O Capitão para além da América


Podemos deduzir que, em essência, o Capitão América foi criado por Jack Kirby e Joe Simon como uma arma de guerra. E tal afirmação soa ligeiramente irônica quando nos damos conta de que a sua principal ferramenta de trabalho é um escudo, símbolo máximo da proteção.

Ao longo de sua história no universo das revistas em quadrinhos, o herói deixou para trás aquele louvor à pátria amada que todo soldado deve carregar no peito e passou a questionar o papel de seu país naquilo que o mundo se tornou. Neste cenário cada vez mais globalizado, a própria ideia de um Capitão a representar a América soa, por vezes, incoerente.

Assim, atualmente, não adianta o herói se apresentar socando Hitler ou quem quer que seja repetidas vezes para se criar um vínculo de confiança. Em 1941, meses antes dos Estados Unidos entrarem oficialmente na Segunda Grande Guerra, o Capitão América / Steve Rogers inaugurava sua própria revista acertando em cheio o bigode do ditador austríaco. E bastou para o sucesso da personagem à época. Terminado o conflito, o herói não resistiu às quedas nas vendas e foi colocado de lado pela editora Timely Comics – que viria a ser Atlas Comics e, pouco depois, Marvel Comics. Somente na década de 1960, o mestre dos textos para quadrinhos e criador de dezenas de personagens, Stan Lee, viu uma oportunidade de trazer Rogers de seu congelamento. Não tardou para o Capitão liderar a lendária equipe dos Vingadores e nunca mais deixar o panteão da nona arte.

O século XXI chegou com mais perguntas sem respostas. A Marvel ressurgiu das cinzas e o caminho quase natural foi migrar a atenção para as telas de cinema. Entretanto, para um filme baseado num super-herói chamado Capitão América funcionar em todo o mundo, seria necessário adaptá-lo também dentro de um enredo global. Não por acaso, Capitão América: O Primeiro Vingador (2011), de Joe Johnston, soa ligeiramente distante das outras adaptações dos Estúdios Marvel porque se passa num momento histórico no qual o cotidiano era visto em preto e branco, com a ameaça clara do nazismo e do fascismo sobre as nações auto-denominadas livres. Johnston não era estranho ao gênero de filme de super-heróis. Com Rocketeer (1991), trouxe aquela nostalgia das matinês aventureiras qual Indiana Jones fizera na década anterior. E, neste contexto, teve êxito.

Hoje, porém, os dilemas estão dispersos e vão muito além de ditadores com o ímpeto do domínio mundial. São tempos de individualidades afloradas e de globalização – é necessário proteger e atacar. Um escudo apenas não é o bastante. Uma contradição que os irmãos diretores Anthony e Joe Russo souberam explorar em Capitão América 2: O Soldado Invernal (2014). Na produção, Steve Rogers (Chris Evans) enfrenta dramas pessoais para além de um soldado. Tal artimanha se transformou na principal ferramenta para ganhar a empatia dos espectadores das mais distintas nacionalidades, incluindo até mesmo nativos dos países que outrora formavam a Aliança do Eixo – um passado que se resolveu de alguma maneira. Ainda que dentro do contexto dos filmes realizados pelos Estúdios Marvel, o enredo desta sequência se sustenta tanto pela qualidade de suas personagens quanto por trazer uma relação direta com o tempo presente. Esta era tecnológica, na qual todas as nossas ações ficam registradas nas memórias de computadores, deixa o Capitão América deslocado: afinal, ele é uma figura de um tempo em que os heróis e os vilões estavam bem definidos (a saber: a Segunda Grande Guerra). Enquanto assistimos ao seu drama, lembramos que aqui mesmo no mundo real esses problemas soam familiares. Recentemente, o analista de sistemas Edward Snowden fez o mundo repensar a utilização da internet ao vazar dados da Agência de Segurança Nacional (NSA) dos Estados Unidos, confirmando que o país recolhe e monitora informações de todo o planeta, muitas vezes de forma não autorizada. Assim, trocamos a NSA pela fictícia S.H.I.E.L.D. e o cinema outra vez toma a realidade por empréstimo para contar sua própria versão dos fatos. Desta vez, até mesmo Nick Fury (Samuel L. Jackson), diretor de operações da S.H.I.E.L.D., tem de dar o braço a torcer ao se deparar no meio de uma conspiração mundial que pretende criar uma falsa liberdade originada por um massacre sem precedentes. Estes ares de thriller político é, possivelmente, o grande ponto a favor do roteiro que se comunica com as plateias atuais. E, apesar de ser uma peça chave, o Soldado Invernal do título não é maior do que os questionamentos do Capitão América / Steve Rogers sobre este Novo Mundo: como na filosofia de Nietzsche, o que é a verdade se não apenas uma ideia construída pelas pessoas que têm poder?

Com fama de personagem chato no universo dos quadrinhos, chega a ser irônico que Steve Rogers apareça como a força moral no filme Capitão América: Guerra Civil (2016), também dos irmãos Russo. Irônico, mas não inesperado. Caso parecido já se dera com Anthony Stark, alter ego do Homem de Ferro, uma personagem ríspida nas páginas e praticamente um fanfarrão na tela grande, muito em virtude da atuação descontraída de Robert Downey Jr. A reinvenção é um truque manjado do entretenimento, mas ganha nossa atenção quando feita para corroborar e surpreender expectativas históricas. Guerra Civil, a história original, foi publicada nas revistas da Marvel entre os anos de 2006 e 2007. Portanto, antes do início do Universo Cinematográfico Marvel em 2008. E talvez aí esteja a principal diferença entre as mídias: enquanto nos quadrinhos as lições sociais estão claras, no filme elas se dissipam ante o poder e o carisma de suas personagens-chave desenvolvidas para uma plateia ampla e diversificada. Ainda assim, não sejamos ingênuos ao ponto de acreditar que estas atualizações dos super-heróis não atendem aos mesmos interesses de antes. Atendem, evidentemente. Mas há uma seriedade e honestidade que a própria história faz questão de destacar. Se a Guerra Civil Americana fez dos Estados Unidos o país que conhecemos atualmente, podemos olhar dentro dos olhos de Steve Rogers para encontrar ali uma verdade que nos escapa: um futuro possível.

