Sobre a crítica


A crítica por si só é um motivo de admiração contida, mesmo que seja contrária ao produto-objeto em si, traduz-se como fenomenologia típica de um prazer necessário, espécie de catarse emotiva, de afeto conflituoso, donde apenas os cernes são levados em conta, quando não são efêmeros ou meramente subprodutos de uma cultura evidentemente de massa. A tradição da crítica é, em termos, um anticonsenso pré-estabelecido por suas próprias amarras intelectuais. Em outras palavras, não há como ligar única e exclusivamente uma cultura ou tradição da crítica diretamente aos produtos culturais que a originam. Tal discurso seria possivelmente nefasto e hediondo, uma brincadeira de mal gosto cuja volúpia por si mesma é tamanha que não encontra os próprios pés. Não há termos paradigmáticos, pois, que legitimem um discurso desprovido de consenso ulterior.

Um domingo qualquer


Não há dia mais esquisito do que o domingo. Cheguei nessa conclusão quando percebi que em tais ocasiões domingueiras eu sempre me coloco à parte das conversações. Tenho a nítida certeza de que os domingos não foram feitos para os solitários, tampouco para os tímidos. A solidão é ainda pior do que a timidez, mas é possível ser ainda mais solitário no domingo, enquanto a timidez se amaina no decorrer da semana. Quando se está no meio daquela balburdia familiar, na qual estranhamente todos parecem se entender, dou com sensações de presenças e faltas – ambas afetivas e efetivas. Seria o “contentamento descontente” tal e qual no soneto de Camões? Receio, pois, que o domingo seja uma quebra no espaço-tempo da qual não existe nenhuma escapatória. Ah, bendito seja o sábado que não impõe estas agruras domingueiras em nossas vidas.

Solidão não faz sentido


A conhecida e hipotética pergunta “quem você levaria para uma ilha deserta?” esconde em si mesma uma das maiores mentiras da humanidade: não há como ser feliz na solidão, mesmo se compartilhada. A dúvida primeira na ilha deserta é ainda aquela que guiou mulheres e homens desde os primórdios dos tempos. Os deuses antigos criaram a humanidade porque se sentiam solitários. Eva descobre a maçã e a reparte com Adão porque quer saber dos outros – a unidade-complementar não lhes basta.

Penso que a vida mais completa para um religioso não se dá por meio de uma dedicação exclusiva a sua divindade, mas sim no compartilhar o melhor do si com seus semelhantes. Nas páginas da literatura, a personagem Robinson Crusoé, de Daniel Defoe, jamais está solitária de fato, mesmo que isto lhe pareça ser o fardo de um único sobrevivente de um naufrágio, abandonado ao próprio destino numa ilha que parecia ser desabitada. Primeiro, Crusoé encontra alguma companhia ao preencher as páginas de um diário. Depois, o nativo Sexta-Feira, assume o lugar.

Menos sorte teve Chuck Noland, personagem cuja desventura é apresentada no filme Náufrago, de Robert Zemeckis. Após uma queda de avião no meio do oceano, Noland encontra refúgio numa diminuta ilha, então, deserta de fato; ainda assim, uma bola de vôlei faz as vezes de amigo imaginário. Wilson – a nomeada bola – é essa eterna procura pelo outro que não cessará até o último ser humano deixar de existir.

Mesmo nas mais tenebrosas situações, a solidão não faz sentido e seu único propósito consiste em nos lembrar que uma ilha deserta é o último lugar no qual gostaríamos de estar.

O trabalho do cronista


Palavras dialogam com o tempo e o espaço. Qualquer registro escrito sempre ocorre nalgum lugar, sob determinadas circunstâncias. E tais situações podem até mudar o mundo, fazendo nascer um país, por exemplo. O Brasil surge enquanto conceito bruto a partir de sua certidão de nascimento escrita por Pero Vaz de Caminha na Carta a El Rey D. Manuel. Em 1500, portanto, inaugurava-se a produção literária nestas terras então quase virgens com aquilo que poderíamos chamar de primeira crônica brasileira.

Caminha arremata seu texto: “E nesta maneira, Senhor, dou aqui a Vossa Alteza conta do que nesta terra vi; e, se algum pouco me alonguei, Vossa Alteza me perdoe, que o desejo, que tinha, de tudo vos dizer, mo fez pôr assim pelas minúcias”. Tal qual fazem os cronistas atuais, o escrivão daquele mal chamado “descobrimento” também estava atento aos detalhes e recortes específicos do cotidiano.

Demasiadas histórias se dão entre aquele texto quinhentista e a crônica que se produz hoje nas páginas da internet ou nos poucos jornais impressos ainda em circulação. Para efeito prático, vamos nos ater somente ao trabalho do cronista ligado ao jornalismo neste século e no passado. Destarte que, como criação jornalística, a crônica não se enquadra na categoria de ficção e tampouco de gênero literário. Ou talvez se enquadre em ambos, dependendo dos critérios de avaliação.

No jornal impresso, a crônica tem como padrinho o pontual e como madrinha a transitoriedade. O mestre Antônio Cândido avisa que a crônica “não tem pretensões a durar, uma vez que é filha do jornal e da era da máquina, onde tudo acaba tão depressa”. A partir da realidade industrial, capitalista e contemporânea (ou seja, quando da modernidade), o uso do tempo está ligado ao dinheiro e o cronista procura alguma sutileza nestes processos sociais gigantescos. Mesmo sem dar por isso, talvez o objetivo seja flanar entre a arte que se ambiciona infinita e esquecimento no dia seguinte.

A espontaneidade do texto da crônica possibilita o equilíbrio necessário para a união do literário com o coloquial. A abordagem aparentemente descompromissada da crônica não implica necessariamente em textos medíocres. Como em toda profissão, oportunidade e talento conversam entre si. Escrever de forma simples pode se revelar tarefa árdua para esses escritores do cotidiano. Cabe ao cronista “ser leve, nunca vago; íntimo, nunca intimista; claro e preciso, nunca pessimista. Sua crônica é um copo d’ água em que todos bebem, e a água há que ser fresca, limpa, luminosa para a satisfação do real dos que nela matam a sede”, nas palavras do poeta Vinicius de Moraes.

O trabalho do cronista também é escolher o mínimo dando-lhe a feição do máximo. Tão pretensioso intento traz alguma dificuldade pelo caminho, mas escrever esta Odisseia em miniatura pode ser sobremaneira divertido. E pouca importa se a obra vai para a lixeira assim que o leitor se dá por satisfeito.