Sonhos capitais


Como substituir o capital sem utilizar outro objeto de sonho? Dos tesouros piratas e fortunas de imperadores chegando ao capital fictício em movimento, a objetificação se apresenta inerente aos modos de produção capitalistas. Há, por óbvio, uma enorme diferença entre se olhar no espelho e olhar através do espelho. Na ficção, a Alice de Lewis Carroll anulou esta diferença com um truque literário. Fora dali, os recursos materiais disponíveis encontram logo um correspondente imaterial. Capital existe muito antes do capitalismo, convém ressaltar. Sobretudo em sua forma pecuniária. O cotidiano avassalador e alienante, por vezes, impõe uma crença de que alguns materiais possuem valor intrínseco, como os metais ditos preciosos, quais ouro e prata. Destarte que todo o valor que há neles vêm de uma abstração definida pela cultura. Quando os europeus chegaram ao Novo Mundo, os nativos ameríndios não tardaram a perceber a sanha dos visitantes pelos tesouros oriundos da terra. Daí que o engodo do El Dorado se revelou um estratagema dos mais vigorosos e duradouros. A farsa persiste desde os tempos dos achamentos/descobrimentos até os dias atuais. Das trinta moedas de prata que nenhum lucro trouxeram para Judas Iscariotes aos bandeirantes que fizeram troça do Tratado de Tordesilhas para avançar pelo continente, destroçando paisagens e nativos pelo caminho: o vil metal, não importa a forma, desperta o sonhador com um fascínio metafísico. Nos oitocentos, Karl Marx compreendeu que o capitalismo transformou o capital em mercadoria (bem como em sujeito da história). Eis que o fetichismo da mercadoria alcançou o próprio capital; um desejo sem fim pelo acúmulo, pela capitalização sem a necessidade de quaisquer atravessadores; unicamente o dinheiro se reproduzindo por si mesmo ‘inda mais rápido do que os coelhos. Não há cajadadas que possam atingir os sonhos. Crises e contradições tiraram os sonos dos proletários na primeira Revolução Industrial. John Maynard Keynes tentou interagir com o sistema de modo prático a partir de um Estado interventor. Os Acordos de Bretton Woods, afinal, não passaram de uma soneca atípica, ligeira bonança fora da curva de exclusão; sesta com a barriga cheia na antevéspera do espelho quebrado. Alice encontrou o Gato de Cheshire e, como não sabia para onde queria ir, recebeu a orientação de que qualquer caminho servia. No País das Maravilhas ou aqui mesmo entre nós, nada importa sem um referencial – mesmo que seja um ponto de partida nascido de desejos íntimos fomentados pelo capital. O fim de um correspondente imaterial (de sonho) talvez seja a chave para abrir as portas que conduzem a um futuro sem crise, alienação e exploração. Porque até mesmo um pirata carece de alguma margem de segurança financeira para expropriar outrem. O Coelho Branco está atrasado para abrir sua conta no banco.

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O Capote (1842), conto de Nikolai Gógol


Akaki Akakiévitch atravessou a casa dos cinquenta anos e também uma praça, mais parecida com um deserto ou um mar de trevas. Fosse qual fosse, não se lhe pintava um local aprazível, tanto que decidiu evitar a manutenção dos olhos abertos. Dois ou três indivíduos, o autor não desejou precisar quantos, abordaram-lhe e o despojaram de seu capote. Para alguém, São Petersburgo ardia mesmo no inverno rigoroso.

O Capote (1842), conto de Nikolai Gógol (1809-1852), desenrola o antes e o depois deste acontecimento singular na vida de Akaki Akakiévitch. A personagem recebe o nome do pai na falta de outro mais adequado. Dado que uma coisa leva a outra, a alcunha pouco original como que lhe imputou o drama da repetição. No departamento em que trabalhava, só fazia copiar documentos e ser importunado pelos colegas. Gógol tece um fabuloso documentário fictício e, talvez por isso mesmo, concreto e realista sobre a burocracia e outras trivialidades do capitalismo já hegemônico naquela primeira metade do século XIX. Donde que um capote surrado, desbastado ao ponto de quase inexistir e decomposto pelo uso, exige uma nova mercadoria – ainda que venha sob relutância e, posteriormente, sacrifício. Cálculos aqui e acolá; economia até mesmo em refeições essenciais. Eis que o capote novo, esculpido sobre seu corpo, peça única e singular, torna possível o primeiro contato efetivo com a originalidade. Daí que outro mundo de relações pessoais se descortina. Elogios, bajulações, brindes para um sujeito enobrecido pelo objeto que adquiriu. Prazer e admiração efêmeros; pouco menos de um dia. O que lhe fez importante foi tão somente sujeitar seu corpo ao objeto. Reificação em níveis altíssimos – elemento abordado em parte relevante dos textos de Karl Marx (1818-1883) sobre o capitalismo.

Mas há gente sempre disposta a dar importância a coisas que não têm nenhuma”, escreveu Gógol onisciente da história, mesmo com os subterfúgios bem humorados de esquecer o que lhe convém.

