O fim do prazer


Todos os regimes políticos, se investigados em profundidade, levam à aporia. E o que vem depois da dialética inconclusiva? O desespero. Sobretudo no mundo mediatizado, sem um ponto de sustentação no qual todos concordam.

Daí que o fim da aferição consensual se traduz na enormidade de produção vazia e no conteúdo inócuo forjado pela avidez consumista. Meios e mensagens permanecem esmagados sob uma campanha de marketing do “eu” bem como do “si mesmo”.

Anulam-se os incômodos num enredo fictício; perde-se a intimidade e, pior, ausenta-se a necessidade do estranho, da pauta que não lhe pertence, do entendimento que o outro nos engrandece por oposição. O prazer se esvai num bueiro burguês e apátrida.

Quando a alienação atinge seu ápice, os referenciais são dispensáveis. O caos se instala com ares de suavidade se deixamos de saborear o silêncio da reflexão.

Particularmente, lamento a falta de disposição da maioria em analisar os fluxos do pensamento ou as consonâncias entre os modos de produção e as necessidades ético-morais.

Sobram dívidas de um lado, dividendos de outro, mas quase nada de euforia silenciosa, de prazer venturoso no ócio, de equidades catárticas, de laivos criativos.

A sociedade olha para si e enxerga apenas um casal enrolado num cobertor amarelo e uma mancha esquálida que lembram, vagamente, algo que já foi humano.

prazerklimt
O beijo (1907-1908). Óleo e folha de ouro sobre tela de Gustav Klimt (1862-1918)

As definições do cronista


Quisera definir o amor ou, quiçá, uma coisa menos espetacular como a paixão. Ter respostas para perguntas diretas, simples e objetivas, explicando o que é a vida?, por que existimos?, para onde vamos? Assim, poderia equilibrar os sonhos no mesmo pêndulo da realidade que insiste em se voltar para nós. Com um pouco de obstinação, entenderia essa vontade indômita para com o tempo, o espaço, as coisas belas e sujas que encontramos ao longo do caminho. Tamanho conhecimento teria grande valor para medir as ideias mais sublimes, que se desmancham no ar feito algodão doce tomando vento.

Essa experiência do dia zero ao dia final acontece tendo a companhia constante de incertezas, dúvidas e suspeitas. Não, não é pessimismo. Tanto mistério pode ser ainda mais interessante. Só que um tantinho de fatos definitivos não fariam mal a ninguém. A própria narrativa histórica agradeceria se a verdade tivesse um lado, pelo menos uma vez na história. “Em cada lago a lua toda brilha porque alta vive”. Procure a referência.

Na metade do caminho (ou antes ou depois), você se dá conta de tudo que ainda não aprendeu. Pode ter a ver com as suas escolhas – algumas vezes tem mesmo –, mas é provável que uma imagem qualquer de você mesmo tenha se projetado no primeiro muro ou espelho que se lhe atravessou. Sem mais, nem menos. Único e igual a todo o resto. A vontade foi ainda mais forte do que nas oportunidades passadas. Olhando com cuidado, meio que de repente, parece ser o momento certo para colocar tudo em perspectiva. E é o que se dá neste exato instante. Precisão. Paixão. Amor.

Por um momento ou dois, você ainda insiste em culpar o destino. Eu, particularmente, já deixei de fazê-lo há tempos. Na maioria dos casos, culpas ou responsabilidades só adiam a leitura do contexto, cegam-lhe os olhos feito spray de pimenta em manifestações de rua. Não tenho interesse em visitar sinas e esquinas mais do que uma vez. Tomando fôlego, a odisseia será menos heroica e mais cotidiana. Alguém continuará tramando os tapetes que nunca chegam ao fim porque o personagem principal ainda está perdido, qual o filho que volta para casa depois dos 30 anos.

Quem não encontra respostas ou definições continua a tecer crônicas. Nisso eu acredito.

> Crônica publicada no jornal Notícias do Dia em 22/06/2017.

Contar uma história


Após a leitura do título, um aviso essencial: qualquer pessoa pode contar uma história. Variam intenções e formatos, mas o drama humano é sempre o ponto de partida. Você pode falar de outras espécies vivas, deste ou de outro planeta, ou mesmo traçar uma narrativa sobre objetos inanimados. Não importa. O drama estará ali, em seu sentido verbal e não naquele popular que o assemelha ao desespero.

