A Outra Face (1997), de John Woo


Um dos grandes filmes de ação da década de noventa, A Outra Face (1997), de John Woo, antecipa em 11 anos os dramas existenciais de Batman  O Cavaleiro das Trevas (2008), de Christopher Nolan. A transformação Castor Troy / Sean Archer (e vice-versa) vai além das insinuações do Coringa ao comparar Batman a si mesmo com vetor trocado. Nicolas Cage e John Travolta são encarnações alheias que têm de lidar com conflitos internos justamente porque se encontram um sob a face do outro. O passar da mão sobre o rosto do filho para Sean Archer e o amarrar dos cadarços do irmão para Castor Troy nuançam feito lembranças do passado recente que nem mesmo as mudanças de rostos foram capazes de alterar. Eles não realizaram apenas uma troca de faces, mas também tiveram de assumir traços das personalidades alheias. O diretor já disse nalguma oportunidade que pensa suas cenas de ação como um coreógrafo elabora cenas de um musical – e a homenagem ao gênero cantado está lá com Over de Rainbow. As cenas de confronto, principalmente o balé aquático quase ao final, têm quaisquer ingredientes de um Vincent Minnelli dirigindo Gene Kelly em Sinfonia em Paris (1951). A música para, mas a ação continua para o maestro John Woo.

faceoff

Vício Frenético (2009), de Werner Herzog


Para o cidadão comum, aquele que paga impostos e compra meias para dormir no inverno, deparar-se com um filme qual este Vício Frenético (2009), de Werner Herzog, pode soar um exagero social —situações que lhe seriam distantes, mesmo que viesse a ter com elas nalgum momento de sua vida. A imoralidade, então, não se apresenta apenas como uma ideia de vitimização social, mas sim feito condição sine qua non do caos que a sociedade costuma chamar de progresso.

Nas sequências de Vício Frenético, o policial Terence McDonagh (Nicolas Cage) tem uma visão estreita e criativa do que é necessário para si e para os outros. Parafraseando o velho jargão maquiavélico, os fins são sustentados pelos meios e, por isso, a violência, o uso de substâncias ilegais e o desrespeito com as leis têm muito mais a ver com o cotidiano que lhe permite ir além do que com o julgamento moral do que é certo ou errado. Herzog joga na cara do espectador as mentiras pregadas por essa ideia de que tudo parte de uma dualidade natural.

Difícil não lembrar de outra joia rara dos filmes que exageram a realidade, mas que partem de uma sinceridade intrínseca que poucos documentários alcançam: Taxi Driver (1976), de Martin Scorsese. Enquanto o motorista de táxi Travis Bickle (Robert De Niro) se transforma e avilta a sociedade com seus distúrbios cosmopolitas elencados por um talentoso e distante Scorsese, o policial sintetizado por Herzog já inicia a película aviltado pela fragilidade daquela mesma sociedade. Os medos de Travis e Terence são muito mais pessoais do que alheios. Num mundo obsceno, os problemas de terceiros não explicam suas insônias; nem o policial e tampouco o taxista querem mais do que já têm. Os insucessos particulares limitam o convívio de ambos, seja no duro cotidiano profissional, seja em conturbados relacionamentos íntimos.

Por falar em Scorsese, soa quase tragicômico que a atuação de Cage seja muito mais acertada neste Vício Frenético do que naquela produção do diretor nova-iorquino chamada Vivendo no Limite (1999). Na pele de um tresloucado paramédico que dirige uma ambulância em Nova Iorque, Cage se deixa levar por um pseudo-exagero de um cineasta que já não consegue mais repetir ou superar o ritmo de suas produções setentistas ou oitentistas. E o que soa legítimo em Vício Frenético padece de um conformismo estilístico em Vivendo no Limite.

O cidadão comum tem a sorte de contar com o cinema para confrontar estes exageros sociais de perto. Porque sempre será necessário discernir a ficção pregada pelo Estado de que tudo está bem, obrigado.

badtenente

Sweeney Todd – O Barbeiro Demoníaco da Rua Fleet (2007), de Tim Burton


O que se pode dizer hoje de um musical-terror dirigido por Tim Burton não será o mesmo que será dito amanhã ou depois. Sweeney Todd – O Barbeiro Demoníaco da Rua Fleet (2007) é dessas obras que não se compreendem quando de seu lançamento. É possível até mesmo arriscar que os grandes sucessos de bilheteria de Burton serão vistos como obras importantes, mas poderão ser consideradas menores em sua carreira. Ficarão, sim, filmes definitivos do modus operandi de Burton, como Batman – O Retorno (1992) ou Ed Wood (1994). Mas com Sweeney Todd, pelo menos por alguns anos a partir de seu lançamento, ficará para alguns poucos aquela sensação do que poderia ter sido. Não fosse pelo gênero pouco próximo deste início de século – o musical, pois –, Tim Burton realizaria a obra-prima que seus críticos otimistas jamais sonhariam? Jamais saberemos.

