Receita para a páscoa gorda


Vamos aos ingredientes de forma prática: pegue duas ou três garrafas de amor-próprio e esvazie-as dentro de uma bandeja dourada – na ausência de ouro, pode ser plástico mesmo. Antes, porém, unte o recipiente com testemunhos de amizade, mas do Tipo A: aqueles que você só consegue dos verdadeiros e fiéis Amigos. Com uma colher de madeira, apanhe alguns pedaços de memórias familiares meio amargas, pois é importante entender que tudo faz parte desta receita, mesmo os dias difíceis, mesmo as horas tristes.

Se tiver à mão cachos de saudade, também não se furte a usá-los com parcimônia. Afinal, saudade em excesso poderá te deixar meio grogue e nunca se sabe quando a blitz vai te parar. Na dúvida, elimine as saudades recentes, pois as recordações antigas trazem mais conforto porque já estão bem sedimentadas.

Seja coerente consigo mesmo na escolha dos ingredientes principais. Adicione as doces declarações de amor como quem prepara uma festa de aniversário. Não se preocupe com o nível de açúcar em seu sangue, pois tudo se transformará em sorrisos despreocupados e prazerosos gemidos de “hummm”.

Para o tempero, é preciso alguns litros de condescendência. Não, não tente agradar a todos, pois este é o jeito mais fácil para errar em cheio. Dizem os grandes cozinheiros que a melhor receita não é aquela popular, mas sim a especial. A singularidade de uma receita para a páscoa gorda deve ser medida em todos os temperos escolhidos. Pitadas de bom senso são sempre bem vindas, assim como doses grandes de humildade e paciência.

Mas nunca, jamais, nunca mesmo se esqueça da fé. Por um momento, deixe de lado a ideia de que fé e religião são vizinhas íntimas. Fique apenas com a fé numa porção exata para abrandar aquele inevitável sabor de fatalidade que vem com os anos. A medida exata da fé é, evidentemente, variável. A cada preparo, a execução e o resultado mudam a partir da experiência individual. Esta porção, assim, culminará com uma maravilhosa explosão no paladar, expandindo-se para todo o corpo e, se tudo der certo, alcançando aqueles que lhes são próximos.

Esta é uma receita simples, mas relativamente trabalhosa. Foi construída ao longo dos séculos por praticamente todos os seres humanos que já viveram. Para um ou para outro, ganhou motivações e significados mais apurados. Judeus e cristãos têm mais afinidade para com a páscoa, mas a receita é válida para qualquer um, em qualquer tempo ou lugar. E se, ainda assim, persistir o medo de engordar, não se preocupe: faz muito bem à saúde se empanturrar de fatias e mais fatias de amor.

> Crônica publicada no Jornal Notícias do Dia em 28/03/2013.

Um jipe e algumas pedaladas


Sempre gostei de jipe. Não sei explicar exatamente a razão, mas desconfio que os motivos estejam lá na infância, com aqueles brinquedos de plástico da década de 1980. Um jipe é metade carro popular e metade caminhonete high society. É alto a partir do chão, mas baixo no conjunto da obra. Ótimo para terrenos irregulares e cheio de estilo nas vias urbanas, esburacadas ou não. Enfim, um veículo ideal para a Ilha, porque suas características são também robustas e meio deslocadas de todo o resto.

Não lembro se tive muitas bicicletas ao longo de minha infância, mas andava sobremaneira com elas. Ali no Parque São Jorge, onde morei meus primeiros anos, as ruas em paralelepípedo eram aliadas das nossas incursões aventureiras – minhas e da turma do bairro. Naquele tempo, os ainda muitos terrenos baldios e morros desocupados nos convidavam à exploração. No Parque ou nos arredores (Santa Mônica, Itacorubi, Córrego Grande), os espaços para ciclistas nunca foram dos melhores, e contávamos apenas com o pouco movimento nas vias secundárias. Enfim, a Ilha era bem menor.

Cresci, não duvidem. Passei dos trinta anos, já tive um carro roubado e, às vezes, saio de São José, onde moro, e sigo para Florianópolis. Ao usar o carro, em cada viagem intermunicipal imagino o tempo que será perdido nas filas do trânsito. Não, ainda não tenho o meu sonhado jipe e há anos não possuo bicicleta. Nalgumas ocasiões, vou e volto da Ilha utilizando o transporte coletivo e é, então, quando observo angustiado o quanto a cidade cresce sem se preocupar com sua mobilidade.

Dia destes um pessoal saiu às ruas pedalando com pouca ou nenhuma roupa para protestar contra a falta de oportunidades de um translado seguro sobre suas magrelas. E isso me parece bastante justo. Florianópolis, justamente por ser uma Ilha na qual o concreto foi recortando a natureza, deveria ser a capital brasileira da bicicleta. O automóvel é uma invenção bacana, mesmo o jipe que tanto almejo, mas a bicicleta é uma ideia brilhante porque traz consigo tudo o que é moderno. Uma estrutura simples sustenta duas rodas que impulsionam o ser humano para frente. Isto é o progresso sem ofender ninguém.

Com mais algumas pedaladas, teremos a chance de construir um caminho solidário, sem idiotas nervosos que usam carros como armas e sem malucos irresponsáveis com álcool na cabeça passando por cima sobre de ciclistas. E este me parece ser um sonho tão ou mais simpático quanto ter um jipe. Enquanto isso, talvez eu compre uma bicicleta.

> Crônica publicada no Jornal Notícias do Dia em 14/03/2013.