Qualquer história parte sempre da própria experiência. Um biógrafo jamais conseguiria escrever sobre alguém sem jogar em seu biografado suas próprias expectativas. Tanto faz gostar ou não dos personagens (reais ou fictícios), o autor escolherá o recorte que dirá um tanto de si e outro tanto do outro.

Sim, isso acontece com os cronistas também. Quando nosso texto fica enquadrado dentro do jornal, temos uma liberdade limitada pelo conhecimento que adquirimos e nada além disso. Ninguém pode escrever pelo outro – só assinar pelo outro, o que não passa de pura vigarice. Os mínimos fatos e argumentos que se transformam em crônicas vieram de muito longe para ganhar a forma final. Mesmo assim, depois de publicada, não raro o autor faria mais uma revisão, alterando uma palavrinha apenas, porque a perfeição nunca chega e temos de nos conformar.

Contar uma história pode transformar um momento trivial num momento único. Até os temas mais cotidianos, como a violência, a corrupção e o fim do namoro ganharão contornos singulares quando a inspiração do autor encontra o respaldo necessário no ato de criar. Rio encontra o mar; as águas oceanam-se. Uma crônica não é muito diferente disso, só que bem menos molhada.

Não acredito que existam receitas infalíveis, seja para bolos de chocolate ou para bolar uma história. Uns e outros dependem de muitas variáveis, incluindo, evidentemente, o receptor. Se saborosos ou não, bolos ou histórias fogem ao controle de quem os criou. Ainda assim, acredito que há sempre possibilidades de ser bem recompensado, mesmo que a satisfação esteja na obra em si.

O show não pode parar assim como a história tende a continuar. O próximo a contar mais sobre o drama humano pode fazê-lo com a certeza de que terá de nós alguma compaixão – afinal, padecemos do mesmo bem.

> Crônica publicada no jornal Notícias do Dia em 25/05/2017.

Em tempo


Creio que não exista pessoa que nunca quis viajar no tempo, principalmente para o passado. Aquele desejo de consertar as coisas ou conviver novamente com figuras que já partiram faz parte desta mistura entre ficção científica e nostalgia. A ciência nos leva a acreditar que, quanto mais o tempo passa, mais estamos perto de dobrar o tempo à nossa vontade. E isso parece sobremaneira injusto com quem veio antes.

Todo mundo deveria ter uma cota de viagens no tempo. Poderíamos viajar uma vez aos trinta anos e outra aos sessenta, por exemplo. Assim, ajeitaríamos aquelas coisinhas que ficaram não ditas pelo medo de não dar certo. Hoje, porém, sabemos o resultado. Compreendemos que muito do que fizemos ou deixamos de fazer teve implicações questionáveis, ainda que importantes. Olhar para trás é buscar o entendimento: o texto só faz sentido depois de lido.

A ideia de uma máquina do tempo soa fascinante, mas principalmente excludente. É preciso tempo (claro!), dinheiro, uma boa dose de loucura e outra de conhecimento científico para elaborar tamanha empreitada. Além do mais, o criador de uma máquina assim certamente a trataria com egoísmo justamente por participar de um poder que, em princípio, só caberia a uma divindade. Quem rala para colocar a comida na mesa no dia seguinte jamais teria tempo para bolar algo tão mirabolante e, quando muito, ficaria sabendo disso apenas pelos jornais.

Sob um aspecto bem orgânico, a viagem no tempo é a própria existência. Estamos permanentemente presos ao presente, em contato direto com tudo o que veio antes e caminhando com o momento seguinte. E se não ficamos satisfeitos com tal odisseia, é porque aprendemos a carregar o mistério qual uma mochila que há muito deixou de incomodar as costas. O insucesso da onipotência é parte da graça, quer seja para o soberano, quer seja para o bobo da corte.

Entrementes, viajar no tempo é uma máscara para lidar com o conhecimento adquirido. De nada adiantaria ir ao passado sem carregar na bagagem toda a nossa experiência até aqui. Se assim o fizéssemos, cometeríamos os mesmos erros e acertos porque não se pode alterar aquilo que jamais foi.

Eu sei exatamente para quando voltaria. E você?

> Crônica publicada no jornal Notícias do Dia em 18/05/2017.

