Essa crise de sempre


Sei, colega, sei que às vezes a gente não percebe, mas há sempre alguma crise por aí – ou em todo lugar. Qual um sacrifício compartilhado por todos, menos alguns. Porque nunca foi, é ou será igual para qualquer um. E existem estatísticas o suficiente para comprovar as mais diversas teorias. Crise: palavra curta; quase um grito. O “cri” no início ganha nuanças de arrebatamento quando associado ao “se” do fim. Se a hipótese ganha confirmação, o momento crítico chega para valer. Colega de outras crises, a gente sabe das dificuldades para escapar de dias assim. Os votos de sucesso não são o bastante. Alguém culpa as guerras, outro alguém responsabiliza a inflação. Desculpas, em geral esfarrapadas, para a obviedade que escarnece sob nossos narizes: o modelo de humanidade fenece ao rés do chão. Somos todos – aqui, sem exceção – indivíduos forjados pelas crises, pois temos uma incrível capacidade de adaptação frente ao horror. Somos gente e erramos. Sei, colega, sei que essa crise ainda vai longe. E a gente avisou.

Monólogo dos anjos


Eu que não falo a língua dos anjos tenho uma vaga noção do amor e escrevo por isso ou apesar disso. É sempre uma experiência incompleta essa de definir as coisas. Se conheço o que é verdade, talvez tive sorte quando todas as estatísticas pesavam contra mim. Sei que estou certo, todavia; na certeza do erro, ao menos. Sonho ou poesia, tanto faz para um apostador. Vai da sorte de cada um. Vaivém de sentimentos – já me avisaram que encontrar a si mesmo não é simples como quando do reflexo no espelho. Miro em mim e vejo tantos, do passado ao agora. Alguns dos que me compuseram ainda estão por aí. Meia dúzia deles têm nomes de santos e continuam sentados à janela, acompanhando meus passos à distância, lançando feitiços de proteção à revelia. Só os anjos conhecem todos os caminhos do mundo para serem justos o suficiente. Acho que eu já prometi demais. E sigo o rastro dos meus débitos com a língua ocupada por gostos insólitos. Escrevo, machucado, sobre aqueles que aprenderam a amar. De mim, espero apenas conhecer o verso. E não duvido de que isto seja a resposta para aquelas minhas preces juvenis. Os anjos não falam comigo, mas escutam.

Subjetividades distópicas


Transformar certezas objetivas públicas em subjetividades individuais se tornou um hábito infeliz na pós-modernidade. Pitadas disruptivas no senso comum de quando em sempre. Todos os dias presentes estão disponíveis à desqualificação do discurso. Pessoas e medidas sofrem alterações sem quaisquer prerrogativas conceituais. Eis a arena do vale-tudo na qual a disputa em si se revela uma farsa desde o embrião. A razão infecunda; coerência solapada pela idiotia que renega as narrativas civilizacionais. No adendo, o alerta: civilizações não são um salvo-conduto soberano! A falta de perspectivas (econômicas, sobretudo no atual contexto do capital) arremata o agravo à lógica. Forças desarmadas ansiosas por uma combustão espontânea que poderá nunca chegar. Entre estes apontamentos que visam desorganizar o tecido social, o fomento das subjetividades destaca-se à mesa das tradições democráticas. O banquete refeito à sombra da aleatoriedade. Seria, pois, uma ávida corrida pelo fim das teleologias? Vagas hipóteses. Antes, por suposto, convém identificar todos os agentes e/ou entidades envolvidos no financiamento destas especulações. Sim, há aqueles que apostam o tempo todo, independentemente das consequências civis. Dentro de um projeto sem regras, também é possível dar continuidade aos fatos. As distopias estão dispostas naquela mesa, aguardando uma oportunidade para evoluir.

Padrões e não à toa


As pessoas se incomodam com muitas coisas, mas não deveriam se incomodar com o fato de que as pessoas buscam por padrões. Não é necessariamente preconceito ou má vontade. Trata-se de um simples mecanismo (ainda que culturalmente complexo) de defesa ante isso que chamamos de realidade. À realidade cabe um diagnóstico de coerência se desejamos que esta guarde algum sentido para consigo. A partir daí, a tradição se insere dando estrutura aos padrões, organizando-os de acordo com os contextos sociais (as mudanças de linguagem, as mudanças tecnológicas…) que carregam em si mesmos novas formas de padronização. Um exercício de adaptação ao ambiente predominante. De modo que se você for o único de chapéu num ambiente de cabeças descobertas, seu chapéu se torna o foco das atenções. Com argumentação similar, vão reparar nas suas tatuagens, na sua falta de cabelo, na cicatriz da sua testa, na cor de sua pele, no formato do seu rosto, no tamanho de seu cabelo, nas cores das suas roupas, na ausência das suas roupas, nos céus e nos infernos que cada um de nós carrega consigo nesta fuga do caos. Os padrões estão todos por aí, espalhados na infinitude do cosmos, muito antes da moral tomá-los para si com um discursinho mequetrefe. Não se incomode à toa.