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As Américas do Capitão


O século XXI ainda é uma imagem indefinida. Apesar de identificarmos as características principais, não compreendemos o cenário como um todo. Política e culturalmente, porém, há ainda o agravo das dúvidas provocadas pela revolução tecnológica e seus reflexos econômicos. Daí que os registros do presente, feitos por jornalistas e historiadores, são um tanto vampirescos, quais o vilão que jamais se vê no espelho: a sutileza do Drácula de Bram Stoker é a metáfora de uma sociedade que não consegue ver a si mesma.

E sem passar verniz na realidade, a Marvel Comics encontrou duas maneiras distintas de lidar com os extremos nos anos 2000. Para tanto, direta e indiretamente, utilizou-se de seu personagem menos popular para fora da nação estadunidense: o Capitão América. Entre mortes, renascimentos e outros maus bocados, o Capitão ganhou uma notoriedade sem precedentes com os filmes do Universo Cinematográfico Marvel (UCM), iniciado em 2008 com Homem de Ferro, dirigido por John Favreau. Steve Rogers, o homem por trás do uniforme do Capitão, passou de personagem sisudo e essencialmente militar para um cidadão contemporâneo que esbanja carisma.

Antes das películas, existiam somente possibilidades para o milênio que se desnudava ainda sob o impacto do terrorismo, capitaneado pelos atentados de 11/09/2001. E, somado ao processo criativo, também a própria Marvel estava se recompondo após uma grave crise financeira.

Assim, em 2005, como ninguém esperasse, o outrora falecido ajudante mirim do herói, James Buchanan “Bucky” Barnes, volta à vida num arco de histórias intitulado Soldado Invernal. Bucky, então, não morrera na Segunda Grande Guerra como se pensava. Pior: fora recrutado e recondicionado mentalmente pelos russos para cometer assassinatos políticos durante a Guerra Fria. Mesmo que o reaparecimento de Barnes ocorra após um ataque terrorista na Filadélfia, os roteiros de Ed Brubaker claramente se distanciam do presente, como que remontando aos acontecimentos que poderiam explicar o cenário atual. Os vínculos afetivos entre Steve Rogers e Bucky Barnes correm em páginas que não querem tocar nas feridas abertas no Ocidente – muitas, aliás, quase autoimpingidas pela agressiva política externa norte-americana.

Para além de si mesmo, e ainda antes do aparecimento do UCM, Steve Rogers está no centro de uma imprescindível minissérie da primeira década do século. Guerra Civil, escrita por Mark Millar e publicada em sete partes entre junho de 2006 e janeiro de 2007, discute essencialmente a polarização. É ainda uma hecatombe o que dispara o enredo (qualquer semelhança com O Reino do Amanhã, lançada em 1996 pela DC Comics, parece ser mera e evidente inspiração), mas aqui a pauta se fecha na própria nação. A Lei de Registro de Super-Humanos se confunde com as próprias expectativas de uma população cansada do caos e da própria miséria, temendo por um futuro incerto e disposta a renegar alguns de seus valores mais caros em troca de garantias. E, sabemos todos, garantias nunca são 100%. Enquanto o lado heroico pesa para o Capitão América e aqueles que o apoiam, há uma preocupação sincera de Tony Stark e, claro, do “time Homem de Ferro” em regulamentar a atividade super-humana. “Quem vigia os vigilantes”?, perguntaria Alan Moore se estivesse minimamente interessado nessa história.

Há uma ideia recorrente de que os quadrinhos de super-heróis só fazem sentido pela força de seus vilões. É um pensamento interessante, principalmente quando contrastamos Batman e Coringa, Homem-Aranha e Dr. Octopus, Superman e Lex Luthor, Professor Xavier e Magneto. Ainda assim, esta parece ser uma noção um tanto quanto preguiçosa. As histórias e as personagens que se destacam falam, evidentemente, do bem e do mal, mas não apenas deles. Às artes legamos essa heroica responsabilidade de não nos convencer que há apenas um caminho correto. Luz e trevas, amor e ódio, guerra e paz moldam a sociedade para além do bem e do mal, dando relevância e complexidade à experiência humana. Tanto é assim que até mesmo um super-herói das revistas em quadrinhos chamado Capitão América, cujo uniforme e o escudo traz as cores da bandeira estadunidense, pode nos mostrar diferentes Américas e, quiçá, surpreender-nos quando nós mesmos darmos com o nosso reflexo no espelho.

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O Grande Ditador (1940), de Charles Chaplin


A década de 1930 se desenrolou concomitante à recuperação econômica após o Crash de 1929 e, também, à ascensão do nazi-fascismo na Europa. Por um lado, o capitalismo titubeava em sua crise mais relevante desde que as economias nacionais deixaram a rigidez das próprias fronteiras. Por outro, o comunismo se tonara uma possibilidade concreta e estabelecida a partir da Revolução Russa em 1917. Não obstante, a democracia ao modo ocidental ainda estava em vias de se solidificar, com as ditaduras eclodindo aqui e ali pelos continentes. Os governos de Alemanha e Itália ousavam para além dos próprios limites. E a arte das massas, sobretudo nos Estados Unidos da América (EUA), projetava-se nas telas de cinema. Uma Segunda Grande Guerra se tornou inevitável.