A ponderação


A crítica, companheira indissociável da opinião, ganhou a graça das pessoas nestes tempos virtuais. O mundo líquido, de relações sinuosas e, paradoxalmente, desconectadas, permite-se aos contratempos de quem precisa ser ouvido, compreendido, aceito – e jamais repreendido. Mas o exercício da crítica, sobretudo quando se pretende assaz e relevante, vai muito além da opinião constante, permanente e urgente sobre tudo. Nenhuma tecnologia ou ferramenta que facilite a divulgação de pontos de vistas, convergentes ou antagônicos, substituirá a necessidade de conhecimento. Ter alguma sabedoria exige esforço, tempo e dedicação, mas vale a pena porque tende a suprimir todas aquelas idiossincrasias das primeiras impressões.

Desde sempre, tudo tem a ver com informação e formação. Essa educação obtida sob a égide da coerência escapa um pouco aos conceitos tradicionais, ainda que seja respaldada pela família, pela academia e pelas instituições que impõem certos limites, mas permitem que o pensamento circule com as rédeas soltas. A viagem da mente será sempre aquela mais próxima da verdade absoluta porque admite que erros e acertos são tão irreais quanto quaisquer outras coisas. Entrementes, nossa vantagem evolutiva fez brotar uma experiência a mais nos corações humanos: o discernimento. Ele pode andar ligeiramente esquecido nestes dias de ideias tão polarizadas, mas ainda existe para mostrar a fragilidade tanto de quem é oito quanto de quem é oitenta.

Não raro, damos com a incapacidade do diálogo quando linhas contraditórias atravessam a mesma encruzilhada. Acontece de forma mais explícita quando das manifestações político-partidárias, mas também se dá com todo o resto. Além da falta de conhecimento das questões mais pertinentes ao tema, foge-se quase de forma inconsciente de uma amiga ilustre chamada ponderação. E é aqui onde os pensamentos se encontram, porque longe dos ponderados ficam aqueles tristes e ressentidos: figuras mal amparadas pelo recalque do que nunca puderam ser. Pense bem: jamais você verá alguém acusando outra pessoa de ponderada, como se fosse um xingamento. O motivo é simples: a ponderação é o fim da estrada; não se pode ir além dela. É o local mais alto de corações tão leves que flutuam, porque até mesmo a gravidade não tem força lá.

> Crônica publicada no Jornal Notícias do Dia em 03/11/2016.

A política é um exercício prático


Já estava cansado de ouvir tantas mentiras, distorções e comentários estúpidos sobre os dilemas políticos de seu tempo. Por mais que agisse com garbo e distinção (num tipo de nobreza que só ele próprio compreendia), a saturação dos infortúnios noticiosos lhe causara certo desconforto corporal, como se estivesse numa academia de musculação pela primeira vez.

O que mais lhe parecia surreal era a falta de lógica nos discursos formados por partes desiguais de falta de informação. Citavam uns aos outros sem estabelecer uma razão inicial. As conversas daqueles dias replicavam medos travestidos de preconceitos. Caluniadores e irresponsáveis se tornavam mitos por quaisquer bobagens. Era um universo de dados e números e estimativas que nada revelavam porque estavam sujeitos à investigação simplória. Faltavam, sobretudo, perspectivas – sob todos os pontos de vista.

Não estava fugindo do mundo, não. Pelo contrário. Saía da cama logo cedo com a disposição dos altivos. O desafio de encarar o mundo sob suspeita lhe despertava ainda mais constante que o cuco do relógio na sala de estar. Trocou, claro, algumas rotinas que lhe eram antigas – da época em que deixara a casa dos pais para alugar um apartamento no subúrbio. Talvez a falta de uma esposa lhe definira uma visão contextual mais enxuta. Antes que lhe pensem mal, assumo a responsabilidade ao afirmar que jamais se considerou o dono da verdade ou coisa que o valha. Humilde, mas não ingênuo. Moderado, mas firme em suas ideias. Um cara que poderia ser aquele vizinho que escuta música lenta bem alta nos fins de semana. Alguém que nunca se candidataria a nenhum cargo público.

Mas o abatimento para com as questões políticas era mesmo um sintoma extemporâneo. E, como a nostalgia, não tinha explicação. As angústias que lhe sangravam as ideias batiam como as ondas nos rochedos. A erosão e os sentimentos tendiam a se repetir porque o tempo segue em linha reta, mas a história é tão curva que chega a dar voltas sobre si. A política não era e nem é uma forma de ver as coisas. A política é um exercício prático que separa a humanidade de outras espécies tão espetaculares quanto ela própria. Aos políticos não deveriam caber obrigações, mas unicamente a vontade de ser diferente da natureza – bruta e impiedosa que só ela! Ainda assim, o que sobram se não promessas vazias e improbidades administrativas?

