O caso do barril vazio


Atendendo ao pedido de um colega jornalista, o investigador de polícia escreveu uma crônica de seus tempos na ativa. Trabalhou por algumas décadas na Cidade do México, sempre perambulando nos bairros mais carentes. Lembrou-se de um caso em especial, o único sem solução sob seu comando. Era um crime comum. Pensou mais um pouco. Nada de crime; tão somente o mistério envolvendo um desaparecimento de um garoto. Dúvida que alarmou por alguns dias os moradores de uma vila. Uma comunidade humilde, muitas vezes retratada na televisão. Noticiários ou programas de humor? “Que bonita era aquela vizinhança!”, assim ele iniciou a crônica tão logo se recordou detalhadamente do local. E prosseguiu: “Investiguei os moradores em separado. A senhora do nº 14 me atendeu com alguma pressa. Ela arrendara um restaurante desde que seu filho fora morar com a madrinha rica. Disse que, no passado, o tal garoto órfão desaparecido trabalhara no estabelecimento como ajudante. Já nos últimos meses, ficava dias e dias longe da vila… até que não retornou mais. Com o senhor do nº 72, a conversa foi curta. Ele passou a maior parte do tempo tentando controlar uma crise de choro da filha. Soube que o garoto tinha bom coração, ainda que fosse bastante atrapalhado. Metia-se em pequenas confusões e se enfiava num barril de madeira para pensar na vida. O carteiro relatou o mesmo. Este queria papo em demasia, principalmente contando causos da sua cidade natal. A senhora do nº 71 nada disse de útil, e quase me enxotou dali com sua vassoura ao explicar que não era uma ‘senhora’, mas sim uma ‘senhorita’. O antigo professor do garoto elogiou sua criatividade artística, ainda que o considerasse um péssimo aluno. Por fim, conversei com o dono da vila ao lado do barril apodrecido. O sujeito era tão sério quanto pesado. Contou que se afeiçoara ao garoto e, certa vez, até mesmo o levara para curtir uns dias num hotel à beira mar. Mas sobre o sumiço repentino, ninguém deu quaisquer pistas. E, como todos o conheciam pelo apelido, foi impossível descobrir seu verdadeiro nome. Encerrei o caso do barril vazio. No relatório que apresentei ao delegado, fiz apenas uma especulação: o garoto se tornara um jovem adulto e permanecer na vila perdera a graça”.

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O Capitão para além da América


Podemos deduzir que, em essência, o Capitão América foi criado por Jack Kirby e Joe Simon como uma arma de guerra. E tal afirmação soa ligeiramente irônica quando nos damos conta de que a sua principal ferramenta de trabalho é um escudo, símbolo máximo da proteção.

Ao longo de sua história no universo das revistas em quadrinhos, o herói deixou para trás aquele louvor à pátria amada que todo soldado deve carregar no peito e passou a questionar o papel de seu país naquilo que o mundo se tornou. Neste cenário cada vez mais globalizado, a própria ideia de um Capitão a representar a América soa, por vezes, incoerente.

Assim, atualmente, não adianta o herói se apresentar socando Hitler ou quem quer que seja repetidas vezes para se criar um vínculo de confiança. Em 1941, meses antes dos Estados Unidos entrarem oficialmente na Segunda Grande Guerra, o Capitão América / Steve Rogers inaugurava sua própria revista acertando em cheio o bigode do ditador austríaco. E bastou para o sucesso da personagem à época. Terminado o conflito, o herói não resistiu às quedas nas vendas e foi colocado de lado pela editora Timely Comics – que viria a ser Atlas Comics e, pouco depois, Marvel Comics. Somente na década de 1960, o mestre dos textos para quadrinhos e criador de dezenas de personagens, Stan Lee, viu uma oportunidade de trazer Rogers de seu congelamento. Não tardou para o Capitão liderar a lendária equipe dos Vingadores e nunca mais deixar o panteão da nona arte.

O século XXI chegou com mais perguntas sem respostas. A Marvel ressurgiu das cinzas e o caminho quase natural foi migrar a atenção para as telas de cinema. Entretanto, para um filme baseado num super-herói chamado Capitão América funcionar em todo o mundo, seria necessário adaptá-lo também dentro de um enredo global. Não por acaso, Capitão América: O Primeiro Vingador (2011), de Joe Johnston, soa ligeiramente distante das outras adaptações dos Estúdios Marvel porque se passa num momento histórico no qual o cotidiano era visto em preto e branco, com a ameaça clara do nazismo e do fascismo sobre as nações auto-denominadas livres. Johnston não era estranho ao gênero de filme de super-heróis. Com Rocketeer (1991), trouxe aquela nostalgia das matinês aventureiras qual Indiana Jones fizera na década anterior. E, neste contexto, teve êxito.

