Shakespeare, Cervantes e Borges: a história vive da palavra


A história nada mais é do que interpretações. O que fica sempre, pois, é o texto. Neste sentindo, considero todo e qualquer texto uma obra literária e, por sua vez, literatura. Daí a importância até os dias atuais, mesmo em tempos de internet, da palavra escrita. E, com a permissão do escritor argentino Jorge Luis Borges, uso de suas palavras sobre o livro para ilustrar meu argumento: “Dos diversos instrumentos do homem, o mais assombroso é, sem dúvida o livro. Os demais são extensão do seu corpo… Mas o livro é outra coisa, o livro é um extensão da memória e da imaginação”. E o que nos coloca nesse mundo que não seja a imaginação e a memória? O próprio Borges, por sinal, que tantas vezes falou de William Shakespeare, afirmava a universalidade do bardo devido a sua obra que ultrapassava a experiência inglesa. Logo, Shakespeare era quem menos tratava especificamente da Inglaterra entre os autores ingleses e, justamente por isso, tornou-se seu símbolo máximo. Da mesma forma, Borges cita Miguel de Cervantes como ícone da Espanha, sendo o menos espanhol de seus escritores. Cervantes e Shakespeare, não por acaso, dividem a hipotética/fictícia data de morte (23 de abril de 1616) e uma imaginação para lá de extensa. Se a história vive da palavra, então talvez a leitura seja sua complementação inerente. Felizes os que lemos.

borgesshakescervantes
Borges, Shakespeare e Cervantes

 

Quem escreveu as obras de Shakespeare


Existem registros concretos de que existiu um William Shakespeare nascido em Stratford-upon-Avon e estes se encontram preservados até os dias atuais. O fato é que os dados sobre Shakespeare são poucos. E pouca informação gera milhares de teorias – muitas furadas, é bem verdade. Que ele não tinha cultura para tanto, que o seu texto era muito parecido com Philip Marlowe, Francis Bacon, etc, etc.

Nem mesmo seu rosto é consenso. Há poucos anos, a jornalista canadense Stephanie Nolen anunciou a descoberta de uma pintura de 1603 que seria então o único retrato legítimo do bardo. Depois de ser publicada pelo jornal The Globe and Mail, a reportagem se tornou livro, publicado no Brasil em 2004 com o título O Rosto de Shakespeare. Stephanie Nolen busca identificar em que medida um quadro com o tal novo rosto de Shakespeare, cujo atual dono é um canadense e vizinho da mãe da jornalista, poderia ser considerado como a única pintura do bardo feita em vida. O livro possui uma reconstituição de época interessante e revela alguns detalhes e sugestões de como pode ter sido a vida do nosso prezado Will.

Já o espanhol Fernando Martínez Laínez vai mais pelo lado da imaginação no capítulo “O homem que pode ser Shakespeare” de seu livro Escritores e Espiões, no qual aborda onze autores que teriam uma outra atividade além da escrita. Laínez aponta que Marlowe teria forjado a própria morte para continuar escrevendo sob o pseudônimo William Shakespeare. E tudo porque Marlowe era espião.

Para se responder a questão “Shakespeare era Shakespeare?” é preciso ter fé, acreditar, ponderar e opinar sobre o que temos de informação sobre o tema. No entanto, quaisquer dúvidas sobre a figura do dramaturgo não interferem no que é mais precioso: sua obra. Se é importante saber quem a escreveu? Suponho que sim. A vida de um autor sempre tem importância naquilo que lhe é creditado. Shakespeare escreveu no tempo certo as palavras certas, por isso é tão difícil alguém superá-lo.

Alguém foi Shakespeare, independente se foi o próprio Shakespeare ou outrem. E é esse alguém que é o Shakespeare que conhecemos hoje.

O resto é história. Ou melhor, literatura.

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Shakespeare romântico?


