O Capitão para além da América


Podemos deduzir que, em essência, o Capitão América foi criado por Jack Kirby e Joe Simon como uma arma de guerra. E tal afirmação soa ligeiramente irônica quando nos damos conta de que a sua principal ferramenta de trabalho é um escudo, símbolo máximo da proteção.

Ao longo de sua história no universo das revistas em quadrinhos, o herói deixou para trás aquele louvor à pátria amada que todo soldado deve carregar no peito e passou a questionar o papel de seu país naquilo que o mundo se tornou. Neste cenário cada vez mais globalizado, a própria ideia de um Capitão a representar a América soa, por vezes, incoerente.

Assim, atualmente, não adianta o herói se apresentar socando Hitler ou quem quer que seja repetidas vezes para se criar um vínculo de confiança. Em 1941, meses antes dos Estados Unidos entrarem oficialmente na Segunda Grande Guerra, o Capitão América / Steve Rogers inaugurava sua própria revista acertando em cheio o bigode do ditador austríaco. E bastou para o sucesso da personagem à época. Terminado o conflito, o herói não resistiu às quedas nas vendas e foi colocado de lado pela editora Timely Comics – que viria a ser Atlas Comics e, pouco depois, Marvel Comics. Somente na década de 1960, o mestre dos textos para quadrinhos e criador de dezenas de personagens, Stan Lee, viu uma oportunidade de trazer Rogers de seu congelamento. Não tardou para o Capitão liderar a lendária equipe dos Vingadores e nunca mais deixar o panteão da nona arte.

O século XXI chegou com mais perguntas sem respostas. A Marvel ressurgiu das cinzas e o caminho quase natural foi migrar a atenção para as telas de cinema. Entretanto, para um filme baseado num super-herói chamado Capitão América funcionar em todo o mundo, seria necessário adaptá-lo também dentro de um enredo global. Não por acaso, Capitão América: O Primeiro Vingador (2011), de Joe Johnston, soa ligeiramente distante das outras adaptações dos Estúdios Marvel porque se passa num momento histórico no qual o cotidiano era visto em preto e branco, com a ameaça clara do nazismo e do fascismo sobre as nações auto-denominadas livres. Johnston não era estranho ao gênero de filme de super-heróis. Com Rocketeer (1991), trouxe aquela nostalgia das matinês aventureiras qual Indiana Jones fizera na década anterior. E, neste contexto, teve êxito.

Hoje, porém, os dilemas estão dispersos e vão muito além de ditadores com o ímpeto do domínio mundial. São tempos de individualidades afloradas e de globalização – é necessário proteger e atacar. Um escudo apenas não é o bastante. Uma contradição que os irmãos diretores Anthony e Joe Russo souberam explorar em Capitão América 2: O Soldado Invernal (2014). Na produção, Steve Rogers (Chris Evans) enfrenta dramas pessoais para além de um soldado. Tal artimanha se transformou na principal ferramenta para ganhar a empatia dos espectadores das mais distintas nacionalidades, incluindo até mesmo nativos dos países que outrora formavam a Aliança do Eixo – um passado que se resolveu de alguma maneira. Ainda que dentro do contexto dos filmes realizados pelos Estúdios Marvel, o enredo desta sequência se sustenta tanto pela qualidade de suas personagens quanto por trazer uma relação direta com o tempo presente. Esta era tecnológica, na qual todas as nossas ações ficam registradas nas memórias de computadores, deixa o Capitão América deslocado: afinal, ele é uma figura de um tempo em que os heróis e os vilões estavam bem definidos (a saber: a Segunda Grande Guerra). Enquanto assistimos ao seu drama, lembramos que aqui mesmo no mundo real esses problemas soam familiares. Recentemente, o analista de sistemas Edward Snowden fez o mundo repensar a utilização da internet ao vazar dados da Agência de Segurança Nacional (NSA) dos Estados Unidos, confirmando que o país recolhe e monitora informações de todo o planeta, muitas vezes de forma não autorizada. Assim, trocamos a NSA pela fictícia S.H.I.E.L.D. e o cinema outra vez toma a realidade por empréstimo para contar sua própria versão dos fatos. Desta vez, até mesmo Nick Fury (Samuel L. Jackson), diretor de operações da S.H.I.E.L.D., tem de dar o braço a torcer ao se deparar no meio de uma conspiração mundial que pretende criar uma falsa liberdade originada por um massacre sem precedentes. Estes ares de thriller político é, possivelmente, o grande ponto a favor do roteiro que se comunica com as plateias atuais. E, apesar de ser uma peça chave, o Soldado Invernal do título não é maior do que os questionamentos do Capitão América / Steve Rogers sobre este Novo Mundo: como na filosofia de Nietzsche, o que é a verdade se não apenas uma ideia construída pelas pessoas que têm poder?

