Os estrangeiros sempre estão em casa


Quem pode ir longe sem os pés no chão ou, no mínimo, sem a sensação de que a Terra ainda é o único lar conhecido em todo o universo? Há aqueles que se sentem estrangeiros no tempo; uma alma de outra época que calhou de estar aqui e agora. Muito mais perto de nós está todo o resto. Ainda assim, prolifera a ilusão de que as classes sociais nunca existiram. O que vigora até hoje: a inconformidade de um visitante indesejado pelo que tem ou deixa de ter. Qual um vírus, bactéria. Nem todos os passageiros pagaram a passagem. Os estrangeiros foram e são os protagonistas destas chamadas civilizações humanas. Por vezes, eles não sabem o que fazem. Não será o bastante oferecer uma colher de chá para os colonizadores de outrora – sem açúcar mascavo, mas claro, mais caro. Porque a gente sobrevive sobre os escombros que resistem. Ruínas que nos recordam de uma casa nunca habitada. A massa indignada acusa os estrangeiros de conduzirem o trem da história.

Colecionadores fervorosos


O primeiro prazer de um colecionador é estético. Pseudorreflexo em objetos que não devem possuir o proprietário. O talento para o desapegar de si mesmo é uma arte pouco divulgada. Alguns confundem com excesso de confiança. O colecionador, por sua vez, dá de ombros para a plateia desatenta. No espetáculo de uma coleção, irrompem intenções oblongas para conter o mundo ou, ao menos, fracioná-lo em partes observáveis. Uma característica essencial: os colecionáveis devem estar sempre à disposição. Convém deixar tudo ao alcance das mãos, lugar de acesso fácil para o ir-e-vir. Coleções não foram elaboradas com o intuito da prostração. O fervor dos colecionadores nunca pode cessar – ou a coleção correrá o risco de perder aquela vitalidade jovial. Aqui se faz o objeto; aqui se coleciona. Comprar ou ganhar se torna irrelevante. Porque sempre há tempo para encontrar a peça seguinte, ainda que os espaços se acabem. O mundo é imenso, mas não tão grande para conter tanto de si. As histórias contadas pelas coleções se passam num universo de fantasia, com os olhares admirados dos sonhadores que chamam a si próprios de colecionadores.

Brado vanguardista no seio conservador!


E o que posterga a comunhão metafísica – para além da alma – é, também, a associação equivocada entre tradição e conservadorismo. Há delitos nos quais se aplicam um ou outro argumento, com menor ou maior resistência das autoridades envolvidas. A tradição é jovial, enquanto o conservadorismo não carrega nenhum traço de misericórdia. Vai daí que a tradição fornece matéria prima para as vanguardas, municiando-as com o desejo de transição, girando a roda da história. Vai daí que o conservadorismo descamba para o autoritarismo, arregimentando tropas devastadoras num sistema cada vez mais voltado à dominação de muitos por uns poucos. Há o caos quando um ou outro argumento ambiciona o lugar do cosmos. A metafísica, antecipada por esta aposta extemporânea entre o ser e o nada, encontra um fôlego diferente na aventura humana que dissocia convicção de fé. Sempre é tempo de agir na vanguarda, sobretudo quando o conservadorismo flana entre os desatentos.

Somos assuntos para as borboletas


E se as borboletas pudessem contar a verdadeira e definitiva história sobre nós? Uma narrativa sem arestas ou margens para críticas de quaisquer temáticas. Quais nuances teimariam em se esconder do nosso próprio entendimento, mas que somente as borboletas poderiam decifrar neste espaço-tempo eterno e claudicante? Feito um bater de asas tão finas e impávidas sem dar por isso. Poderíamos lutar contra a interpretação absoluta do que fomos, somos, seremos? E de que adiantaria tamanho esforço se, mesmo assim, ficássemos presos ao chão? Desencontrando caminhos, cavoucando o solo em função de uma preciosidade abstrata, ilegítima, pouco ou nada razoável. Na separação dos dons entre as espécies, coube às borboletas o sentido pleno da razão. Elas apenas disfarçam, pulando de flor em flor, dando sequência à criação. Invejamos a simplicidade complexa de uma borboleta porque perdemos demasiados momentos apreciando nossas próprias criações. Tudo o que fazemos vira assunto para as borboletas, enquanto elas ignoram para tudo aquilo que consideramos especial.