Hoje, porém, os dilemas estão dispersos e vão muito além de ditadores com o ímpeto do domínio mundial. São tempos de individualidades afloradas e de globalização – é necessário proteger e atacar. Um escudo apenas não é o bastante. Uma contradição que os irmãos diretores Anthony e Joe Russo souberam explorar em Capitão América 2: O Soldado Invernal (2014). Na produção, Steve Rogers (Chris Evans) enfrenta dramas pessoais para além de um soldado. Tal artimanha se transformou na principal ferramenta para ganhar a empatia dos espectadores das mais distintas nacionalidades, incluindo até mesmo nativos dos países que outrora formavam a Aliança do Eixo – um passado que se resolveu de alguma maneira. Ainda que dentro do contexto dos filmes realizados pelos Estúdios Marvel, o enredo desta sequência se sustenta tanto pela qualidade de suas personagens quanto por trazer uma relação direta com o tempo presente. Esta era tecnológica, na qual todas as nossas ações ficam registradas nas memórias de computadores, deixa o Capitão América deslocado: afinal, ele é uma figura de um tempo em que os heróis e os vilões estavam bem definidos (a saber: a Segunda Grande Guerra). Enquanto assistimos ao seu drama, lembramos que aqui mesmo no mundo real esses problemas soam familiares. Recentemente, o analista de sistemas Edward Snowden fez o mundo repensar a utilização da internet ao vazar dados da Agência de Segurança Nacional (NSA) dos Estados Unidos, confirmando que o país recolhe e monitora informações de todo o planeta, muitas vezes de forma não autorizada. Assim, trocamos a NSA pela fictícia S.H.I.E.L.D. e o cinema outra vez toma a realidade por empréstimo para contar sua própria versão dos fatos. Desta vez, até mesmo Nick Fury (Samuel L. Jackson), diretor de operações da S.H.I.E.L.D., tem de dar o braço a torcer ao se deparar no meio de uma conspiração mundial que pretende criar uma falsa liberdade originada por um massacre sem precedentes. Estes ares de thriller político é, possivelmente, o grande ponto a favor do roteiro que se comunica com as plateias atuais. E, apesar de ser uma peça chave, o Soldado Invernal do título não é maior do que os questionamentos do Capitão América / Steve Rogers sobre este Novo Mundo: como na filosofia de Nietzsche, o que é a verdade se não apenas uma ideia construída pelas pessoas que têm poder?

Com fama de personagem chato no universo dos quadrinhos, chega a ser irônico que Steve Rogers apareça como a força moral no filme Capitão América: Guerra Civil (2016), também dos irmãos Russo. Irônico, mas não inesperado. Caso parecido já se dera com Anthony Stark, alter ego do Homem de Ferro, uma personagem ríspida nas páginas e praticamente um fanfarrão na tela grande, muito em virtude da atuação descontraída de Robert Downey Jr. A reinvenção é um truque manjado do entretenimento, mas ganha nossa atenção quando feita para corroborar e surpreender expectativas históricas. Guerra Civil, a história original, foi publicada nas revistas da Marvel entre os anos de 2006 e 2007. Portanto, antes do início do Universo Cinematográfico Marvel em 2008. E talvez aí esteja a principal diferença entre as mídias: enquanto nos quadrinhos as lições sociais estão claras, no filme elas se dissipam ante o poder e o carisma de suas personagens-chave desenvolvidas para uma plateia ampla e diversificada. Ainda assim, não sejamos ingênuos ao ponto de acreditar que estas atualizações dos super-heróis não atendem aos mesmos interesses de antes. Atendem, evidentemente. Mas há uma seriedade e honestidade que a própria história faz questão de destacar. Se a Guerra Civil Americana fez dos Estados Unidos o país que conhecemos atualmente, podemos olhar dentro dos olhos de Steve Rogers para encontrar ali uma verdade que nos escapa: um futuro possível.

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As Américas do Capitão


O século XXI ainda é uma imagem indefinida. Apesar de identificarmos as características principais, não compreendemos o cenário como um todo. Política e culturalmente, porém, há ainda o agravo das dúvidas provocadas pela revolução tecnológica e seus reflexos econômicos. Daí que os registros do presente, feitos por jornalistas e historiadores, são um tanto vampirescos, quais o vilão que jamais se vê no espelho: a sutileza do Drácula de Bram Stoker é a metáfora de uma sociedade que não consegue ver a si mesma.

E sem passar verniz na realidade, a Marvel Comics encontrou duas maneiras distintas de lidar com os extremos nos anos 2000. Para tanto, direta e indiretamente, utilizou-se de seu personagem menos popular para fora da nação estadunidense: o Capitão América. Entre mortes, renascimentos e outros maus bocados, o Capitão ganhou uma notoriedade sem precedentes com os filmes do Universo Cinematográfico Marvel (UCM), iniciado em 2008 com Homem de Ferro, dirigido por John Favreau. Steve Rogers, o homem por trás do uniforme do Capitão, passou de personagem sisudo e essencialmente militar para um cidadão contemporâneo que esbanja carisma.

