Nunca é tarde demais


De tarde. O sol vai mais um pouquinho para lá, querendo se esconder de alguns para se exibir aos outros. O tempo, lentamente, avança sobre si mesmo. Vez por outra, nesse intervalo do dia, quando há indecisão entre a tarde e a noite, passo em frente ao clube. Parados, diria até mesmo ansiosos, homens e mulheres com muita idade aguçados pela iminência da dança, da realização, da satisfação…

A porta está fechada, mas eles esperam. Imagino cá que muitos deles já estão aposentados, cumprindo um ritual que lhes completa. Alguns ajustam os óculos, apertam os cintos, desamassam as saias, passam a mão nos cabelos, preparados que só eles para o baile. Solteiros, casados, viúvos, descompromissados. Tantos acasos de histórias reunidas num mesmo ambiente. E como chegarem até ali? Tenho algumas hipóteses.

Não há sequer um milionário entre eles. Talvez, aquela alma de maior sorte tenha sido uma grande empresária do ramo imobiliário. Após perder tudo em oscilações na bolsa de valores, voltou-se para a segunda atividade que sabia fazer melhor: a dança. Dois ou três deles eram caminhoneiros. Viajaram o país inteiro e já não conseguem mais ficar muito tempo no mesmo lugar; por isso, sacodem o corpo para lá e para cá. Também se fazem presente os advogados sem gravata, as juízas sem a toga, os cozinheiros sem o avental, as policiais sem a farda… Hoje, exatamente ali, o que os identifica é tão somente a habilidade com que balançam.

Porque são humanos, e muito vividos, traquinam com a experiência de outros tempos. Longe de serem velhos, tornam-se uma novidade para si mesmos. Flertam. Os abalos sísmicos provocados por dois corpos distintos ou iguais, complementares e espelhados, retumbam. De longe, bem afastado mesmo, também somos sacudidos com o ritmo, a cadência, a ginga de quem não foi apenas passado, mas sim um total de presentes.

De fato, jamais entrei numa matinê destas. Meus calcanhares nunca ultrapassaram a porta. Fiz todas essas deduções da porta do carro para dentro, nas muitas vezes que observei da janela esse entusiasmo vespertino. Ainda assim, ouso idealizar o mais belo dos cenários, porque aquele me parece ser um bom jeito de viver.

Anoitece. A música diminui até cessar. A lua chega para abençoar o sono dos dançarinos.

Nunca é tarde demais.

> Última crônica publicada no jornal Notícias do Dia, em 10/08/2017.

Mudando os livros


Estou quase terminando uma nova mudança de endereço. Permaneço no mesmo bairro, mantendo os hábitos e lugares de sempre, necessários à sobrevivência do cotidiano: padaria, farmácia, posto de gasolina e outros lugares onde deixo boa parte do que recebo. A questão não é a distância em si, mas a sensação de que tudo o que possuímos (sim, esses algo nobres e algo fúteis bens materiais) parece ter um significado diferente quando temos nós mesmos de carregar.

Ao longo de vários anos, acumulei algumas centenas de livros, muitos dos quais tenho a nítida certeza de que jamais os lerei. Mas uma coleção não tem a ver com fim. Para o colecionador, o assunto em si nunca está acabado. Por sorte e um milhão de outros motivos, tive as condições necessárias para adquirir estes objetos que, como disse o escritor Jorge Luis Borges, são a extensão da memória e da imaginação. Entretanto, quando você compra um novo livro (ou usado, para quem curte o bom e velho sebo), não está imaginando que terá de carregá-lo junto com outros tantos em sua próxima mudança. E, creiam-me, livros pesam. Bastante. Guardados numa caixa, livros voltam à origem e se tornam árvores, pesando quais troncos maciços. Quanto maior a caixa, mais difícil de carregá-la. “Conformar-se; este é o único caminho”, repito isso para mim mesmo tentando diminuir as dores nas costas e nos braços.

Nesta mudança, dei prioridade para os móveis maiores. Trouxe a cama, o sofá, a mesa de jantar, o guarda-roupa… tinha de começar pelo mais difícil – pelo menos, era no que eu queria acreditar. Trouxe alguns livros, claro, principalmente aqueles que estavam foram da estante por uma razão ou outra – além de ter esse estranho hábito de ler mais de uma obra ao mesmo tempo, misturando as histórias, torcendo para que o herói da idade média de um livro embarque na nave espacial de outro exemplar totalmente distinto.

Ter um lugar para chamar de seu, mesmo que por um tempo determinado, já é uma conquista e tanto nesses tempos semi-insanos. O mundo inteiro está uma grande bagunça e eu cá preocupado em manter organizada minha coleção de livros! Penso que seja exatamente por aí. Estou em outro endereço, mas quem fez algumas das principais mudanças em minha vida foram os livros. Benditos objetos – mas precisavam ser tão pesados? Ainda há tantos para mudar…

> Crônica publicada no jornal Notícias do Dia em 02/08/2017.