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Se eu quisesse ser outro


A julgar pelo encaminhamento dos episódios que me circundam, jamais saberei as vantagens e as desvantagens de não ser eu. Esta vida é tudo o que tenho até agora. E é muito, é pouco, é bastante, é quase nada… tão longe feito a perfeição um dia aparecesse em minha frente – e não ficasse dúvida alguma quanto à sobrevivência do absoluto num universo de improbabilidades. Sob quaisquer aspectos, quais as chances de existir vida? Tamanha vastidão para um tempo de existência sobremaneira exíguo. Quando o mundo gira por completo, encontro-me – sem me reconhecer, como antes. Durante e depois, respectivamente, dou comigo mesmo e com meu duplo, ambos situados nesta miséria primordial ensimesmada pela realidade. Eu sei, eu sei: soa ligeiramente pessimista. Peço desculpas aos incomodados. Quem não teve, ao menos vez por outra, nuanças derrotistas? A solidão e o desespero de ser um só e apenas um. Quem me escolher terá de se conformar com esta decisão – muito antes do meu nascimento já havia a regra do inevitável uno. Continuo sendo aquilo que me coube; nos cantos, participo de uma aventura muito maior do que a minha própria história insinua. Já terei partido quando não me darei por mim.

O absoluto na palavra escrita


A palavra escrita é ou não é a versão de outra coisa porque traz a verdade em si mesma; pouco ou nada importa a correspondência (ainda que vaga) aos fatos – isto a que chamam de uma história vivida, uma experiência da realidade no contemporâneo. O tom que a palavra escrita admite para si tem a ver com a tentativa de alcançar o absoluto. Eis a reconstrução da eternidade incontida, vide verso e reverso. Há ainda a relação entre extremos, um ocaso nascido do conflito. Quaisquer notas pacíficas anulam as origens físicas e metafísicas da palavra escrita. Não deixa de ser também a viabilidade de fuga para a memória: a inclusão de todos os tempos na participação do espaço literário. Um fim para os meios disponíveis ou indispostos. Mais do que uma especulação razoável sob e sobre a existência. A palavra escrita jamais se ausenta quando não existem outras opções em disputa.

As veredas abertas no corpo humano


Pela natureza evolutiva singular de nossa espécie, fenômenos humanos são permeados de fundamentos tanto racionais quanto emotivos. Eis a dialética básica que acompanha a história. A partir das primeiras sociedades (organizações humanas baseadas em laços culturais), há uma sistematização/ordenamento do tempo que pode ou não ocorrer de modo consciente. Talvez seja esta a ontologia mais intrínseca aos processos evolutivos e históricos.

O que modernamente viemos a chamar de administração do tempo pode ser apenas um discurso derivado daquelas sensações primitivas que agruparam pais e filhos biológicos em famílias e em Estados apreendidos no espelhamento do outro. Concomitante à evolução biológica, ainda que num ritmo fora de sincronia, as trocas culturais (os comércios, as artes, as tecnologias, os saberes…) aprofundam ainda mais este duplipensar característico: a contradição se torna um pilar essencial daquilo que admitimos como realidade.

De tal modo que nenhuma esfera de nossas vidas cotidianas pode ser entendida e assimilada apenas como um ambiente na qual a razão tem de prevalecer. O Iluminismo escanteou as trevas do pensamento mítico; a crítica ao Positivismo nos possibilitou olhar com desconfiança a crença cega na ciência. No entanto, durante estes processos, erros se avolumaram motivados pela nossa dificuldade ao convívio pacífico, herdada de nossa origem animal e exponenciada pelo mal estar da civilização, um resultado indesejado – mas bastante previsível, se observado a posteriori – da cultura.