Antes das películas, existiam somente possibilidades para o milênio que se desnudava ainda sob o impacto do terrorismo, capitaneado pelos atentados de 11/09/2001. E, somado ao processo criativo, também a própria Marvel estava se recompondo após uma grave crise financeira.

Assim, em 2005, como ninguém esperasse, o outrora falecido ajudante mirim do herói, James Buchanan “Bucky” Barnes, volta à vida num arco de histórias intitulado Soldado Invernal. Bucky, então, não morrera na Segunda Grande Guerra como se pensava. Pior: fora recrutado e recondicionado mentalmente pelos russos para cometer assassinatos políticos durante a Guerra Fria. Mesmo que o reaparecimento de Barnes ocorra após um ataque terrorista na Filadélfia, os roteiros de Ed Brubaker claramente se distanciam do presente, como que remontando aos acontecimentos que poderiam explicar o cenário atual. Os vínculos afetivos entre Steve Rogers e Bucky Barnes correm em páginas que não querem tocar nas feridas abertas no Ocidente – muitas, aliás, quase autoimpingidas pela agressiva política externa norte-americana.

Para além de si mesmo, e ainda antes do aparecimento do UCM, Steve Rogers está no centro de uma imprescindível minissérie da primeira década do século. Guerra Civil, escrita por Mark Millar e publicada em sete partes entre junho de 2006 e janeiro de 2007, discute essencialmente a polarização. É ainda uma hecatombe o que dispara o enredo (qualquer semelhança com O Reino do Amanhã, lançada em 1996 pela DC Comics, parece ser mera e evidente inspiração), mas aqui a pauta se fecha na própria nação. A Lei de Registro de Super-Humanos se confunde com as próprias expectativas de uma população cansada do caos e da própria miséria, temendo por um futuro incerto e disposta a renegar alguns de seus valores mais caros em troca de garantias. E, sabemos todos, garantias nunca são 100%. Enquanto o lado heroico pesa para o Capitão América e aqueles que o apoiam, há uma preocupação sincera de Tony Stark e, claro, do “time Homem de Ferro” em regulamentar a atividade super-humana. “Quem vigia os vigilantes”?, perguntaria Alan Moore se estivesse minimamente interessado nessa história.

Há uma ideia recorrente de que os quadrinhos de super-heróis só fazem sentido pela força de seus vilões. É um pensamento interessante, principalmente quando contrastamos Batman e Coringa, Homem-Aranha e Dr. Octopus, Superman e Lex Luthor, Professor Xavier e Magneto. Ainda assim, esta parece ser uma noção um tanto quanto preguiçosa. As histórias e as personagens que se destacam falam, evidentemente, do bem e do mal, mas não apenas deles. Às artes legamos essa heroica responsabilidade de não nos convencer que há apenas um caminho correto. Luz e trevas, amor e ódio, guerra e paz moldam a sociedade para além do bem e do mal, dando relevância e complexidade à experiência humana. Tanto é assim que até mesmo um super-herói das revistas em quadrinhos chamado Capitão América, cujo uniforme e o escudo traz as cores da bandeira estadunidense, pode nos mostrar diferentes Américas e, quiçá, surpreender-nos quando nós mesmos darmos com o nosso reflexo no espelho.

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Superman – O Homem de Aço (1986), de John Byrne


A gente para, olha o mundo ao redor, lembra dos 1980‘s e, de repente, vem o som de sintetizadores, um gosto agridoce como uma bala Soft presa na garganta enquanto Reagan assume para um segundo mandato nos EUA, Tancredo sucumbe antes de tomar posse e os filmes do John Hughes mostram que a gurizada estava mesmo à frente de seu tempo.

E, como uma pedra no meio do caminho, tinha os quadrinhos, um Alan Moore despedaçando os contextos com Watchmen, um Frank Miller reinventando uma tradição de semântica dos comics com O Cavaleiro das Trevas, e um gênio do naipe de John Byrne recontando a origem do primeiro super-herói com Superman – O Homem de Aço, porque aquele era um tempo para não perder tempo.

Byrne dosou tradição e revisionismo num momento em que os quadrinhos não eram mais apenas entretenimento pulp, pop e/ou barato. Como os faroestes de Kevin Costner (Dança com Lobos) e Clint Eastwood (Os Imperdoáveis), o roteirista e desenhista apresentou sua personagem fora da lei – não confundir com os criminosos – qual um mito americano que encarna valores para além da pátria. O mundo estava sob a égide da Guerra Fria, apesar da glasnost e da perestroika implementadas por Gorbachev na União Soviética, e isso também não passou em branco – até mesmo porque as revistas em quadrinhos são forjadas pela potência das cores. E o vermelho se faz presente nas bandeiras dos dois extremos políticos.

Superman – O Homem de Aço, publicada originalmente em seis volumes nos EUA entre junho e agosto de 1986, resulta numa memória impressa de uma era inesquecível para o mundo e, claro, para os quadrinhos.

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