Com fama de personagem chato no universo dos quadrinhos, chega a ser irônico que Steve Rogers apareça como a força moral no filme Capitão América: Guerra Civil (2016), também dos irmãos Russo. Irônico, mas não inesperado. Caso parecido já se dera com Anthony Stark, alter ego do Homem de Ferro, uma personagem ríspida nas páginas e praticamente um fanfarrão na tela grande, muito em virtude da atuação descontraída de Robert Downey Jr. A reinvenção é um truque manjado do entretenimento, mas ganha nossa atenção quando feita para corroborar e surpreender expectativas históricas. Guerra Civil, a história original, foi publicada nas revistas da Marvel entre os anos de 2006 e 2007. Portanto, antes do início do Universo Cinematográfico Marvel em 2008. E talvez aí esteja a principal diferença entre as mídias: enquanto nos quadrinhos as lições sociais estão claras, no filme elas se dissipam ante o poder e o carisma de suas personagens-chave desenvolvidas para uma plateia ampla e diversificada. Ainda assim, não sejamos ingênuos ao ponto de acreditar que estas atualizações dos super-heróis não atendem aos mesmos interesses de antes. Atendem, evidentemente. Mas há uma seriedade e honestidade que a própria história faz questão de destacar. Se a Guerra Civil Americana fez dos Estados Unidos o país que conhecemos atualmente, podemos olhar dentro dos olhos de Steve Rogers para encontrar ali uma verdade que nos escapa: um futuro possível.

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As Américas do Capitão


O século XXI ainda é uma imagem indefinida. Apesar de identificarmos as características principais, não compreendemos o cenário como um todo. Política e culturalmente, porém, há ainda o agravo das dúvidas provocadas pela revolução tecnológica e seus reflexos econômicos. Daí que os registros do presente, feitos por jornalistas e historiadores, são um tanto vampirescos, quais o vilão que jamais se vê no espelho: a sutileza do Drácula de Bram Stoker é a metáfora de uma sociedade que não consegue ver a si mesma.

E sem passar verniz na realidade, a Marvel Comics encontrou duas maneiras distintas de lidar com os extremos nos anos 2000. Para tanto, direta e indiretamente, utilizou-se de seu personagem menos popular para fora da nação estadunidense: o Capitão América. Entre mortes, renascimentos e outros maus bocados, o Capitão ganhou uma notoriedade sem precedentes com os filmes do Universo Cinematográfico Marvel (UCM), iniciado em 2008 com Homem de Ferro, dirigido por John Favreau. Steve Rogers, o homem por trás do uniforme do Capitão, passou de personagem sisudo e essencialmente militar para um cidadão contemporâneo que esbanja carisma.

Antes das películas, existiam somente possibilidades para o milênio que se desnudava ainda sob o impacto do terrorismo, capitaneado pelos atentados de 11/09/2001. E, somado ao processo criativo, também a própria Marvel estava se recompondo após uma grave crise financeira.

Assim, em 2005, como ninguém esperasse, o outrora falecido ajudante mirim do herói, James Buchanan “Bucky” Barnes, volta à vida num arco de histórias intitulado Soldado Invernal. Bucky, então, não morrera na Segunda Grande Guerra como se pensava. Pior: fora recrutado e recondicionado mentalmente pelos russos para cometer assassinatos políticos durante a Guerra Fria. Mesmo que o reaparecimento de Barnes ocorra após um ataque terrorista na Filadélfia, os roteiros de Ed Brubaker claramente se distanciam do presente, como que remontando aos acontecimentos que poderiam explicar o cenário atual. Os vínculos afetivos entre Steve Rogers e Bucky Barnes correm em páginas que não querem tocar nas feridas abertas no Ocidente – muitas, aliás, quase autoimpingidas pela agressiva política externa norte-americana.

