Diferente do Oscar, o Grammy não se transformou numa cerimônia esperada anualmente em todo o globo. Mesmo que a música tenha um apelo muito mais imediato do que o cinema, as singularidades dos grandes filmes ultrapassam a rapidez de uma canção. Não me entendem mal; não estou fazendo qualquer comparação entre duas formas de arte – seria como afirmar que um filme baseado num romance perde todas as nuances da leitura. Fazê-la seria pura e simples bobagem anacrônica, qual uma sinestesia que não sabe se é cheiro ou sabor porque foi atraída pela sonoridade da cor. Outra diferença entre as premiações tem a ver com a localização: o Oscar premia, quase sempre, produções que percorrem os cinemas de todo o mundo, enquanto boa parte do Grammy tem a ver com a música feita na América para o público estadunidense. Não é por acaso que alguns (ou a maioria) dos indicados e vencedores em categorias como “melhor álbum country” ou “melhor álbum vocal de jazz” são completos desconhecidos no Brasil e, possivelmente, também em outros países que consomem música norte-americana.
Entrementes, a 60ª Cerimônia Anual do Grammy Awards, realizada no dia 28/01/2018, contou com uma vencedora em especial que uniu os universos cinematográfico e musical de modo singular e quase discreto. A atriz Carrie Fisher venceu na categoria de “melhor álbum falado” com a versão em áudio de seu livro “Memórias da princesa: Os diários de Carrie Fisher“. Carrie faleceu em 2016, aos 60 anos, quando retomava o papel que lhe deu fama mundial na série de filmes Star Wars. No livro, a atriz expõe suas anotações da época em que participou das filmagens do primeiro capítulo da saga estelar. Assim, memórias de 1976 são apresentadas na forma de diário, enquanto as observações de uma atriz e escritora madura se mesclam num humor mordaz. Para além da revelação principal, o caso que teve naquele período com o parceiro de cena Harrison Ford, damos com uma interpretação crua sem ser cruel de quem viveu os dilemas da fama justamente naquele que é, talvez, o grande fenômeno do entretenimento no século XX.
Filha da atriz Debbie Reynolds (notadamente lembrada pelo musical Cantando na Chuva), Carrie Fisher ficou e ficará eternizada no imaginário coletivo como a Princesa Leia Organa. A personagem destemida e rebelde se revela fundamental na destruição da Estrela da Morte, a terrível arma de destruição em massa do Império Galático. Tanta responsabilidade, claro, tem seus efeitos colaterais. O papel da princesa jamais lhe permitiu outros sucessos no meio do cinema e ainda lhe relegou à participante frequente de eventos nerds, como Comic Cons e afins, porque ela tinha de pagar as próprias contas. Essas revelações décadas após o sucesso estrondoso dos três primeiros episódios de Star Wars contrastam com as anotações da jovem atriz, então com 20 anos, gravando apenas seu segundo filme, repleta de vigor e entusiasmo, envolvida num caso sabidamente passageiro com seu colega de trabalho. E este é o grande trunfo do livro: apresentar uma vida interessante, utilizando um fato incomum como motor principal daquelas experiências que, de um jeito ou de outro, acontecem com todo mundo.
Não li (ou ouvi) os demais indicados na categoria “melhor álbum falado”, mas sei da relevância de seus nomes: o astrofísco Neil deGrasse Tyson, o cantor Bruce Springsteen, a compositora Shelly Peiken e o político Bernie Sanders – todos vivos. A repentina morte de Carrie Fisher influenciou no resultado da premiação? Talvez. Mas esta é uma questão que parece não explicar muita coisa. A confluência das artes – literatura, cinema, música… – ainda é a atração principal. As histórias de gente comum são fascinantes por si só, sejam estas memórias de uma atriz ou de uma princesa.
Trecho do livro “Memórias da princesa: Os diários de Carrie Fisher”:
“Não consigo me lembrar bem de quando comecei a me referir a dar autógrafos por dinheiro como uma dança sensual das celebridades, mas tenho certeza de que não demorei muito para inventar isso. É dança erótica sem a parte de enfiar dinheiro na calcinha e sem os malabarismo no pole – ou o pole seria representado pela caneta? Certamente é a forma mais elaborada de prostituição: a troca de uma assinatura por dinheiro, em lugar de uma dança ou esfregação. Em vez de tirar a roupa, as celebridades tiram a distância criada por filmes ou pelo palco. Ambos trafegam na área da intimidade.”
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