Fato tangível: cada vez mais temos de levar em conta os aspectos psicológicos dentro dos conceitos sociológicos. A interpretação das subjetividades talvez seja a maior contribuição da modernidade (e da pós-modernidade) para o zeitgeist contemporâneo, enquanto a historiografia se realiza na interpretação constante do ordenamento temporal. A história não termina aqui.

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Homem Vitruviano (1490). Lápis e tinta sobre papel de Leonardo da Vinci (1452-1519)

Antes que o caos triunfe


Aguarde um segundo antes que o caos triunfe, ela me avisou. Guardei as munições que restavam na algibeira. O ouvido ainda estralava com o ressoar da última explosão. Dias de luta sem objetivo ou com o único propósito de permanecer por aqui mais algum tempo. Difícil compreender se realmente vale a pena. Mas cada sorriso dela ampliava em mim o senso de necessidade, coisas qualquer que a guerra não explica. Tampouco a cicatriz no lado esquerdo do seu queijo apagava uma ideia da beleza atemporal. Guerreiros fingindo ser guerreiros hoje, como antes.

Uma guerra marcada por histórias ou uma história marcada por guerras. Este enigma não tem solução ou absolvição. A casa em ruínas serviu de abrigo momentâneo. A chuva torrencial impedia sutilmente o combate corpo a corpo. O que se esconde sob as torrentes?, eu perguntei a ela enquanto o beijo na testa desnudou nossos vestígios de humanidade. Chegamos até aqui por uma trilha de corpos inertes, desaquecidos para todo o sempre. Um cheiro de miséria e morte que jamais vai nos abandonar.

Cochilei por um momento ou realmente a chuva terminou?, ela me questionou durante um abraço prolongado. Não dormir parecia ainda um sonho distante. Sol e lua nunca discutem ao amanhecer. O estampido veio de perto. Prefiro chamá-los de tudo, menos de inimigos. Não me parece existencialmente possível que uma espécie renegue a si mesma. Tão diferente dos instintos animais que nem saberia por onde começar a explanação. Agora, porém, quanto menos conversa, melhor. Mais atentos ficamos para o combate eventual.

Um segundo depois, o amanhã chegou. Então este é o triunfo do caos para o qual você me preparou durante anos? Ela não respondeu, fingiu tossir e se abaixou dos tiros disparados a esmo. Pinceladas de bege e azul no contraste entre o preto e branco. Nossa missão continuava a mesma desde a aurora dos tempos: proteger o pintor contra toda forma de autoritarismo. O quadro seria finalizado custe o que custar. Duas de nossas vidas terminaram conjuntamente com a pintura a óleo. A mulher chorando, a criança sem vida em seus braços, o touro, o soldado caído, o cavalo, a mulher na janela, a mulher correndo, a mulher encarando chamas. Nossa família e nossos bichos retratados ali com traços cubistas. Picasso acendeu a luz do caos: a Guernica triunfou velando por nós.

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Guernica (1937). Pintura a óleo de Pablo Picasso (1881-1973)

A história não foi feita hoje


A narrativa histórica está sempre em disputa. Há, no entanto, um perigo sempre presente de escolher uma versão que se quer universal, ausente de quaisquer críticas porque se arvora de carregar “o lado certo da história”. Enquanto ação inexpugnável do tempo, a história não tem lados. O julgamento moral é que determina as compreensões históricas dentro de processos civilizacionais que estão sempre em movimento, mesmo de modo devagar. O argumento do “lado certo da história” sempre parte de contextos, das oposições que se encontram sob as hostes do poder. O fascismo aparece aí, muitas vezes disfarçado de ordem ou de correção de rumos. Talvez a catarse pública seja necessária. Ainda assim, a tudo cabe a crítica. É um princípio básico daqueles que amam o conhecimento, dos que não se bastam porque dialogam consigo mesmos e com os outros que lhes negam. O prazer só existe na oposição à dor, mas tanto um quanto outro nunca são absolutos. Há dores que curtimos doer, como prazeres que nos deixam mal. O mesmo acontece com a história. A dúvida se mantém como condição básica para nossa humanidade. Não caiamos na tentação das certezas momentâneas.