Para além de si mesmo, e ainda antes do aparecimento do UCM, Steve Rogers está no centro de uma imprescindível minissérie da primeira década do século. Guerra Civil, escrita por Mark Millar e publicada em sete partes entre junho de 2006 e janeiro de 2007, discute essencialmente a polarização. É ainda uma hecatombe o que dispara o enredo (qualquer semelhança com O Reino do Amanhã, lançada em 1996 pela DC Comics, parece ser mera e evidente inspiração), mas aqui a pauta se fecha na própria nação. A Lei de Registro de Super-Humanos se confunde com as próprias expectativas de uma população cansada do caos e da própria miséria, temendo por um futuro incerto e disposta a renegar alguns de seus valores mais caros em troca de garantias. E, sabemos todos, garantias nunca são 100%. Enquanto o lado heroico pesa para o Capitão América e aqueles que o apoiam, há uma preocupação sincera de Tony Stark e, claro, do “time Homem de Ferro” em regulamentar a atividade super-humana. “Quem vigia os vigilantes”?, perguntaria Alan Moore se estivesse minimamente interessado nessa história.

Há uma ideia recorrente de que os quadrinhos de super-heróis só fazem sentido pela força de seus vilões. É um pensamento interessante, principalmente quando contrastamos Batman e Coringa, Homem-Aranha e Dr. Octopus, Superman e Lex Luthor, Professor Xavier e Magneto. Ainda assim, esta parece ser uma noção um tanto quanto preguiçosa. As histórias e as personagens que se destacam falam, evidentemente, do bem e do mal, mas não apenas deles. Às artes legamos essa heroica responsabilidade de não nos convencer que há apenas um caminho correto. Luz e trevas, amor e ódio, guerra e paz moldam a sociedade para além do bem e do mal, dando relevância e complexidade à experiência humana. Tanto é assim que até mesmo um super-herói das revistas em quadrinhos chamado Capitão América, cujo uniforme e o escudo traz as cores da bandeira estadunidense, pode nos mostrar diferentes Américas e, quiçá, surpreender-nos quando nós mesmos darmos com o nosso reflexo no espelho.

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Superman – O Homem de Aço (1986), de John Byrne


A gente para, olha o mundo ao redor, lembra dos 1980‘s e, de repente, vem o som de sintetizadores, um gosto agridoce como uma bala Soft presa na garganta enquanto Reagan assume para um segundo mandato nos EUA, Tancredo sucumbe antes de tomar posse e os filmes do John Hughes mostram que a gurizada estava mesmo à frente de seu tempo.

E, como uma pedra no meio do caminho, tinha os quadrinhos, um Alan Moore despedaçando os contextos com Watchmen, um Frank Miller reinventando uma tradição de semântica dos comics com O Cavaleiro das Trevas, e um gênio do naipe de John Byrne recontando a origem do primeiro super-herói com Superman – O Homem de Aço, porque aquele era um tempo para não perder tempo.

Byrne dosou tradição e revisionismo num momento em que os quadrinhos não eram mais apenas entretenimento pulp, pop e/ou barato. Como os faroestes de Kevin Costner (Dança com Lobos) e Clint Eastwood (Os Imperdoáveis), o roteirista e desenhista apresentou sua personagem fora da lei – não confundir com os criminosos – qual um mito americano que encarna valores para além da pátria. O mundo estava sob a égide da Guerra Fria, apesar da glasnost e da perestroika implementadas por Gorbachev na União Soviética, e isso também não passou em branco – até mesmo porque as revistas em quadrinhos são forjadas pela potência das cores. E o vermelho se faz presente nas bandeiras dos dois extremos políticos.

Superman – O Homem de Aço, publicada originalmente em seis volumes nos EUA entre junho e agosto de 1986, resulta numa memória impressa de uma era inesquecível para o mundo e, claro, para os quadrinhos.

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Surfista Prateado: Parábola (1988), de Stan Lee e Moebius


Assim como Stan Lee, não acredito em heróis perfeitos. A antiguidade clássica nos ensina sobre a falibilidade dos mitos; porque, sob nosso ponto de vista, não existe outra narrativa que não a humana. O cosmo pode até estar aí desde sempre, mas é nossa presença nele que desperta essa coisa chamada história. Por excelência, Stan Lee era um contador de histórias. Com drama, intuição e objetividade, criou personagens que se parecem com a gente mesmo, mas a quem coisas inacreditáveis aconteceram… como ser picado por uma aranha radioativa ou ser atingido por raios gama. A genialidade, no entanto, não está no absurdo das tramas, e sim na relação pessoal para com estes desafios surpreendentes. A vida, por si só, é esta coisa sem explicação, com tantos sentidos possíveis que fazem o destino nos escapar das mãos. As grandes histórias em quadrinhos partem dessa perplexidade existencial – e o Surfista Prateado (concebido por Jack Kirby, outro mestre da nona arte, e desenvolvido dramaticamente por Lee) talvez seja um dos maiores veículos para discutir quem somos e para onde vamos. Além disso, pasmem!, ele surfa no ar. Quando Stan Lee e o também genial ilustrador francês Moebius se reuniram para produzir uma graphic novel, pareceu inevitável que um fenômeno singular na arte contemporânea despontasse no final da década de 1980. Surfista Prateado: Parábola é menos a propósito de escolhas e mais sobre consequências. O poder (mimetizado por Galactus) e sua fascinação inerente contam a história humana do passado ao futuro. O olhar decepcionado do Surfista para com as pessoas talvez seja o resultado de sua vida solitária, ainda que urdido na miséria de nossa espécie. E ninguém escapa dessa parábola.

