Ele de Biguaçu, Ela da Capital


Aquele barulho ritmado de bate-estaca era alto demais para um flerte, mesmo ali, naquela boate escondidinha no Centro da Ilha. Um lugar alto, praticamente vizinho à solene e enferrujada Ponte Hercílio Luz: palco de paqueras, de aventuras noturnas que se apagam na manhã seguinte. Ele, solteiro de novo, insistiu. Ela, enrolada – mas nada a sério –, deixou a conversa rolar no único espaço tendo as estrelas por teto. Se, depois das construções das pontes, navegar já não era preciso; ouvir, por sua vez, era imprescindível. E falar:

– O que você pretende comigo?, ela indagou enquanto sorvia um drinque de cor levemente azulada.

– Queria que você me mostrasse a cidade, mas aquela cidade verdadeira, sem gente fazendo pose só para mostrar na internet, ele comentou enquanto inadvertidamente acendia um cigarro.

– Promete não fumar?

Ele assentiu com a cabeça, enquanto esmagava a nicotina com a sola do tênis de marca.

– Que bom. Melhor assim que percorrer meus bairros com cheiro de fumaça.

– Seus bairros? Então a cidade é sua?

– Sim. Tão minha quanto de qualquer outro que goste dela. Pode parecer bobagem, mas acho que o valor afetivo ainda é o único jeito da gente preservar a história. Mas não pense que eu sou uma garota chorona que vive reclamando do progresso ou coisa assim. E você, de onde vem?

– De Biguaçu. Morava noutro estado, mas conheci a obra de um escritor chamado Salim Miguel.

– Conheço. Li um dos livros dele para o vestibular.

– Pois é. Fiquei fascinado com a forma que ele descrevia a cidade. Um lugar pequeno, com jeito de interior, mas muito próximo da Capital. Depois disso, deixei meu emprego numa loja de calçados e cá estou, querendo que você me convide para conhecer Florianópolis.

– Achei que você estava me convidando…

– Não posso ser o anfitrião de uma cidade estranha. Além do mais, essa é minha primeira vez aqui.

– Gostei do seu convite-ao-contrário. Quando você me abordou lá embaixo na pista de dança com esse copo fluorescente, achei que iria ouvir aquela velha conversa de sempre. Ainda agora, ao acender o cigarro, tinha minhas dúvidas do que esperar.

– Não espere. Fumo por tradição, não por vício. E conversar é uma coisa que se aprende quando se trabalha vendendo tênis para famílias inteiras. Mas hoje prefiro te ouvir, por isso subi aqui com você.

– “A cidade verdadeira”, não é?

– É.

– Estou de moto. Se você arranjar um capacete, serei sua anfitriã.

Não me perguntem como, mas o fato é que ele conseguiu o capacete e a cidade se revelou por inteiro pela primeira vez em sua história. Na boate, o bate-estaca continuava atrapalhando outras conversas.

> Crônica publicada no Jornal Notícias do Dia em 21/11/2013.

Momento, memória e marionetes


Com o surgimento da internet, uma das maiores questões evidenciadas como características centrais do novo suporte foram as relações com o tempo. No novo meio, a informação em “tempo real”, ou também chamada de informação em fluxo (pois esta precisa ser elaborada e então distribuída para que o usuário a receba), estão no mesmo patamar que as informações de arquivo. As notícias, novas e velhas, relacionam-se entre si como em nenhum outro meio jornalístico.

A forma da temporalidade condiciona a relação do público com a mídia. Todos estão acostumados a saber se determinado veículo é diário, semanal, mensal. As pessoas sabem quando terão a informação. O tempo, cada vez mais preciso, é a base dos negócios.

No jornalismo online, a memória é uma característica presente e simultânea à leitura. Muitas vezes, damos com a memória até mesmo nas “últimas notícias”. Afinal, fabrica-se artificialmente a novidade para manter a ideia de fluxo continuo. Em outras palavras, as notícias são revestidas com uma roupagem diferente e transmitidas como originais. Uma vergonha, diriam os mais tradicionais da época em que não existia Google e quase tudo era pesquisado em livros.