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A Marcha da Insensatez (1984), de Barbara W. Tuchman


A ignorância política se transforma na pior das ignorâncias porque pressupõe a falta de ligação entre os grandes problemas sociais. E não se trata de um problema exclusivamente contemporâneo. Alguém aí se lembra porque Luís XVI e Maria Antonieta perderam as cabeças? Numa palavra: descontrole. Antes como agora, várias foram as oportunidades que os governantes perderam de conduzir a sociedade lado a lado com aqueles que representavam. Nas mal chamadas repúblicas, a escolha de um representante deveria ser o sucesso da maioria. Porém, na maior parte dos casos, um pleito vitorioso se traveste na glória pessoal do político populista. E se Maria Antonieta estava preocupada demais em frivolidades materiais (brioches?!) não parece muito diferente destes mandatários de egos ainda maiores que seus patrimônios financeiros.

A historiadora estadunidense Barbara W. Tuchman, em seu livro A Marcha da Insensatez (1984), apresenta uma curiosa e ignóbil tradição de governantes que buscam políticas contrárias aos seus próprios interesses. De Troia ao Vietnã, a autora desnuda a fragilidade dos governos e afirma: “Sendo óbvio que a perseguição de desvantagem após desvantagem é algo irracional, concluímos, em consequência, que o repúdio da razão é a primeira característica da insensatez”. Por isso, os troianos aceitaram o cavalo; por isso, os Estados Unidos entraram no Vietnã, mesmo que tudo levasse a crer que essa seria uma jogada ruim.

É arriscado especular se vivemos ou não num período de transição, especificamente no caso brasileiro. Da mesma forma, soa pouco prudente imaginar que qualquer período histórico não seja um longo processo transitório – o que dá margem para muitas teorias tão bem fundamentadas quanto inacabadas. E alguma lógica existe para que após um momento tão revigorante quanto o Renascimento apareçam os governos autoritários ao longo do século XX. Inflados por um poder que não lhes é de direito, esses ditadores de ocasião sempre caminham para a inexorável derrota. Mas se duas Grandes Guerras ainda não extinguiram esses déspotas do planeta, há algo de podre nessas democracias tão exaltadas quais sejam americanas ou europeias.

Os ignóbeis políticos brasileiros e de outras nações marcham, mesmo sem saber, para o expurgo. Haverá um tempo em que as mudanças serão irrevogáveis. Nestes dias vindouros, os governantes forjados na insensatez servirão apenas para provocar assombro nos alunos que cursam história, como um capítulo complementar ao livro da Barbara.

A marcha da insensatezEscrito por Barbara W. Tuchman. Originalmente publicado em 1984. Edição brasileira pela Best Seller (2012).

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Shakespeare, Cervantes e Borges: a história vive da palavra


A história nada mais é do que interpretações. O que fica sempre, pois, é o texto. Neste sentindo, considero todo e qualquer texto uma obra literária e, por sua vez, literatura. Daí a importância até os dias atuais, mesmo em tempos de internet, da palavra escrita. E, com a permissão do escritor argentino Jorge Luis Borges, uso de suas palavras sobre o livro para ilustrar meu argumento: “Dos diversos instrumentos do homem, o mais assombroso é, sem dúvida o livro. Os demais são extensão do seu corpo… Mas o livro é outra coisa, o livro é um extensão da memória e da imaginação”. E o que nos coloca nesse mundo que não seja a imaginação e a memória? O próprio Borges, por sinal, que tantas vezes falou de William Shakespeare, afirmava a universalidade do bardo devido a sua obra que ultrapassava a experiência inglesa. Logo, Shakespeare era quem menos tratava especificamente da Inglaterra entre os autores ingleses e, justamente por isso, tornou-se seu símbolo máximo. Da mesma forma, Borges cita Miguel de Cervantes como ícone da Espanha, sendo o menos espanhol de seus escritores. Cervantes e Shakespeare, não por acaso, dividem a hipotética/fictícia data de morte (23 de abril de 1616) e uma imaginação para lá de extensa. Se a história vive da palavra, então talvez a leitura seja sua complementação inerente. Felizes os que lemos.