Eis a história recente e imediata que Charles Chaplin acompanhava com seu olhar de imigrante europeu na América do Norte. Quando lançou a película O Grande Ditador (1940), o sucesso de Chaplin estava consolidado nos EUA, sendo possivelmente o mais completo e famoso artista naquela fase inicial da sétima arte. Na esteira da transição entre os cinemas mudo e falado, Tempos Modernos (1936) se encaixou como a pedra mais preciosa lapidada pelas mãos do cineasta inglês.

Tais nuances cinematográficas devem ser levadas em conta quando da interpretação de O Grande Ditador, então o consentimento definitivo pelo autor ao cinema falado/sonoro. Trata-se por óbvio de uma película escrita sob o signo do engajamento social – um manifesto contrário à guerra. O discurso final do barbeiro judeu que toma o lugar do ditador antissemita não deixa dúvidas dos próximos passos que as nações indecisas devem tomar. Porquanto, não desejar a guerra se difere de fugir do combate.

Para efeito de comparação, podemos utilizar outro clássico realizado durante o conflito: Casablanca (1942), de Michael Curtiz. Enquanto na obra de Chaplin há uma dedicada busca pela tomada de decisão, no filme de Curtiz a decisão (do estúdio, do enredo, da direção…) já está tomada. A história e o cinema estadunidense assumem tons mais graves de 1940 para 1942. O ditador terá seu fim no reverso daquilo que buscou, como acontece com todos aqueles que não enxergam para além de si.

O manifesto político de Chaplin não impõe necessariamente um incômodo na dramaturgia de O Grande Ditador. Ao contrário, permite que se leia o filme a partir de sua época. Ainda assim, parece existir algo não muito bem resolvido e desajeitado na narrativa: o roteiro almeja contar duas histórias que se unem forçosamente ao final. Tal situação poderia ser evitada se Chaplin contasse apenas uma história, com duas tramas ocorrendo em paralelo. Essa impressão ganha respaldo na pantomima do barbeiro trabalhando ao som da composição clássica Dança Húngara nº 5, do alemão Johannes Brahms. A performance de Chaplin beira o sublime, mas não se une diretamente ao enredo. Entrementes, qual uma digressão, a cena tem sua razão de ser para colocar em oposição as visões do barbeiro e do ditador. Enquanto o primeiro trabalha inspirado pela música, colocando a arte no cotidiano das relações sociais, o segundo desdenha a melodia, tocando piano sem emoção e de modo burocrático. Mesmo a poesia que nasce a partir da cena na qual o ditador baila solitário com o globo terrestre tem qualquer coisa de alienação. Não por acaso, a dança ganha conotações sexuais, acompanhada por uma trilha sonora não diegética, alheia à gravidade das intenções cruéis da personagem.

A despedida de Carlitos, com seu fraque, cartola e chapéu característicos, dá-se com o barbeiro desmemoriado. E eis que temos Chaplin acenando para o seu legado criativo; conversando com sua filmografia; reiterando a imprevisibilidade do mundo, da arte, da ciência, da política…; retomando ideias que vão e vêm no tempo; terminando com um aforismo/trocadilho extemporâneo: na luta entre a civilidade e a barbárie, o barbeiro não é o bárbaro.

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O Garoto (1921), de Charles Chaplin


Qual um chute no traseiro de um policial, Carlitos tem uma verdade consigo para longe das burocracias: a miséria do corpo nem sempre será a miséria da alma. Esteja em alerta, porque Charles Chaplin está. O autor investiga o capitalismo sem piedade ao mesmo tempo em que faz os sentimentos individuais, também atrelados às finanças, vazarem feito choro de criança.

Edna Purviance, a Mulher, tenta compensar o abandono do filho com a caridade. Jackie Coogan, o Garoto, implora sem sucesso às autoridades para continuar ao lado do pai adotivo. Chaplin, o Vagabundo, corre atrás do pequeno sobre os telhados, feito um anjo torto acima e ao lado de todos nós. Três fragmentos de uma história intimista naquela que se revela como a película mais particular do cineasta britânico radicado nos Estados Unidos. Produzindo, dirigindo e atuando, Chaplin toma a arte para si assombrado pelos próprios dramas pessoais. Um filho morto aos três dias de vida. Um casamento destroçado pela perda. A ausência do contato materno desde que viera para a América. E, claro, Jackie Coogan com tamanho talento aos cinco anos de idade trouxe possibilidades incontidas.

De modo que O Garoto (1921) deixou de ser um curta-metragem como dezenas de outros que Chaplin realizara até ali, transformando-se no primeiro longa-metragem do diretor. O artista encontrara a si mesmo duplamente: Chaplin se transforma no Vagabundo de 30 anos e também no Garoto com apenas cinco. As interpelações sociais continuam vívidas na crítica sem som de um cinema ainda mudo.

Nos mesmos anos 1920, Em Busca do Ouro (1925) e O Circo (1928) ampliam as angústias quase intrínsecas aos modos de produção e consumo estadunidenses; dilemas mundanos e materialistas sob algum otimismo – acompanhado das lágrimas nas horas precisas. Já na década seguinte, Luzes da Cidade (1931) e Tempos Modernos (1936) se assentam no antagonismo de Chaplin em relação ao país no qual imigrou. E à luz da despedida, a personagem principal de sua biocinematografia, o Vagabundo de fraque, bengala e cartola, ganha afinal profissão e voz em O Grande Ditador (1940), porque a Segunda Grande Guerra impõe necessidades que não podem mais ficar caladas.