> Surfista Prateado: Parábola. Texto de Stan Lee, arte de Moebius, cores de Mark Chiarello e John Wellington. Abril Jovem, 1989.

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Thanos, em busca de si mesmo


Dizem por aí que todas as histórias são sobre quem somos. Com Thanos, logo, não poderia ser diferente. Aquele que corteja a morte busca também seu papel na história do cosmos. A recompensa por encontrar todas as jóias do infinito, o poder absoluto do Universo, lhe trará algum conforto nem que seja com um mísero sorriso de sua amada imortal? Conhecer sua trajetória, desde seu nascimento em Titã (A Ascensão de Thanos) até o confronto derradeiro com os maiores heróis da Terra e do Universo (Trilogia do Infinito), permitirá traçar um perfil justo da personagem criada em 1973 pelo soberano dos quadrinhos cósmicos, Jim Starlin. Mas até mesmo o infinito vai acabar. Do Big Bang ao Big Crunch. Dos quadrinhos ao cinema.

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X-Men: Deus Ama (1982), o Homem Mata, de Chris Claremont


Na construção do preconceito há sempre uma raiz de covardia. É preciso colocar no outro a própria insignificância para se sentir vitorioso, fortalecido em meio ao caos que é a vida. Raramente, quem se concentra no caos vê a poesia que se esconde entre as diferenças. Há tantas oportunidades no desconhecido que talvez seja assustador saber-se fora do controle. Desde sua origem, os X-Men lidam com a ideia de alteridade. Uma existência depende da outra e nela encontra sentido. Na graphic novel X-Men: Deus Ama, o Homem Mata, o roteirista Chris Claremont não transige com os intolerantes e parte logo para o confronto. O pensamento obscurantista e alarmante não se dá por meio de vilões superpoderosos, mas do cidadão comum que se unge de um ódio ancestral para ditar o que pode ser correto. Religiosidade cega, poderio militar e perseguição política culminam em extremos que se devoram um ao outro, não sem antes fazer vítimas inocentes. Sim, há sempre uma ou mais soluções. Mas o amor também tem seu contrário.

> X-Men: Deus Ama, o Homem Mata. Roteiro de Chris Claremont. Arte de Brent Anderson. Cores de Steve Oliff. Panini Books, 2014.

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Turma da Mônica: Lições (2015), de Lu e Vitor Cafaggi


É impossível definir as proporções com precisão numérica, mas uma boa parte da vida são oportunidades e outro bom tanto são consequências. No contexto, os erros aparecerem como que impondo lições inescapáveis. E aí voltamos para aquele paradigma sartreano: “O importante não é aquilo que fazem de nós, mas o que nós mesmos fazemos do que os outros fizeram de nós”. Na infância, as descobertas são decisivas. A turma de amigos revela algum tipo de identidade própria, como quando nos refletimos em amizades-espelhos que também estão em transformação. Turma da Mônica: Lições, dos irmãos Lu e Vitor Cafaggi, gira ao redor de uma delicada ideia de punição enquanto formadora de uma percepção da realidade. Mônica, Cebolinha, Magali e Cascão têm de lidar com essa coisa emergencial chamada tristeza. Mas ela, assim como a vida, também passa.

> Turma da Mônica: LiçõesLu Cafaggi e Vitor Cafaggi. Panini Comics, 2015.

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Coringa (2008), de Brian Azzarelo


A humanidade é definida por um sorriso amargo: sabendo-se vilã neste planeta, corre em desatino sufocando qualquer um em busca de poder – como os heróis. Não há cura, porque o desejo de sabotagem e destruição sempre tergiversou sobre seus pares. O heroísmo é tão insano porque não permite uma leitura altiva da realidade. O mais psicótico dos vilões encontra seu reflexo no espelho porque esta é a mesma história desde o começo do tempo. Caos, catástrofe, tragédia, drama. O Coringa é a chaga inevitável que explode feito combustão espontânea. O Batman é seu reverso num oceano de lágrimas, sangue e dor. Criador e criatura se compreendem e se detestam. Por isso, o universo é infinito. Por isso, não há sentido algum. É somente a possibilidade o que faz valer a pena.