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Borges, Shakespeare e Cervantes

 

As portas das referências: a arte que implica no depois


No livro O Casamento do Céu e do Inferno, de 1790, o poeta, tipógrafo e pintor inglês William Blake escreveu o seguinte: “Se as portas da percepção estivessem desveladas, tudo apareceria ao homem como é: infinito. Pois o homem fechou-se em si mesmo, até que ele só consegue ver as coisas através de frestas de sua caverna“.

Em 1854, Richard Wagner compôs a Cavalgada das Valquírias – ato III da ópera A Valquíria.

Em 1899, Joseph Conrad publicou o romance O Coração das Trevas.

Em 1954, Aldous Huxley publicou o livro As Portas da Percepção, usando a citação de Blake como referência.

Em 1965, a banda The Doors se juntou, tendo por inspiração do nome a obra de Huxley.

Em 1967, a banda The Doors lançou a canção The End.

Em 1979, o cineasta Francis Ford Copolla adaptou o livro O Coração das Trevas no que veio a ser o espetacular Apocalypse Now, ambientando a história em plena guerra do Vietnã. Na abertura do filme, a canção The End, com o vocal marcante de Jim Morrison, como que inicia a busca do veterano das Operações Especiais, Benjamin Willard (Martin Sheen) pelo Coronel Walter E. Kurtz (Marlon Brando). No decorrer da película, os soldados americanos chegam com helicópteros para atacar os vietcongues ao som de Cavalgada das Valquírias.

Isto é a história. Assim é a arte.

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Em primeiro plano


O cinema é uma construção atemporal, ainda que tenha data de origem: 28 de dezembro de 1895, quando os Irmãos Lumière exibiram o filme A chegada do trem na estação. O público se assustou com medo da locomotiva em movimento. Desde então, renasce essa vida paralela, escondida entre planos e efeitos de cena.

Película, fita magnética, disco laser… compressão em preto e branco ou colorida, decodificada por matizes indefinidas, processos tecnológicos e, essencialmente, humanos. Mundo em technicolor, cinemascope ou qualquer ideia difusa, quase um efeito de neblina em filmes noir.

O cinema é um eterno paradoxo de si para si mesmo: porque se fez pioneira sendo a sétima das sete artes.

Todas as narrativas reveladas ou subtraídas por um roteiro jamais se medem; distância incalculável entre dois eixos fora de lugar. As personagens são pessoas comuns, reais, famosas, animadas, fictícias, ou até mesmo criaturas de outros planetas, de outras dimensões, de qualquer um dos sete mares conhecidos.

O cinema é uma exasperação conceitual, sintoma de incômodo necessário, inquietação premente e obtusa, dessas que chegam à perfeição possível em deslizes geniais, firulas mercadológicas do acaso. Um mundo de desculpas e réquiens; filosofia do contemporâneo em formato retangular.

Caminhos convergentes, som e vídeo, pintura e literatura, fotografia e arquitetura, sentimento e suor. A história em 24 quadros por segundo.

O cinema é uma vingança social, produto do capitalismo para fins socialistas; fronteira submissa das teorias humanas.

Arte de revolta para revolucionários conscientes, concisos e inconstantes. Guerreiro de vanguarda carregando as armas da tradição.

O cinema é além de tudo isso, muito mais e outro tanto de desconhecido.

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L’Arrivée d’un train en gare de La Ciotat ou L’Arrivée d’un train à La Ciotat é um filme francês de 1895, gravado por Louis Lumière e por Auguste Lumière. Foi um dos primeiros filmes a serem apresentados publicamente pelos irmãos Lumière, na cave do Boulevard des Capucines em Paris, em 28 de dezembro do mesmo ano. No dia 6 de janeiro de 1896, foi exibido Salão Indiano (uma saleta nos fundos de um café), naquela que entrou para a história como a primeira exibição pública comercial de um filme. O bilhete custou 1 franco. (Fonte: Wikipedia)

> Uma homenagem aos 125 anos do cinema, a data simbólica que marcou o início de uma paixão humana.