Daí que O Garoto, em seu centenário, ainda resiste icônico num momento de perturbação do cotidiano mundial. Se naqueles idos de 1921 a Gripe Espanhola já fazia parte do passado recente, neste 2021 a sindemia da Covid-19 expõe os adiamentos capitais de um equilíbrio social jamais alcançado. As transformações capitalistas, da industrialização fordista criticada por Chaplin à financeirização hegemônica do novo milênio, exigem respostas as quais nem mesmo o cinema está preparado ou disposto a fornecer. Seja porque os mecanismos de produção inibem tamanha vanguarda, seja porque a cultura se vê refém de si mesma (identitarismo e politicamente correto na proa de uma nau à deriva).

Dado ao ineditismo e ao pioneirismo do cinema chapliniano, a vida pessoal de seu criador continua sendo um dos temas mais relevantes ao pormenorizar longas como O Garoto. Os diversos romances, os casamentos com mulheres jovens e com grandes diferenças de idade, os muitos filhos (11 ao todo, sendo oito apenas com sua última esposa Oona O’Neill), tudo isso coloca uma série de suspeitas ao redor da genialidade criativa de Chaplin. Talvez seja um pequeno preço a ser pago em virtude da relevância de sua obra.

O Garoto se tornou um clássico porque as autoridades de tempos em tempos perdem a mão em excessos de irresponsabilidade. O chute no traseiro do policial foi mais que merecido.

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Humphrey Bogart (1899-1957)


Seu rosto de traços fortes não era assim tão belo quanto o de Cary Grant. Sua elegância em cena poderia até não ser tão charmosa se comparada a de Clark Gable. Sua atuação impiedosa nem mesmo ecoava tão emocional como a de Marlon Brando. Mesmo assim, parece haver algo em Humphrey Bogart que falta em todos os outros atores: Bogie era “o cara”. Ou, ainda, “a cara” do cinema estadunidense.

Descoberto no teatro, seus primeiros filmes na década de 1930 não foram grandes sucessos. Ainda que tenha feito boas parcerias com grandes diretores, caso de Beco Sem Saída (1937), de William Wyler, somente na década seguinte Bogart cravaria seu nome na sétima arte. Com as produções Relíquia Macabra (1941), de John Huston, Casablanca (1942), de Michael Curtiz, Uma Aventura na Martinica (1944), de Howard Hawks, e À Beira do Abismo (1946), também de Hawks, a persona cinematográfica de Bogart estava praticamente estabelecida.

Mesmo com as atenções sobre si, o ator encarou o trabalho durante a chamada Era dos Estúdios em Hollywood com extremo profissionalismo. Certa vez, referindo-se aos comentários sobre sua atuação, comentou: “Eu queria dizer aos críticos que eu preciso, de verdade, saber atuar para engolir água sabor caramelo e fazer o público acreditar que é uísque”. Uma frase com a ironia fina ou cinismo requintado que caracterizou boa parte de seus papéis, inclusive aquele que o imortalizou em cena: Rick Blaine, o herói amargurado de Casablanca.

Casablanca abordava a Segunda Grande Guerra enquanto conflito acontecia. E Blaine surgia na tela qual figura rara, aparentando certa indiferença, mas alguém que no seu âmago sabia que a vitória seria dos aliados. Por isso, pela presença de Ingrid Bergman, por ser uma história de amor, por ter um roteiro certeiro com diálogos divertidos, e por milhões de outros motivos, Casablanca e Bogart se tornaram ícones de um período fundamental na história do cinema. Não por acaso, o renomado American Film Institute o elegeu como a maior estrela masculina do cinema norte-americano em todos os tempos. E quem há de discordar?

HumphreyBogart

Casablanca (1942), de Michael Curtiz


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Quando Rick Blaine fala para Ilsa Lund que ambos sempre terão Paris, todo o sentimento da frase tem muito mais a ver com o cinema, a história e a história do cinema em si, do que de fato com o caso de amor de ambos na Cidade Luz. Esta cena, quase ao final de Casablanca (1942), de Michael Curtiz, é tão devastadora que faz do filme uma obra definitiva, porque altera todos aqueles sentimentos ingênuos por uma ideia de nostalgia que é, afinal, a origem de toda arte.

Baseada numa peça teatral intitulada Everybody Comes To Rick’s, a película de Curtiz funciona tão bem devido à consistência com a qual foi desenvolvida. Ao abordar a Segunda Grande Guerra enquanto a mesma acontecia, Casablanca traz o absurdo século XX na forma de um amor do passado que retorna ao som da melodia As Times Goes By. Rick e Ilsa sofrem porque percebem naquele mesmo instante que são tão fundamentais quanto insignificantes; o que é uma história do amor quando o mundo está sendo dominado pela barbárie?

E não é por acaso que Richard Blaine se transforma num cínico ao partir sozinho para Casablanca, onde abre o Rick’s Café Américain ao lado de seu fiel companheiro Sam. O cinismo permite-lhe tomar partido na guerra sem levantar suspeitas, como quando lhe perguntam sua nacionalidade e Rick responde sem pestanejar: Eu sou um bêbado. E isso faz dele um cidadão do mundo, completa o Capitão Renault. O diálogo certeiro de um roteiro escrito durante as filmagens. De alguma forma, naqueles tempos interessantes e cruéis, ninguém sabia qual seria o fim das personagens como também não se poderia afirmar quem sairia vencedor da guerra.

Eis a inocência perdida que Curtiz tão bem pontuou ao lado do talento indiscutível de Humphrey Bogart (Rick Blaine) e Ingrid Bergman (Ilsa Lund). Bogart é a alma do filme e Bergman o coração. Enquanto ele faz de tudo para esquecer o passado, ela não foge às lembranças de alguém vítima daquela abominável guerra. Assim, o típico herói, representado pelo marido que Ilsa achava ter sido morto num campo de concentração nazista, só existe porque também outros cidadãos comuns, como Rick e Ilsa, lutaram como lhes era possível, desistindo da Paris pré-guerra, agora ocupada pela França de Vichy.

