como se esconder. Daí o corpo já desnudo fica ainda mais descoberto por uma depilação pública. A cidade, mesmo protegida por prédios, paredes e postes, está sempre aberta ao tempo. Por mais alto que se queira chegar, o arranha-céu está longe de cumprir aquilo que se pretende, qual um corpo que jamais será objeto de si mesmo se assim não o quiser.

Quando o corpo depilado desce para encarar o público ou uma gestação precoce de uma transeunte disfarçada ou quiçá a questionadora aprendiz de uma língua estrangeira, a verdade se revela a mesma de antes: a cidade não precisa de muito para ser grande. Muros e calçadas são a própria essência da hierarquia que não diz a que veio, incomodando qual aquele pescoço levantado, ele mesmo uma erupção (ereção) corporal e histórica.

Ao enredarmos por uma tensão dramática que se entrecorta por semáforos, barulhos da urbe motorizada e mais elementos citadinos, enfrentamos a própria nudez social. Queremos, claro, um cobertor ou coisa que o valha para fingir que não somos atores da cidade. Mas somos. E é na cidade que qualquer relação humana se realiza de forma incompleta e maravilhosa.

> Crônica publicada no Jornal Notícias do Dia em 30/04/2015.

Paris via Florianópolis


Pois é uma verdade que a arte faz a gente viajar sem sair do lugar. Esta deve ser uma ideia tão velha quanto o dia e a noite, mas reverbera diuturnamente, como um estar consigo itinerante.

De um cinema em Florianópolis, fui para Paris enquanto assistia ao filme “Casablanca”, pela primeira vez numa tela grande. Por tê-lo assistido incontáveis vezes em muitos aparelhos de televisão diferentes, tenho muitas falas na ponta da língua. Mas, para registro, vou ficar com uma dita por Rick Blaine, a personagem principal, quase ao final do filme: “Sempre teremos Paris”. No momento em que Rick, interpretado pelo genial Humphrey Bogart, diz esta frase para sua amada Ilsa, a não menos genial Ingrid Bergman, Paris estava ocupada pelas tropas nazistas e o futuro parecia um erro trágico. Ainda assim, com o mundo em guerra, a Paris de que Rick fala é aquela de paz e paixão.

O filme, realizado quase inteiramente dentro de estúdios, não teve cenas gravadas em Paris ou mesmo em Casablanca, no Marrocos. Mesmo assim, ainda hoje é possível ir para qualquer uma destas cidades, como um viajante de ocasião que, de repente, acordou com vontade de subir a Torre Eiffel. E se Paris está de novo no centro das atenções por motivos torpes, como a chacina que ocorreu dentro revista Charlie Hebdo, é ainda mais necessário assistir ao filme de 1942. Não se trata de escapismo barato ou aceitar que realidades artificiais são mais interessantes. Pelo contrário, a arte é uma possibilidade infinita justamente porque reafirma a importância dos nossos contextos. Entre avanços e recuos, o quanto estamos longe daquele momento de que a película aborda? A resposta é precisamente aquilo que torna uma obra clássica no sentido mais concreto do termo, longe de distinções sociais ou noções pueris de nobreza.

Na viagem que fiz, parti de Florianópolis como se aqui mesmo também fosse o destino final, porque sempre voltamos para casa, de um jeito ou de outro. E se lembrei da Paris de ontem e hoje, poderia fazer o mesmo com essa Ilha capital. O que se espera desta cidade que abraça o futuro sem entender que sua essência é o passado-presente? Que diria Rick Blaine se tivesse deixado Casablanca no avião seguinte e viesse ter com nossa gente de falar apressado da Tapera ou do Ribeirão? Imagino que Rick passaria uns maus bocados para entender a língua nativa tanto quanto tivera para compreender o alemão. Mas, após um ou dois anos gastando o dinheiro que ganhara de uma aposta, abriria aqui também um café-bar, e deixaria que tocassem, de novo, As Times Goes By ao piano.

> Crônica publicada no Jornal Notícias do Dia em 29/01/2015.

Sem limites para errar


Encarar as fronteiras como quem ri do vilão. Uma linha imaginária, quer ela ganhe a concretude de pedras ou fios, só faz atualizar um discurso que está mais vazio do que as praias de Florianópolis no inverno. Do Tratado de Tordesilhas à Faixa de Gaza, do Muro de Berlim à Coluna Prestes: delimitar é, também, aceitar que a derrota existe para os dois lados, como uma história eternamente incompleta ou uma geografia desnecessária.

Não há contexto melhor para uma experiência dramática do que essa ampla ausência de identidade que toma conta do que é contemporâneo. Dêem-me um martelo e um prego que moverei o mundo melhor do que o compadre Arquimedes. E, ao microfone, ouvimos em pleno Largo da Alfândega, no eixo central da Ilha, as sonoras marteladas que repetem incessantemente: Geografia Inutil… Geografia Inutil… Geografia Inutil… (sem o acento mesmo, porque talvez ele não tivesse qualquer utilidade).

Peça, intervenção teatral, show… não adiantar criar divisões porque as fronteiras já ficaram para trás no primeiro parágrafo desta crônica. Para o Erro Grupo não tem conserto musical. Ou tem? De um hit de Rita Pavone pulamos para os berros alucinados da banda The Doors. Geografia Inutil… ainda é uma colagem de caracteres facilmente reconhecíveis porque se permitem ao consumo. Cabem algumas certezas quando o imprevisto é a ordem. O roteiro é um guia, como o é um acorde para o músico. E as mensagens são todas aquelas transitórias. Parece haver coincidências demais: como não relacionar os morcegos de Batman e Drácula (nas performances de fôlego dos atores travestidos) ao voo multi-direcional das pombas tão comuns do Centro desta cidade-ilha.

Talvez os mais antiquados façam alguma cena quando enxergam atores de roupa íntima no seio da urbe. São uns tolos. Não existe nada mais respeitável do que as peças (íntimas ou não) do Erro. Respeito é, sobretudo, enxergar o outro, perceber suas intenções e, ainda assim, dizer – e cantar! – a que veio. Moradores de rua, transeuntes, críticos ocasionais, cronistas: um largo iguala quaisquer tipos de observadores, escondendo-os de si mesmos, transformando-os em co-autores.

Porque o verbo se fez carne, temos esta emoção à flor da pele de não buscar uma moral concreta – apesar desta existir, porque cada um vive como quer. Se não haverá clímax, igualmente as canções cessam sem ter por onde. Não há limites para a arte. Até os pombos sabem disso.

> Crônica publicada no Jornal Notícias do Dia em 18/09/2014.