A memória se relaciona com o novo porque há ausência de limites físicos. Assim, existe na internet uma dupla temporalidade: instantânea e recapitulativa. O ir-e-vir, o copiar-e-colar, o mais-do-mesmo.

Ao se pesquisar assuntos midiáticos com uma metodologia aplicada à internet, é importante observar como o jornalismo interage com os elementos da própria web. Tudo é (ou parece) informação.

Apesar das mudanças de hábito, ainda se produz um jornalismo tradicional, com presença de leads (a abertura clássica do texto da notícia) e o princípio da pirâmide invertida, com as informações mais relevantes logo no início e as menos impactantes na sequência. De certo modo, os principais sites e portais de notícias (muitos já tradicionais em mídias antigas) seguem esquemas convencionais de leitura, adaptando-se, porém, à forma ágil e dinâmica da web.

As transformações de fato não são aquelas sentidas nas páginas da internet, com suas implicações tecnológicas e virtuais. Pelo contrário, o que importa a todos é compreender a distância ou a presença destes (ainda) novos elementos da comunicação na vida social, sem deixar de lado as relações existentes entre organizações midiáticas e o tipo de relação que se mantêm com o estado regulador.

O jornalismo na era da internet é o palco involuntário de seu próprio teatro de marionetes. E ninguém quer se deixar manipular.

> Crônica publicada no Jornal Notícias do Dia em 14/11/2013.

Reunião de turma


Se cada louco tem a sua mania, o mesmo pode ser dito daqueles que se consideram sãos. São e salvo, encontro-me neste segundo grupo, tendo lá meus momentos poucos ciosos. Dentre as manias que adquiri com o tempo, a relevância crônica deste texto recai sobre uma expressão linguística contraída na época em que cursava a faculdade.

Foi naquela toca de acadêmicos que comecei a chamar de reuniões os encontros festivos, convescotes e similares boemias das quais participava. Reuniões de turma, por assim dizer. Mas não pensem vocês que uma reunião destas agrupa alunos discutindo os assuntos da próxima prova ou, vá lá algo maldoso!, caçoando de professores verborrágicos, ególatras e displicentes. Pelo contrário, mas quase na mesma linha pragmática, a turma em questão é aquela bem humorada coleção de amigos com sentimentos afins. Sentimentos para fins de encarar a vida, ressalta-mos, caso você tenha pensado em relações amorosas. Claro que, eventualmente, surgem aqueles casais formados por colegas de aula ou mesmo entre um aluno e uma ex-professora, sempre respeitando a ética e a lei (grife aqui com sua hidrocor amarela).

Digressões à parte, e em amarelo, a turma continuará a se encontrar mesmo após o fim da faculdade porque existem contratos sociais muito mais claros e significativos do que um resumo da obra de Jean-Jacques Rousseau, ainda que Rousseau tenha seu valor. Valor que não se paga é a essência de uma reunião de turma. Podem ser três ou quatro, podem ser 13 ou 24 membros. Cada turma tem uma organização particular, abalizada pelas reuniões anteriores e certificada em cartório pelo contrato dos encontros futuros.

O que nos motiva não é nada assim tão nobre a ponto de ser registrado nos anais da história. Tampouco consideramos nossas razões pueris, pois não há tempo perdido para aqueles que participam (grife aqui também, se sobrou tinta). No meu entendimento, o único elemento chave é a conversa. Retire a conversa da humanidade e você acabará em um milésimo de segundo com toda a evolução do conhecimento. Se a música estiver alta demais, grite. Se alguém estiver cochilando, dê-lhe um beliscão. Reuniões de turma não são sérias, mas têm de contar com um respeito incondicional pela conversa.

Tais fatos vão muito além do efeito linguístico proposto inicialmente. Porque também pesam as noções de compromisso que deveríamos aprender logo que balbuciamos as primeiras palavras. E a turma vai se reunir mais uma vez, nem que seja para sacanear o cronista doidivanas que, enfim, terá cumprido seu objetivo.

> Crônica publicada no Jornal Notícias do Dia em 07/11/2013.