Apresentando o viés dos Aliados, a produção conta com uma cena em particular que muda profundamente o cinema e, mesmo, toda a cultura ocidental: em seu café, Rick está conversando com Victor Laszlo, o marido de Ilsa, no momento em que soldados alemães entoam o hino de seu país. Indignado, Laszlo pede que a banda toque a Marselhesa, que logo é interpretada vigorosamente pelos presentes, fazendo com que os alemães desistam de sua própria exaltação pátria. Este é o momento de ruptura, tanto no filme quanto da história contemporânea. A partir dali, não há mais volta para Rick e Ilsa, como também está definido o inimigo a quem deve ser calado, seja através de armas (o tiro de Blaine no Major Heinrich Strasser) ou de uma música.

A arte não é apenas uma propaganda de guerra, mas uma condição essencial de nossa própria existência. Logo, a Marselhesa é tocada pela banda que entretém os frequentadores do Café Américain, enquanto o hino alemão parte dos bárbaros soldados nazistas. “De todos os bares do mundo, de todas as cidades em todo o mundo, ela entra no meu”, diz para si mesmo Rick, sabendo que não há mais tempo para fugir de quem ele realmente é. “Você é um sentimental”, lhe diz o Capitão Renault, seu mais novo amigo naquele mundo também recente com as cores de Marrocos e do Oriente. O sentimento não é de tristeza, seja como for. Da ausência de amor à amizade que se apresenta entre as nações – o francês Renault e o americano Blaine –, o futuro não é trágico, apesar da guerra.

Todo o elenco de apoio da película insere também uma dignidade que provavelmente não se compara a nenhuma outra produção daqueles anos de guerra. Paul Henreid (Victor Laszlo), Claude Rains (Capitão Louis Renault), Conrad Veidt (Major Heinrich Strasser), Peter Lorre (Ugarte) e Dooley Wilson (Sam, que nunca recebeu um pedido para tocar As Times Goes By de novo), especialmente, são pura sofisticação naquela sinceridade característica de Michael Curtiz.

A relevância de Casablanca em suas muitas décadas de exibições poderia residir na inocência perdida de um cinema e de um ideal de mundo que não existem mais. Mas os clássicos assumem muitos outros sentidos ao longo do tempo. Desta feita que, para além das mudanças, estão as qualidades de uma obra de arte definitiva, coisa que o cinema, e apenas o cinema, poderia nos proporcionar.

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Coleção particular de livros sobre Casablanca, seus protagonistas, o roteiro de uma peça teatral escrita por Woody Allen sobre um fã da película, uma continuação semioficial da história, além de versões do filme em VHS, DVD e Blu-Ray.

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Sonhos de um Sedutor (1972), de Herbert Ross


Quando o avião partiu rumo à Lisboa, com o Sr. e a Sra. Laszlo a bordo, Rick Blaine não apenas iniciou uma bela amizade com o capitão Renault como também assegurou ao seu intérprete o posto de ícone essencial no primeiro século da cinematografia ocidental. Havia a guerra e Casablanca (1942), de Michael Curtiz, saudou com o rosto marcante de Humphrey Bogart o elo entre passado e futuro.

Com tamanha responsabilidade sobre seus ombros, não foi por acaso que Bogart/Blaine continua a ser o ideal de caráter para todos aqueles que se importam com o cinema, como se este fosse a expansão definitiva do indivíduo. Eis no que acredita Woody Allen, principalmente com Sonhos de um Sedutor (1972), dirigido por Herbert RossO roteiro de Allen trata das suas velhas (ou novas, já que este é um filme do início de sua carreira) questões pessoais sobre a dificuldade dos relacionamentos entre casais. Mas não é apenas isso. O cineasta está no filme também como Allan (seu nome de batismo é Allan Stewart Konigsberg), fã de Bogart e tudo o que o cerca. E como ávido espectador que sempre foi, Allen faz das primeiras cenas de Sonhos de um Sedutor aquelas que encerram Casablanca. O cenário que se apresenta em seguida, com Allan assistindo à produção de Curtiz numa sala de cinema, é exatamente o que lhe cabe no mundo, criando ilusões ou realidades alternativas, porque os filmes têm esse poder.

Allan/Allen se encontra com Blaine/Bogart antecipando o que aconteceria com A Rosa Púrpura do Cairo (1985), possivelmente seu filme mais popular na década de 1980, quando a personagem literalmente deixa a ficção a favor da realidade. E não acontece sempre assim? Qual um amigo, a personagem inesquecível de uma película está presente no nosso dia a dia. E de amizade também se faz a história de Allan. Ao apaixonar-se por sua melhor amiga, o alter ego de Allen sucumbe à aproximação mais verdadeira do que pode ser o amor. Diane Keaton, que interpreta Linda, a amiga apaixonante, acabou se tornando parceira de Allen em várias outras produções, o que confirma a lição final de Casablanca, na qual o grande gesto de amor pode ocorrer no ato de começar/preservar uma amizade.

Bogart, a personagem, desaparece da vida de Allan ao fim da narrativa. Bogart, o ator, continuou presente nos filmes de Allen com aquele seu meio sorriso resultado de um ferimento banal no lábio durante a Primeira Grande Guerra. Outro fã do ator, o diretor francês Jean-Luc Godard, como que iniciou esse fascínio por Bogart com Acossado (1960), no qual Jean-Paul Belmondo mimetiza os trejeitos cênicos do astro estadunidense.