Doce é a tristeza lida nas palavras de um amor que se ausenta. Porque trágica, sentimental e libertadora, tal frase bem poderia abrir um capítulo qualquer de um livro romântico. Enquanto estilo artístico, o romantismo ocupa um determinado período na história da arte (ainda que estas fases não sejam tão claras como naquelas perguntas de vestibular). William Shakespeare poderia ter escrito frase similar em alguma de suas obras – ainda que o fizesse com muito mais talento literário. Algo assim: “Parting is such sweet sorrow, that I shall say good night till it be morrow”. / “Toda despedida é dor… tão doce todavia, que eu te diria boa noite até que amanhecesse o dia“. Apesar dos sentimentos românticos nos textos do bardo serem abordados com seu característico esmero, o mesmo pode ser dito a favor de outros elementos, como os filosóficos, os dramáticos, os históricos, etc… Logo, não cabe ao poeta inglês a identificação qual autor romântico como pede o figurino (aqui um jogo de palavras proposital para com o teatro e a coxia). Ao mesmo tempo, os românticos se inspiraram largamente em Shakespeare para escrever suas histórias, não restam quaisquer dúvidas! Romeu & Julieta é uma obra basilar para a criação romântica, sendo referenciada em diversos momentos nas obras de escritores, pintores e toda sorte de artistas. Além disso, os românticos são responsáveis (não isoladamente, saliente-se) por um reavivamento dos textos shakespearianos. Uma hipótese definitiva: talvez tenha sido somente a partir do romantismo que Sir William se tornou um autor clássico! Por isso, melhor ficar com as palavras dele.

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Tragédia e comédia no maneirismo shakespeariano


Ainda que o contraste entre comédia e tragédia desagrade os gostos mais austeros e puritanos, à arte cabe também uma elaboração da vida que vai além de princípios unilaterais.

William Shakespeare mesclou o humor ao trágico com o talento que lhe era peculiar. Um dos casos mais divertidos e relevantes nesta união de dor e alegria se dá com a atarantada Ama de Julieta no clássico A Excelentíssima e Lamentável Tragédia de Romeu e Julieta (como a peça foi chamada numa de suas primeiras publicações): trata-se de um feliz revide do bardo aos que pregavam um classicismo demasiado. Foi como se o poeta soubesse na medida correta o grau demodè que a tradição teatral clássica grega trazia consigo. Shakespeare deve ter lido alguns daqueles autores consagrados, provavelmente Sófocles, Eurípedes, Ésquilo e outros mais. Com tais leituras, o bardo sentiu que aquela separação de gêneros – Comédia / Tragédia – já não fazia tanto sentido como dantes. Mas, além de tudo, o bardo carrega a tinta na narrativa! Suas personagens, desde o louco monarca (Rei Lear) ao ciumento mouro (Otelo), têm enredos definidos e definitivos, ainda que isso não signifique o fim das interpretações culturais. O dramaturgo de Stratford-upon-Avon soube no exercício de sua escrita o quanto a tradição pode ser útil quando se quer buscar algo que a ultrapasse em excelência, mas nunca em essência. Assim, temos o aprofundamento da matéria humana, jamais uma negação.

Por esta sinergia de gêneros e outros motivos, alguns estudiosos insistem em não incluir Shakespeare no estilo literário renascentista, mas sim no Maneirismo. Este último é caracterizado por tentar a conciliação das heranças medieval e renascentista, fundir o cômico e o trágico, colocar uma natureza dupla do herói, pela presença do grotesco e o convívio dos elementos realista e fantásticos. Nesse sentido, tanto a obra do autor inglês quanto a de Miguel de Cervantes (que, não por acaso, aparecem tardiamente no que chamamos de Renascimento) seriam maneiristas. Além da comicidade da Ama dos Capuletos, diversas situações que corroboram esta classificação estão distribuídas em outras peças do bardo. Vide o drama fantástico de Hamlet que enxerga o fantasma de seu pai, a presença do grotesco em seus vilões como Ricardo III e, mesmo, na trama carnívora de Titus Andronicus. Talvez a mesma conjuntura não valha à Espanha de Cervantes (talvez o país mais católico de então), mas a Inglaterra protestante na qual vivia o bardo possibilitou uma condição sine qua non para que estas características tão peculiares ganhassem relevância em praticamente toda sua obra.

Segundo Eduardo Dowden, em Característicos da Literatura Isabelina, a confluência do protestantismo com o renascimento possibilitou o florescimento de ideias e sugestões com um pé no mundo material e outro no mundo espiritual. Se o dramaturgo pode ter vindo de uma família católica, conforme aponta F. E. Halliday no livro Shakespeare – Vidas Literárias, isso só corrobora como essa duplicidade está presente em sua obra.

Seja como for, a classificação da obras de William Shakespeare como pertencentes ao Maneirismo ou ao Renascimento não consegue apontar a verdadeira categoria na qual nosso ilustre escritor se encontra: a dos gênios.

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