Sweeney Todd traz consigo a essência narrativa e visual daquilo que chamamos de Cinema. O talento que cabe ao diretor emerge na possibilidade estilística de imprimir uma falsa sensação de hiper-realidade, mesclada com as intenções típicas do Expressionismo Alemão (esboçado na sutileza das fortes maquilagens) e ainda com fundamentos básicos do cinema clássico estadunidense. 

Ao assistir Sweeney Todd, o processo criativo do diretor se reconstrói. Lá está uma sobriedade que já se fazia característica em todos os trabalhos anteriores de Burton, mesmo sem darmos por isso. Sobriedade essa ofuscada pelos elementos visuais que tornaram seu cinema icônico e, até mesmo, autorreferencial (coisa que se quer ausente em Sweeney Todd).

Entrementes, o que desconfigura o sentido de obra-prima em Sweeney Todd? Ora, justamente a complexidade do gênero musical. O diretor ressignifica o gênero e subverte a parte dramática dos atores quando estão cantando ou dançando (esta última atividade, porém, quase é nula em toda a película). Mas o problema (!?) de nossa época expectante tem muito a ver com a percepção de estratagemas, trejeitos ou similaridades quaisquer com aquele musical de outros tempos, quando Gene Kelly ou Fred Astaire definiram um complexo sistema cabedal do uso da música enquanto entidade de atuação – algo similar se dera com Alfred Hitchcock e o suspense.

Para Tim Burton, essa busca por um novo sentido do musical enquanto mise-en-scène também tem sabor de descoberta. O diretor meio que confessa com suas imagens que esse tatear musical/visual integra a narrativa. Tateando sob um gênero cinematográfico que se lhe quis estranho, o diretor deixou ao mundo porvir a possibilidade de esclarecer tudo aquilo que não conseguimos perceber na atualidade.

Sweeney Todd

Peixe Grande e Suas Histórias Maravilhosas (2003), de Tim Burton


Alguma pretensão só faz sentido aos artistas quando acompanhada de significados e não justificativas. E significados são as principais fontes de sustentação em Peixe Grande e Suas Histórias Maravilhosas (2003), de Tim Burton.

Apesar da falsa impressão que Alice no País das Maravilhas (2010) tenha provocado – pelo menos visualmente –, é com Peixe Grande que o criador chega ao seu Ponto-de-Não-Retorno. Eis seu suspiro criativo final, trazendo elementos presentes em seus trabalhos anteriores que vão além de algumas boas intenções. Temos, então, as opções políticas de O Planeta dos Macacos (2001); o humor suburbano de Os Fantasmas se Divertem (1988) e Marte Ataca! (1996); a descoberta da paixão de Edward Mãos de Tesoura (1990); a sobriedade dramática de Batman (1989) e Batman – O Retorno (1992); a realidade exagerada de Ed Wood (1994); e o tom histórico-fabular de A Lenda do Cavaleiro Sem Cabeça (1999).

Ainda assim, com tantas referências dentro de sua própria identidade autoral, Burton não se deixa levar pela paródia fácil, como ocorre na refilmagem de A Fantástica Fábrica de Chocolate (2005), ou mesmo pela superficialidade cenográfica de Alice no País das Maravilhas, já sugerida de forma definitiva no próprio texto de Lewis Carrol. Há, porém, um interregno ligeiramente fora do circuito de Burton que é O Barbeiro Demoníaco da Rua Fleet (2007) – filme pouco referencial, que busca sentidos estranhos ao gênero musical.

A última questão que Tim Burton parece instigar com Peixe Grande tem a ver com a possibilidade de contar grandes histórias sem a necessidade de se expor para além da sua própria arte. Sob certo aspecto, após este filme, o artista parece ter sentido demasiadamente a responsabilidade da criação, quando seu melhor cinema está intrínseco à liberdade da diversão. Por este viés, saliente-se, apontamos a diversão como característica indissociável da arte, muito diferente do que se convencionou chamar de entretenimento. Logo, o contador de histórias (interpretado ora por Ewan McGregor ora por Albert Finney) escolhe o mundo das ideias e não dos sonhos, sendo este último típico de Terry Gilliam em As Aventuras do Barão de Münchausen (1988) ou em O Mundo Imaginário do Doutor Parnassus (2009).

Antes de escolher quais significados realmente interessam, Peixe Grande trata daquele juízo individual, feito uma história contada de pai para filho, decodificada de maneiras diferentes ao longo do tempo, mas sempre sólida quando se está disposto a aceitar o impossível.

Promotional picture from Big Fish. Released by Columbia Tri-Star.