Não é complicado compreender o carisma crescente do profissional que adorava atuar. Bogart não era o sujeito boa praça como James Stewart, ou um galã conquistador como Clark Gable, ou um valentão heróico como John Wayne, e tampouco um belo e romântico intérprete como Cary Grant. Por assim dizer, Bogie ficava numa curiosa fronteira entre todas essas qualidades, mas fugindo de rótulos que nunca deram conta de tudo o que fez. No final da história, aconteceu que Humphrey Bogart não se tornou um mito. Ele se tornou nosso amigo.

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Ladrões de Bicicletas (1948), de Vittorio De Sica, e Marcelo Zona Sul (1970), de Xavier de Oliveira


Que devir é este que se oculta pela próxima esquina? O ir-e-vir não se abate pelo trânsito em julgado, como aqueles grandes filmes que se sustentam numa história mínima e, justamente por isso, relevante como o preencher do universo. Em jornadas que não se querem Road Movies, podemos situar com alguma empatia nostálgica tanto Ladrões de Bicicletas (1948), de Vittorio De Sica, quanto Marcelo Zona Sul (1970), de Xavier de Oliveira. Pedir carona após a inadequação social ou recompor a vida pedalando num país destruído por uma guerra: a simultaneidade está na equivalência de um sentimento que não pode ser medido.

Em Ladrões de Bicicletas, Vittorio De Sica reduz as esperanças de uma vida parada, ainda que em reconstrução, ao objeto típico de cidades pequenas, meio de locomoção que faz o tempo-ele-mesmo se recompor: a bicicleta. O ressurgimento independe de outras objeções qual não seja a vontade, nada mais que aquela vontade. Engana-se quem pensa na redescoberta de uma Itália que busca um rumo diferente pós-Segunda Grande Guerra; está muito mais para um dissabor que se assume como sincero e oneroso. Muito mais uma compreensão do que propriamente um perdão. Talvez daí a escolha de tornar o filho mais eloquente que o pai. E De Sica nos deixa a questionar a importância de ser coadjuvante ou principal – e assim o fazem também Lamberto Maggiorani e Enzo Staiola, pai e filho na película.

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Enzo Staiola e Lamberto Maggiorani em Ladrões de Bicicletas

Noutro país, a dor novamente compartilhada. Porque tudo se transforma em tema político e também cultural, impossível dissociar Marcelo Zona Sul de seu tempo. Apenas dois anos após o governo brasileiro decretar o Ato Institucional n.º 5, um casal de adolescentes faz valer o hoje. Num país comandado por militares, Marcelo desobriga-se das leis, da tradição familiar, da rigidez escolar. O tempo dele é o presente porque sente que seu lugar é o mundo. Conhecê-lo, mesmo que seja pedindo carona, está para si como uma obrigação moral. Até sua namorada compartilha dessa angústia que se transforma em desejo. Eis a vontade, outra vez, pedindo licença. Xavier de Oliveira se ambienta nesse cinema ciente de suas influências, vide a própria otimização do preto e branco quando a cor já se fazia aquarelar. Ainda que jovens, Stepan Nercessian e Françoise Forton sustentam suas personagns numa dor sublime e subliminar típica da idade.

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Françoise Forton e Stepan Nercessian em Marcelo Zona Sul

Ladrões de Bicicletas e Marcelo Zona Sul têm desfechos semelhantes, invertendo o final feliz em função de uma novidade mais crua (Neorrealismo italiano / Cinema Novo brasileiro). Nalguma medida comparativa, as tristezas se equivalem quando ocultas, justamente para permanecerem belas.

Ilha do Medo (2010), de Martin Scorsese, e Aterrorizada (2010), de John Carpenter


Quão são os artistas se apresentam na composição de suas obras? Ao abordar a insanidade, a psicose ou o tresloucamento alheios, estariam seus criadores também num nível de irrealidade tão próprio à ficção que compõem? Vejamos os casos de Ilha do Medo (2010), de Martin Scorsese, e Aterrorizada (2010), de John Carpenter, obras de um mesmo tema, mas construídas sobre bases inequivocamente antagônicas.

Com a mão frouxa desde Vivendo no Limite (1997), Martin Scorsese pouco sabe o que fazer quando se encontra fora do ambiente da violência social. E esta parca certeza aparece em praticamente todas as camadas de Ilha do Medo. Os trejeitos, vícios cênicos e outras peripécias de Leonardo DiCaprio também contribuem para o esvaziamento audiovisual de um autor que se perdeu para sua própria técnica. O mundo da loucura pelo qual transita o detetive do FBI, Teddy Daniels (DiCaprio), escorre qual um efeito especial sem razão de ser. Mesmo almejando o medo provocativo ou um exercício de compreensão narrativa, roteiro e direção soam didáticos em demasia. Então, as reviravoltas que teriam valor punitivo para outros cineastas do gênero (Hitchcock, Shyamalan) ou alegórico/farsesco (Argento, Kubrick) perdem-se na casualidade rítmica que vem se apoderando de Scorsese cada vez mais neste século XXI. As passagens que apresentam o passado do detetive Teddy num campo de concentração em plena Segunda Grande Guerra ficam deslocadas a tal ponto que teria sido melhor guardar aquelas sequências para um filme que tratasse justamente do conflito em si, e não das perturbações mentais de um investigador federal que vê sua falecida esposa a cada quinze minutos. De todo modo, Ilha do Medo permanece numa difusa fronteira entre a diversão trivial dos filmes de suspense e uma apatia das personagens que conduzem a narrativa.