> Coringa. Roteiro de Brian Azzarelo, arte de Lee Bermejo. Colaboração de Mick Gray (arte-final) e Patricia Mulvihill (cores). Panini Comics, 2011.

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Superman: Entre a Foice e o Martelo (2003)


E se aquela pequena espaçonave de Krypton tivesse caído numa fazenda coletiva na União Soviética? Aquele bebê a bordo – possivelmente o único sobrevivente de um planeta muito mais evoluído que a Terra – também se tornaria um símbolo para o mundo livre? Eis o tema de Superman: Entre a Foice e o Martelo, história em quadrinhos com texto de Mark Millar, desenho de Dave Johnson e arte-final de Andrew Robinson. Que destino teria o homem que se tornaria super? Ele deixaria de lado o intervencionismo econômico de Roosevelt com o New Deal, mais tarde teorizado por Keynes em sua Teoria geral do emprego, do juro e da moeda? Seria ele um escoteiro comunista, seguidor materialismo histórico e dialético? “A história de todas as sociedades que existiram até nossos dias tem sido a história das lutas de classes”, escreveram Marx e Engels no Manifesto do Partido Comunista. E poderíamos complementar tal ideia afirmando que a história destas mesmas sociedades também se deve a uma sucessão de acasos e coincidências – como o local de pouso de uma pequena nave lançada de um planeta prestes a explodir…

superfoice

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Quadrinhonópolis


Nesta história em quadrinhos que ainda não foi desenhada, existem balões mágicos que trazem textos e sonhos. Não é uma aventura de super-herói porque a Florianópolis não convém esse clima vintage. Mas é uma trama cheia de sutilezas e sabores peculiares.

Começa com um sujeito comum sentado à beira da praça engraxando os sapatos de outro sujeito prosaico. Prosa vai, verso volta e no quadrinho seguinte a notícia surge na voz de um menino apressado:

– …mas estão dizendo que não vai sobrar nada em pé.

Com tão pouca informação, o engraxate não tem a menor ideia sobre o que o infante comentava. O sujeito prosaico sequer ouviu qualquer coisa, pois estava com um desses aparelhos que tocam mp3. Então, veio a primeira onda: não uma tsunami, mas sim um marouço de pessoas. O engraxate terminou o serviço, cobrou o cliente e seguiu o balanço de gente.

Entrementes, damos com um desenho em página dupla. Um formigueiro de gente subindo a Rua dos Ilhéus. É uma ilustração do ponto de vista de um helicóptero, com um único balão de pensamento: “que destino nos aguarda?”, indaga-se o engraxate.

A sequência das duas próximas páginas é uma espécie de ordenamento do caos: gritos, sirenes, empurrões, apitos, tambores, cassetetes, retroescavadeiras, arranhões. A utilização de onomatopeias destaca o clima urbano e barulhento que se pretende.

Na janela de um casarão antigo, alguém grita:

– Não vou sair daqui!

No balão de pensamento do oficial de justiça entendemos a situação: “Eu estava saindo para comer um cachorro-quente e me mandam aqui despejar essa senhora porque é preciso demolir uma casa velha. Até aí, nada demais. Poderia ter feito tudo em cinco minutos. Mas foi só a imprensa aparecer e afirmar que esta é a construção mais antiga da cidade que isso aqui virou uma festa do arrivismo social! E eu continuo com fome”.

Este é um daqueles momentos em que deveria aparecer um super-herói, mas sabemos que isso não vai acontecer desde o primeiro parágrafo.

Outra página cheia: são as metades dos rostos da senhora da casa e do engraxate como que formando uma única pessoa. A frase de um parece completar a do outro.

Senhora:

– Garantir o futuro para vocês é…

Engraxate:

– …não se importar com o passado.

Última página: uma nuvem fecha o sol e o desenho fica escurecido aos poucos… no quadro seguinte, a imagem já está em preto e branco. A retroescavadeira avança no mesmo momento em que a mulher é puxada para fora da edificação. O sapato dela cai bem ao lado do engraxate.

O engraxate pega o calçado e fala para si mesmo:

– Um passo. Um passado.

Não há final feliz. Nem super-herói.

> Crônica publicada no Jornal Notícias do Dia em 27/08/2015.