Stromboli (1950), de Roberto Rossellini


Soerguido pela força da natureza, o cinema de Roberto Rossellini flui como a lava de um vulcão que cria e destrói com a mesma equivalência. Essa capacidade de controle, e da falta deste, desnuda-se por todos os seus filmes, mas ganha especial significado neste Stromboli (1950).

Em Stromboli, ilha e filme, todos querem o controle de suas vidas – e também das vidas alheias. Iludidas, as personagens esquecem que não têm autoridade sobre o tempo. E, aqui, o tempo se apresenta sob muitos feitios: tempo-natureza, tempo-história, tempo-fé. Qual seja sua representação, o tempo de Karin (Ingrid Bergman, uma força da natureza) será uma provação de fé – nada mais apropriado a um dos principais diretores católicos do cinema europeu.

O tempo-natureza envolve a todos na constante preocupação daquele que é o mais ativo vulcão da Europa. O medo da morte converge ainda mais ao tempo-natureza porque o julgamento final daqueles pobres ilhéus pode vir de um inferno vermelho em forma de lava. Já o tempo-história é absorvido pelo livre-arbítrio de muitas individualidades, a começar pela ex-refugiada Karin, uma lituana que desconhece o funcionamento das fronteiras ao final da Segunda Grande Guerra. E o tempo-fé não esconde sua falta de perspectiva seja na condescendência de um padre-administrador ou quando Karin guarda as imagens santas na casa de seu marido e pinta flores na parede da sala – a natureza, novamente.

Os tempos se misturam e ganham cada vez mais dramaticidade na sequência das cenas: temos Karin flertando com um conhecido na praia, o marido sendo insultado nas ruas, a imagens santas voltando para os locais de origem, o olhar de censura dos fiéis na igreja, a pesca sanguinária numa outra tentativa de controlar a natureza, Karin revelando que está grávida e, claro, a explosão do vulcão no mesmo momento em que ela acende o fogo em sua casa. Em resumo, Karin e a ilha são duas faces de um mesmo poder desconhecido.

Stromboli, situada ao norte da costa siciliana, é um nome de origem grega que batizou a ilha devido ao seu formato inchado e redondo. Para Rossellini, Stromboli não é a ilha, mas sim a mulher grávida – ou, também, o princípio do tempo para todos os mortais.

Na busca por algum controle, Karin foge e decide chegar ao outro lado da ilha subindo o poderoso vulcão. Extenuada pela natureza, só lhe resta compreender que a fé consiste em enxergar aos outros muito mais do que a si mesma; “Eles são horríveis. Tudo era tão horrível. Eles não sabem o que fazem”, diz para si repetindo as palavras do Cristo crucificado, enquanto vê ao seu redor o mistério e a beleza daquele universo natural.

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Entre a Praça e o Porto (2008), de Angelo Renato Biléssimo


Sob a égide da liberdade, parece-nos que a faceta mais relevante da história é sua capacidade de jamais se esgotar. O recorte objetivo de uma documentação disponível (mas pouco explorada) nos permite ir além do que os dados contam na superfície. Neste Entre a praça e o porto: grandes fortunas nos inventários post mortem em Desterro (1860-1880), o historiador Angelo Renato Biléssimo lida com o passado da capital catarinense, então chamada Desterro, para discutir as relações humanas na sua complexidade de sempre, porém com um vigor pioneiro. Os inventários post mortem, que servem de eixo condutor do livro, revelam nuanças de uma elite que se estruturou na cidade e cujos desenlaces socioeconômicos ainda são presentes no cotidiano de Florianópolis. A escravidão também marca presença no livro – os cativos faziam parte do patrimônio de muitas destas famílias com grande poder na economia e na política. Porque a cidade e as pessoas nunca param no tempo.

> Entre a Praça e o Porto: grandes fortunas nos inventários Post Mortem em Desterro (1860-1880). Escrito por Angelo Renato Biléssimo. Casa Aberta, 2008.

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