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Leonardo DiCaprio em Ilha do Medo

Enquanto Scorsese fracassa de maneira retumbante com seus delírios de diretor, John Carpenter projeta sua protagonista para além de suas próprias capacidades em Aterrorizada. Amber Heard deixa a inexperiência de lado e se torna o verdadeiro alter ego (ou alter cerebrum, por relação) de seu diretor numa história que alterca falta de memória com as surpresas características dos loucos. O eixo narrativo tem quaisquer aproximações com Ilha do Medo, mas está calcado na maestria do cineasta ao compor um painel elucidativo com uma elegância pouco comum no cinema industrial contemporâneo – o que, talvez, ajude a explicar sua diminuta filmografia nas duas primeiras décadas deste novo milênio. Aquele mesmo tempo que outros perdem em insinuações estilísticas, Carpenter condensa na dialética da protagonista Kristen (Heard): a razão mais emocional dentro de um sanatório ocupado por jovens mulheres. Quando assistimos ao filme pela segunda vez, damos com a certeza de que as cartas na manga do cineasta aparecem de imediato. Assim, permitimo-nos deixar levar pela contemplação lúcida num filme de terror tão elegante quanto sofisticado.

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Amber Heard em Aterrorizada

Um dos poemas mais conhecidos de Fernando Pessoa, sob o heterônimo de Ricardo Reis, afirma que para alcançar a grandeza é necessário ser inteiro; “nada teu exagera ou exclui”. Conselho renegado pela técnica preguiçosa de Martin Scorsese, mas que teve em John Carpenter uma veemente assimilação. Prossegue Reis: “Sê todo em cada coisa. Põe quanto és | No mínimo que fazes”. Novamente, um mantra que acompanhou Carpenter ao longo das décadas e ignorado por Scorsese desde a segunda metade dos anos 1990. Dois relevantes cineastas, mas só um deles permaneceu sofisticadamente louco para continuar a ser um artista.

Um Homem Bom (2008), de Vicente Amorim


Uma frase clássica do Descartes que volta e meia me aparece nas ideias diz que “o bom senso é coisa mais bem repartida deste mundo, porque cada um de nós pensa ser dele tão bem provido, que mesmo aqueles que são mais difíceis de se contentar com qualquer outra coisa não costumam desejar mais do que o que tem”. Eis o distúrbio sutil que acomete a personagem de Viggo Mortensen em Um Homem Bom (2008), de Vicente Amorim. A produção dirigida pelo brasileiro, estrelada por um estadunidense e coproduzida por dois países outrora rivais na Segunda Grande Guerra (Inglaterra e Alemanha) procura deixar de lado os horrores físicos para se dedicar à corrupção de um homem que qualquer um consideraria uma boa pessoa. Amorim mostra talento quando orienta Mortensen a investir no ar introvertido e, evidentemente, controverso de um professor que se deixa levar pelo status do establishment nazista. A película inicia com algumas idas e vindas no tempo e na vida do professor de literatura John Halder, mas se configura numa crescente imersão no ideário do governo alemão e, principalmente, coloca a perseguição aos judeus apenas como uma atividade de controle social. Isto, é claro, sob a ótica do estado alemão. Assim o governo faz crer que todos aqueles que toleravam o nazismo também eram homens (e mulheres e crianças) bons. Jason Isaacs, no papel do amigo judeu de Mortensen, é o bon vivant que não concorda com a atual conjuntura nazista. Halder titubeia até mesmo para ajudar seu grande amigo, porque o poder só exalta as fraquezas. E tudo o mais é uma questão de bom senso, mesmo que não seja tão bom assim.

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Julgamento em Nuremberg (1961) e Adivinhe Quem vem para Jantar (1967), ambos de Stanley Kramer


Por quaisquer motivos explícitos ou ocultos, a década de 1960 foi privilegiada em contestação criativa. O cinema entrou nessa maré por diversas formas, que passaram da Nouvelle Vague ao revisionismo histórico com aquele mesmo ímpeto provocativo. O ainda recente fim da Segunda Grande Guerra favoreceu essa crítica que também está nestes Julgamento em Nuremberg (1961) e Adivinhe Quem vem para Jantar (1967), ambos do produtor e diretor Stanley Kramer.

O trabalho de Kramer nas duas obras se dá praticamente em uma mesma locação, com poucas tomadas externas. Une-se às películas, ainda, o excepcional desempenho de Spencer Tracy, talvez o menos lembrado dos grandes atores, mas que traz consigo um rosto popular, ao modo que James Stewart imortalizou. Quando Tracy está em cena, mesmo nos momentos em que apenas observa os demais, sentimo-nos compadecidos de suas reações: e ele sempre reage sem disfarçar a sinceridade de sua atuação.

Julgamento em Nuremberg não é apenas uma oportunidade de avaliar o passado, como sugerem vários dramas históricos. De algum modo, Stanley Kramer olha muito mais para o presente e o futuro do que para os colaboradores do nazismo de outrora. Sua câmera respira dando tempo ao tempo, o que designa a dimensão da humanidade nos gestos mais comuns de suas personagens, como o choro doloroso de Irene Hoffman (Judy Garland), o incômodo fragilizado de Rudolph Petersen (Montgomery Clift) ou os gestos delicados de amizade entre a Senhora Bertholt (Marlene Dietrich), viúva de um general alemão, e o juiz estadunidense Dan Haywood (Tracy). São as histórias das pessoas comuns, longe dos quartéis e dos fronts de batalha, que têm vez no ambiente fechado do tribunal, amplamente explorado por Kramer. A surpresa de Haywood para com as atitudes do também juiz alemão Ernst Janning (Burt Lancaster) inibe a condescendência num país que perdeu mais do que imaginava após o devastador conflito. O peso da sentença de Haywood, afinal, não lhe será tão importante quanto o entendimento de uma era de extremos. Aquele estranho período entre guerras no qual Hitler tanto aconteceu quanto pareceu, em dada circunstância, a única via para recuperar a Alemanha. O Holocausto, fato selado pela história, permanecerá feito um aviso nos dias vindouros. Já os crimes de guerra julgados em Nuremberg serão, a posteriori, uma ingênua vitória sobre aquela verdade destruída que culminaria na Guerra Fria.