Naquele dia, não quis saber das notícias. Desejou bons dias à vizinha de apartamento e foi deitar cedo. Na manhã seguinte, começou a escrever a História.

> Crônica publicada no Jornal Notícias do Dia em 31/03/2016.

Testemunhas da revolução


Com as revoluções, alguns ajustes se tornam desejos insólitos de quem ainda está tateando vagarosamente com medo de pisar na ponta de um prego. Pelas ruas, pedaços de quartéis e casas e escolas compõem uma massa disforme: eis o preço das ideologias.

– A reconstrução não será fácil; comentou o empreiteiro para o governante de olhos mal dormidos.

– Mas tem de ser feita, mesmo que ninguém acredite ser possível neste momento; retrucou o homem de poder.

Enquanto o trator colocava entulhos e lembranças sobre uma caçamba já quase lotada, o morador sobrevivente veio ter com sua esposa que o esperava em pé na frente do que um dia fora sua casa. Ela estava com a maquiagem borrada, misturada com a poeira deixada após tantos meses de atos revolucionários.

– Quando apoiamos a causa, sabíamos que isso poderia acontecer, mas mesmo assim é bem chocante; admitiu o marido.

– Só me parece estranho pensar que nós somos os vencedores. Sei que as comunicações estão interrompidas e que as notícias do outro lado nos chegam pela metade… mas… mas… não consigo entender a necessidade disso tudo, dessa separação internacional e tudo o mais… nem sei se algum dia vou aceitar essa tragédia sem que doa fundo; ela mal conseguiu falar entre soluços.

Para o espectador local, testemunha ocular destes dias longos e angustiantes, a sensação de alívio ainda não é um luxo ao qual se pode desfrutar. A realidade em forma de tiros, projéteis e afins brotou de algo parecido com uma utopia, mas tão confuso como um sonho sem início ou fim.

Dos escombros de uma escola, um livro numa estante parecia fazer parte de um ambiente de paz. Estava limpo, praticamente na mesma posição de antes, quando tudo ao seu redor era uma estrutura de conhecimento.

O garoto que pegou o livro estudava ali noutras horas mais claras. Ainda lembrava do último dia de aula e da lição que fez sobre as fronteiras de seu país. O antigo professor se aproximou, retirou o livro das suas mãos e guardou na mesma prateleira em que estava.

– Sabe, professor, sou uma criança inocente, mas não ingênua. Da minha maneira entendo o que está acontecendo aqui: é um acerto de contas entre mentes fracas, não é?; questionou o aprendiz com a certeza dos bravos.

– Pode ser. Entretanto, não sei se é essa a pergunta que eu realmente gostaria de ver respondida. Gente como a gente tem de se apoiar no que os livros ensinam e naquilo que nossa imaginação avalia. Todo mundo tem o mesmo tipo de coração batendo dentro do peito, não é?; o mestre devolveu a pergunta.

– Pode ser. Pode ser mesmo; completou o menino.

> Crônica publicada no Jornal Notícias do Dia em 18/02/2016.

Frutos do contexto


Nunca fui daqueles que se embrenham numa área e ali permanecem adubando o terreno, esperando os frutos, traçando parâmetros e metas. Falo aqui, claro, de temas do conhecimento, ainda mais porque cresci e morei todos os meus dias na cidade, longe de plantações e afins. Mas os saberes também precisam de cuidados, de irrigação, de paciência. E por querer tudo ao mesmo tempo, creio que a vida me interessa muito mais que os episódios. Não que seja necessário deixar de gostar de um para apreciar o outro, mas me parece que os contextos possuem um charme a mais.

Vide a crônica, por exemplo. Desconfiaria de mim mesmo se tivesse de escrever um texto crônico todos os dias, de domingo a domingo. Porque fiada nas miudezas, a crônica precisa se eternizar para além do minuto seguinte. A notícia, sim, foi feita para acabar rápido – mas não suas interpretações. Entrementes, o cronista de jornal diário tem a ciência de que está num contexto muito maior de informar e formar, mas tais preocupações devem ser compartilhadas por todos. Se a missão primeira não for outrem, de que vale perder tempo com palavras mirabolantes e frases de efeito? A crônica é eterna, mesmo que dure apenas o tempo de sua leitura.

