O voto dos sem partido


Olhem, companheiros e companheiras! Mirem o horizonte eleitoral. Vocês que, assim como eu, eram esperançosos dalguma coerência partidária, frustram-se com o quadro que se apresenta. Como as ideologias sucumbiram ante o peso da modernidade líquida, sobrou-nos um ambiente cada vez mais inóspito. Mas, vá lá, não nos desesperemos. Algumas opções sempre se revelam como oportunas, mesmo que as chances de efetivação sejam remotas.

Ainda que toscamente, superamos os interesses fajutos que dividiam o mundo à esquerda e à direita. E isto se deve ao fato de que a política diária não tem tempo para delongas conceituais. Como tudo no país é urgente, os próprios candidatos se esquivam de interesses partidários porque a coligação superou as expectativas. Eleitores que somos, obsequiamos o pleito sob uma ótica que parece ultrapassada. Coesão, aptidão, disciplina: os políticos querem-nas bem longe. Principalmente quando o marqueteiro garante a simpatia do candidato nos programas de TV.

E por que, então, deveríamos insistir? Até mesmo o parlamentarismo já foi voto vencido quando daquele plebiscito. Vocês ainda se recordam? Menos mal que mantivemos algumas conquistas constitucionais. Até que provem o contrário, o voto ainda nos pertence. Mas, de novo, a questão premente: insistir para quê? Não se trata de um jogo de cartas marcadas, com os partidos cumprindo apenas uma função burocrática? Pode ser. Apesar dos pesares, temos agentes do bem infiltrados neste jogo. E as cartas na mão não são nada ruins.

Nunca é demais lembrar que o sistema político tem o formato de uma pirâmide. A enorme base, que sustenta este projeto de nação, é composta a partir das eleições municipais, que acontecem em outubro próximo. As alianças que forjam vereadores e prefeitos se espalham para os níveis superiores, calçando as esferas estaduais e federal. Em outras palavras, só se faz um governador ou um presidente com o apoio das cidades. Foi assim que se montou a República. E é assim que podemos mudar o país que não nos contempla.

O voto dos sem partido é o voto das massas. O sistema nos moldou a seu contento. Mas não estamos contentes. E talvez ainda não seja agora que o sistema jogará com as nossas leis. Eis o que nos faz insistir.

> Crônica publicada no Jornal Notícias do Dia em 29/09/2016.

Tergiversar, quaisquer


Ainda que neguem, os autores têm suas palavras preferidas. Algumas são tão atraentes como imãs e, por isso mesmo, voltamos a lhes dar atenção com certa frequência. Este afeto para com determinados vocábulos integra o processo criativo. Se usadas com moderação, estas expressões recorrentes tendem a ilustrar os textos com a benevolência de um pai contando e recontando a mesma história para os filhos antes de dormir.

Tergiversar, por exemplo. Enquanto uns podem depreciar o termo por sua intenção pouco clara, tenho por ele um demasiado sentimento de completude. Fico à deriva se não tergiverso de quando em quando. Os tergiversadores, no seu sentido estrito, são aqueles que fogem do assunto, seja por incompetência em se expressar ou por habilidade em procrastinar. Qual seja a linha que me cabe – e, honestamente, prefiro não pensar no assunto –, suponho que à palavra deveriam caber os louros da poesia. Sim, por que não? Um sujeito versado é aquele que tem muita sapiência nalgum tema específico. Oras, então por que não fomentarmos semelhante interpretação aos tergiversadores? A arte de tergiversar é tão sublime que pode vir sempre acompanhada de um arremate; como o final da piada ou o último ato de um filme do Hitchcock.

Outra palavra que muito me apetece é quaisquer. De antemão, a pergunta: Onde mais estaria o plural se não no meio da palavra? Quaisquer. Aquele “s” malandro, precisamente com quatro letras lhe acompanhando para cada lado. Um toque de mestre. Bendito aquele que ao perceber uma qualidade qualquer soube transformá-la, imortalizando-a com a precisão dos mestres escultores. Sempre que surgirem as variações, quaisquer que sejam, lá teremos esse termo nos induzindo gentilmente à multiplicação e à diversidade. Particularmente, sou grato a essa expressão que me apresenta o multiverso da língua portuguesa em franca expansão. Recebo de “quaisquer” este convite à reinterpretação de que até mesmo o plural tem que ceder.

Muitas outras palavras estão em meu convívio, mas penso que terei novas oportunidades para compartilhar de seus predicados tão logo me recupere de tamanho deslumbramento.

> Crônica publicada no Jornal Notícias do Dia em 08/09/2016.

Democracia sem méritos


Com a fadiga de uma ideia, a culminância da irresponsabilidade. Assim o é para com a democracia, único sistema que está em risco em todos os momentos porque, justamente, é aquele que trabalha com a maior margem entre os erros e os acertos. Para uma república jovem como a brasileira, as mudanças não consentidas pelos votos são igualmente trágicas quanto esperadas. Se à nação escapam ainda as reformas mais elementares e radicais, parece-nos até lógico imputar-lhe historicamente os dados que se seguem: 25 presidentes constam na trajetória republicana, sendo que somente cinco destes foram eleitos pelo voto popular e continuaram no posto até o fim.

Ainda assim, a destituição da presidente Dilma Rousseff no último dia 31/08/2016 revela um sintoma inesperado – pelo menos quando levamos em conta a Constituição de 1988. Trata-se, evidentemente, de um desequilíbrio estrutural que diz respeito ao próprio presidencialismo. Sobretudo, quando levamos em conta as regras jurídicas cada vez mais consideradas no exercício da governança. O cargo de presidente da república em todos os países nos quais este também é o chefe de estado pressupõe um valor simbólico e personalista. O voto é, portanto, direcionado às aptidões pessoais do então candidato, de sua biografia e, no caso de reeleição, de sua experiência teórica e prática. Já quando de seu mandato, o presidente deve ser capaz de equalizar demandas internas (os apoiadores, a coligação, os mercados…) com as conveniências globais (a oposição, os países aliados, a população…). O desequilíbrio surge quando tais demandas e conveniências partem de um pressuposto simplório e anti-democrático: o mérito. Aí está a principal diferença deste processo de impeachment em relação ao de Fernando Collor nos anos 1990. Em todas as etapas, votações e afins, jamais se deixou de lado os aspectos ideológicos – muitas vezes, sobrepujando os políticos. Numa democracia altiva a qual se pretendia pela atual Carta Magna, o direito de opinião é um aspecto relevante do escrutínio político, não seu guia máximo e tampouco deveria ser utilizado como baliza processual. Erros e acertos, conjunturas e popularidade, nada disso importa porque o mérito (ou a falta dele) presidencial em nada tem a ver com a regularidade de seus atos.

É assim que a democracia se abala. É assim que uma ideia chega num clímax de regozijo apenas para aqueles que fraquejam quando a política mais precisa deles. Mas a derrota também integra a história dos grandes vencedores.

> Crônica publicada no Jornal Notícias do Dia em 01/09/2016.