Tragédia e comédia no maneirismo shakespeariano


Ainda que o contraste entre comédia e tragédia desagrade os gostos mais austeros e puritanos, à arte cabe também uma elaboração da vida que vai além de princípios unilaterais.

William Shakespeare mesclou o humor ao trágico com o talento que lhe era peculiar. Um dos casos mais divertidos e relevantes nesta união de dor e alegria se dá com a atarantada Ama de Julieta no clássico A Excelentíssima e Lamentável Tragédia de Romeu e Julieta (como a peça foi chamada numa de suas primeiras publicações): trata-se de um feliz revide do bardo aos que pregavam um classicismo demasiado. Foi como se o poeta soubesse na medida correta o grau demodè que a tradição teatral clássica grega trazia consigo. Shakespeare deve ter lido alguns daqueles autores consagrados, provavelmente Sófocles, Eurípedes, Ésquilo e outros mais. Com tais leituras, o bardo sentiu que aquela separação de gêneros – Comédia / Tragédia – já não fazia tanto sentido como dantes. Mas, além de tudo, o bardo carrega a tinta na narrativa! Suas personagens, desde o louco monarca (Rei Lear) ao ciumento mouro (Otelo), têm enredos definidos e definitivos, ainda que isso não signifique o fim das interpretações culturais. O dramaturgo de Stratford-upon-Avon soube no exercício de sua escrita o quanto a tradição pode ser útil quando se quer buscar algo que a ultrapasse em excelência, mas nunca em essência. Assim, temos o aprofundamento da matéria humana, jamais uma negação.

Por esta sinergia de gêneros e outros motivos, alguns estudiosos insistem em não incluir Shakespeare no estilo literário renascentista, mas sim no Maneirismo. Este último é caracterizado por tentar a conciliação das heranças medieval e renascentista, fundir o cômico e o trágico, colocar uma natureza dupla do herói, pela presença do grotesco e o convívio dos elementos realista e fantásticos. Nesse sentido, tanto a obra do autor inglês quanto a de Miguel de Cervantes (que, não por acaso, aparecem tardiamente no que chamamos de Renascimento) seriam maneiristas. Além da comicidade da Ama dos Capuletos, diversas situações que corroboram esta classificação estão distribuídas em outras peças do bardo. Vide o drama fantástico de Hamlet que enxerga o fantasma de seu pai, a presença do grotesco em seus vilões como Ricardo III e, mesmo, na trama carnívora de Titus Andronicus. Talvez a mesma conjuntura não valha à Espanha de Cervantes (talvez o país mais católico de então), mas a Inglaterra protestante na qual vivia o bardo possibilitou uma condição sine qua non para que estas características tão peculiares ganhassem relevância em praticamente toda sua obra.

Segundo Eduardo Dowden, em Característicos da Literatura Isabelina, a confluência do protestantismo com o renascimento possibilitou o florescimento de ideias e sugestões com um pé no mundo material e outro no mundo espiritual. Se o dramaturgo pode ter vindo de uma família católica, conforme aponta F. E. Halliday no livro Shakespeare – Vidas Literárias, isso só corrobora como essa duplicidade está presente em sua obra.

Seja como for, a classificação da obras de William Shakespeare como pertencentes ao Maneirismo ou ao Renascimento não consegue apontar a verdadeira categoria na qual nosso ilustre escritor se encontra: a dos gênios.

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