Às vezes, tenho um pouco de receio de conversar com quem entende demais de um determinado assunto. Não, não é aquele medo bobo de parecer inferior ou um idiota completo. Minha inquietação é que, em muitas oportunidades, esses proclamados especialistas de um ou dois assuntos querem ganhar a todo custo uma batalha intelectual que já nasce descabida. Só faz sentido aprender e ensinar se toda conquista for um ato conjunto e não individual. Quem vence um debate com uma opinião unilateral está perdido demais para se dar conta disso.

Voltemos a nos concentrar nos contextos, olhando para dentro e para fora. Como nos intriga positivamente a história que cumpre um destino cheio de versões! Como não se encantar olhando as estrelas, as galáxias e tudo que não podemos tocar quando cá estamos neste planetinha tão carente? A perfeição atrai os loucos e os sãos pelos mesmos motivos. Claro, claro que há diversão em descobrir que dois átomos de hidrogênio ligados a um átomo de oxigênio formam a água. Mas olho para um oceano e eis que surge o alumbramento. É sede de conhecer.

Raramente, entro numa livraria ou numa loja de livros usados com algum título na cabeça. Sempre que me perguntam o motivo, digo que é porque quero que os exemplares me encontrem – e não o contrário! Primeiro, sou seduzido pela estrutura. Depois, pelas prateleiras. Por fim, o livro! Ah, o livro. Ali está o contexto pretendido desde o início: um terreno que dá frutos ao acaso.

> Crônica publicada no Jornal Notícias do Dia em 09/07/2015.

Ciência da alma


Eu acredito na ciência tanto quanto a ciência acredita em mim. Sou fã das teorias, mesmo aquelas não provadas. Quero ter o apoio de tudo aquilo que é matéria mesmo quando eu e os meus próximos voltarmos ao pó. E não darei adeus para um pensamento quando outro aparecer; eis um caminho aberto para a ciência vir completar a fé – afinal, o desconhecido está presente igualmente para o religioso e o cientista. Então, podemos supor que o cético é aquele que ainda não passou por certas experiências e nem se deixou levar por uma verdade que parece não fazer sentido. E, na maioria das vezes, não faz sentido algum.

O que se esconde na natureza, sob ou acima de nós, é a força motriz de nossa espécie. Como os outros bichos, somos curiosos, mas fomos além ao supor que poderíamos explicar um princípio tão vago quanto a existência – da vida, dos objetos, das ideias. Se nos afastássemos alguns anos luz deste nosso grande lar e olhássemos ao lado das estrelas para o planetinha azul que deveria se chamar “Mar” e não “Terra”, qualquer coisa que por ventura acontecesse debaixo dessa camada gasosa que nos protege chamada atmosfera pareceria não ter qualquer relevância no lento caminhar do cosmos. Entretanto, o que seria motivo para alguma frustração intelectual é precisamente aquilo que faz da história terrestre uma aventura tão singular.

E a consciência (espécie de ciência da alma!?) é quem orienta os passos desta marcha intra-planetária que todos os seres vivos obedecem. Porque temos alguma ciência de nosso próprio tempo também nos convém assumir a culpa pelo que o mundo se tornou. Começamos não se sabe como, fomos atrás da sobrevivência, firmamos laços de sangue, juntamo-nos em grupos, desenvolvemos sistemas de controle e, então, tornamo-nos sujeitos de nossa espécie naquilo que pode ser considerado a existência mais anti-natural que a natureza foi capaz de criar. Por tudo isso, somos responsáveis e procuramos algo que possa restabelecer o que foi perdido, religando-nos com o passado, com a criação, como sugerem as religiões.

Eu acredito na não-conformidade – aquela pulga atrás da orelha que está presente em todas as viagens dos descobrimentos, sejam estas realizadas através de naus ou caravelas, de lendas ou fatos, de computadores ou livros.

O conhecimento está para mim assim como a ciência está para a matéria. E, do Universo ao único verso do poeta, tudo pode acontecer: mundos hão de colidir, estrelas brilharão em explosões galácticas, ondas continuarão a trazer as conchas para a praia enquanto uma criança, curiosa, fará buracos na areia.

> Crônica publicada no jornal Notícias do Dia em 12/01/2012.