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Spencer Tracy e Marlene Dietrich em Julgamento em Nuremberg

Longe das guerras, mas ainda sob o viés de um conflito (racial, mas nunca racista), temos o insurgente Adivinhe Quem vem para Jantar que traz Sidney Poitier numa das mais vigorosas atuações daqueles anos revolutos. O relacionamento entre o viúvo negro John Prentice (Poitier) e a entusiasmada garota branca Joey Drayton (Katharine Houghton) causa dois tipos de conformidades nos pais dela, interpretados por Tracy e Katharine Hepburn, na última parceria do casal. Christina Drayton, a mãe, assusta-se pela rapidez dos acontecimento, mas logo entende que a felicidade de sua filha é o que conta. O pai, Matt Drayton, a priori, não se opõe à união, mas sim às consequências do ato numa sociedade dividida pela cor da pele. Ambientado quase inteiramente dentro de uma casa, o que mais sobram em Adivinhe Quem vem para Jantar são espaços para autocrítica e retórica urgente, com destaque para os aguerridos diálogos entre John Prentice e seu pai, bem como para o discurso revelador de Matt Drayton ao final da película.

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Sidney Poitier, Katharine Houghton, Katharine Hepburn e Spencer Tracy em Adivinhe Quem vem para Jantar

Nestes momentos de confronto e compreensão, Stanley Kramer reafirma seu compromisso para com o cinema e a sua época.

Caçadores de Obras-Primas (2014), de George Clooney


George Clooney, que escreve e dirige este Caçadores de Obras-Primas (2014), possui uma carreira autocontrolada como poucos astros da atual Hollywood. Quando estrelou Batman & Robin (1997), de Joel Schumacher, o ator precisava de um filme-evento para tornar seu rosto viável no meio do cinema. Deu certo, mesmo com o retumbante fracasso do filme que enterrou a franquia do herói mascarado por oito anos. Clooney aprendeu com o erro. Desde então, já faturou um Oscar como melhor ator coadjuvante por Syriana – A Indústria do Petróleo (2005), de Stephen Gaghan, e outro como produtor pelo filme Argo (2012), de Ben Affleck.

Acontece que o ator, produtor, roteirista e diretor também se tornou um ativista ou coisa que o valha. Por consequência, volta e meia damos com notícias de seu engajamento em questões políticas e sociais. Em 2012, chegou a ser algemado e preso, acusado de invadir a embaixada do Sudão em Washington, em protesto contra as ações do presidente Omar al-Bashir. Deste modo, o principal nome do cinema oriundo da série televisiva Plantão Médico (1994-2009) divide sua carreira entre megaproduções e filmes de baixo orçamento, nos quais aborda temas mais complexos.

Quanto aos filmes que dirige, Clooney ambiciona discutir situações sérias e importantes para sua visão democrata. No entanto, falta-lhe o talento necessário para ficar atrás das câmeras com a mesma segurança que tem ao atuar. Nalguma medida, ele não soube aproveitar o fato de ter trabalhado com diretores inventivos e originais, caso de Robert Rodriguez em Um Drink no Inferno (1996), Terrence Malick em Além da Linha Vermelha (1998) ou de Alfonso Cuarón em Gravidade (2013).

Mas em Caçadores de Obras-Primas, sua inspiração parece ser mesmo a do inconstante diretor Steven Soderbergh, com quem trabalhou meia dúzia de vezes, sendo três destas na trilogia iniciada com Onze Homens e um Segredo (2001). Assim como na película de Soderbergh, Clooney também chama uma penca de atores famosos para contar sua história. Neste caso, porém, os homens que buscam as obras de arte roubadas pela Alemanha nazista durante a Segunda Grande Guerra são inspirados em pessoas de verdade, com nacionalidades distintas – o que dificulta ainda mais para o diretor, arraigado em valores tipicamente estadunidenses.

Imaginamos que Clooney almejava prestar uma homenagem para estes heróis de guerra, cuja missão consistia em preservar uma parte importante do patrimônio cultural e mundial. Pena que a intenção louvável se perde numa narrativa sem sobressaltos e tão previsível como a derrota do Terceiro Reich. Suas cenas curtas não carregam nem mesmo aquela agilidade divertida como nos truques narrativos de Soderbergh; seus atores não são exigidos (vide a falta de entusiasmo nítida em Bill Murray e Matt Damon); para completar este tom de desacerto, o lado cômico sugerido nas relações entre os caçadores tampouco melhora o enredo do filme.

Ao final de suas próprias batalhas, George Glooney parece não ter tanto autocontrole assim, pelo menos quando está sentado na cadeira de diretor.

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Fuga Para a Vitória (1981), de John Huston


Justamente porque se trata do evento mais espetacular e terrível da era contemporânea, a Segunda Grande Guerra permite um infindável número de recortes e interpretações. Das batalhas épicas aos dramas de sobrevivência, escondem-se milhares de alternativas tão distintas quanto curiosas. O futebol, por exemplo, é o tema geral do filme Fuga Para a Vitória, de John Huston, ambientado na Alemanha nazista de 1943. Eis aqui uma desengonçada versão do gênero “fuga de prisão”, tendo por leitmotiv um jogo de futebol que coloca num lado do gramado os prisioneiros aliados e, do outro, um time formado por alemães. As presenças de Michael Caine, Sylvester Stallone, Max Von Sydow e Pelé – sim, o próprio Atleta do Século XX – só fazem aumentar o clima de fábula antiguerra que apenas no cinema é possível existir. Divertido como uma pelada disputada num campo de barro e lama.

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