Este conto de Gógol conversa de modo franco com O Casaco de Marx, ensaio de Peter Stallybrass, no qual o filósofo alemão se torna personagem de um episódio bastante singular quando em suas atividades de escritor. Enquanto fazia pesquisas em Londres para aquilo que viria a ser a base de O Capital, Marx passava por muitos problemas financeiros. Os estudos exigiam seguidas visitas à biblioteca, mas não era possível realizá-las porque o frio o impedia de sair à rua. O próprio Marx explica a situação numa carta para seu colega e também filósofo Friedrich Engels (1820-1895): “Há uma semana cheguei ao agradável ponto no qual não posso sair por causa dos casacos que tive que penhorar”. Tal dificuldade se deu ao longo dos anos 1850 e início da década seguinte, como explica Stallybrass, que destaca ainda: “As roupas que Marx vestia determinavam assim o que ele escrevia. Existe, aqui, um nível vulgar de determinação material que é difícil até de considerar, embora as considerações materiais vulgares fossem precisamente aquilo que Marx estava discutindo: todo o primeiro capítulo de O Capital traça as migrações de um casaco, visto como uma mercadoria, no interior do mercado capitalista. Naturalmente, se tivesse penhorado seu casaco, Marx simplesmente precisava parar suas pesquisas e voltar para o jornalismo. Suas pesquisas não traziam dinheiro algum; seu jornalismo trazia um pouco.” Não cansa de ser atual, tanto na filosofia, quanto no jornalismo.

Longe de ser filósofo, Akaki Akakiévitch reproduzia apenas textos alheios. Isso certamente não o coloca entre os imortais da literatura ou nos cânones do pensamento humano, tampouco o próprio copista almejava semelhante distinção. Ao contrário. “Dificilmente se encontraria um homem tão profundamente apegado ao seu emprego como Akaki Akakiévitch. Trabalhava com zelo; não, é dizer pouco: trabalhava era com amor. Aquele eterno transcrever parecia-lhe um mundo só dele, sempre agradável, sempre novo”. Gógol não o julga moralmente a partir das escolhas executadas por sua personagem principal. Sabemos nós, leitores, que o sujeito não passa de um coitado imerso num ambiente medíocre – não aquela mediocridade pejorativa, desleixada, mas sim esta intenção mediana, modesta, amiúde, típica de quem é explorado. O trabalhador burocrata se apresenta tão alienado quanto o funcionário ao rés-do-chão de fábrica. Dois mundos que se inter-relacionam e pouco dialogam entre si.

Fora da literatura, Machado de Assis (1839-1908) compartilha de alguma similaridade para com Akaki Akakiévitch. O escritor carioca exerceu algumas atividades burocráticas, incluindo um curioso cargo de censor teatral e outro como responsável pelas contas do Ministério de Obras e Viação. Por sinal, a função de guarda-livros, o equivalente ao atual contador, figuraria como profissão de diversas personagens machadianas. A burocracia também se atrela ao seu narrador mais icônico, o defunto-autor que protagoniza as Memórias Póstumas de Brás Cubas. O verme que primeiro roeu as frias carnes do seu cadáver agradeceu a dedicatória, mas ainda mais feliz ficou o próprio Brás Cubas ao lograr êxito pela primeira vez em sua vida – mesmo que tenha sido após a morte. Sim, as tais memórias publicadas em folhetim e, posteriormente, em formato de livro, são a grande realização pessoal de si para si mesmo, pouco importando a opinião alheia. Outra afinidade entre as obras: somente no além túmulo, Akaki Akakiévitch encontra o alento para alma, subtraindo dos vivos os capotes nas ruas geladas de São Petersburgo, incluindo o daquele burocrata, sujeitinho qualquer coisa importante, que o tratou com descomposturas quando ouviu suas súplicas para ajudar na recuperação da vestimenta roubada. Uma luta de classes em meio às trevas urbanas.

Qual a neve que caía em São Petersburgo, o capote mingou até desaparecer. Um exercício de poder social ainda mais retumbante que a força da natureza.

O Capote. Conto escrito por Nikolai Gógol. Traduzido por Vinicius de Moraes. Publicado originalmente em 1842. Presente no livro Contos russos / coordenação de Rubem Braga; prefácio de Aníbal Machado; notas biográficas de Valdemar Cavalcanti; supervisão de Graciliano Ramos. Ediouro, 2004.

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Superman: Entre a Foice e o Martelo (2003)


E se aquela pequena espaçonave de Krypton tivesse caído numa fazenda coletiva na União Soviética? Aquele bebê a bordo – possivelmente o único sobrevivente de um planeta muito mais evoluído que a Terra – também se tornaria um símbolo para o mundo livre? Eis o tema de Superman: Entre a Foice e o Martelo, história em quadrinhos com texto de Mark Millar, desenho de Dave Johnson e arte-final de Andrew Robinson. Que destino teria o homem que se tornaria super? Ele deixaria de lado o intervencionismo econômico de Roosevelt com o New Deal, mais tarde teorizado por Keynes em sua Teoria geral do emprego, do juro e da moeda? Seria ele um escoteiro comunista, seguidor materialismo histórico e dialético? “A história de todas as sociedades que existiram até nossos dias tem sido a história das lutas de classes”, escreveram Marx e Engels no Manifesto do Partido Comunista. E poderíamos complementar tal ideia afirmando que a história destas mesmas sociedades também se deve a uma sucessão de acasos e coincidências – como o local de pouso de uma pequena nave lançada de um planeta prestes a explodir…

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O Rio e mais um monte


Duas décadas após a Rio-92, o Rio de Janeiro e o mundo também se encontram num momento tão peculiar e transitório como nos parecia o início dos anos 1990. Se no final do século passado tínhamos o fim das dicotomias ideológicas a favor do capitalismo, com a derrocada dos soviéticos, a recente unificação alemã e todos aqueles outros capítulos dos livros de história, hoje a situação é tão diferente quanto parecida.

O que se discute agora é, mais uma vez, o fim do capitalismo (como o crash de 1929, as crises do petróleo a partir dos anos 1950, etc, etc). Basta pegar um avião ou mesmo um transatlântico e lá estaremos na Europa fragilizada por uma moeda que lhes pregou uma peça tragicômica. Não por acaso, os próprios gregos, que formataram os conceitos básicos de comédia e tragédia, acabaram por revelar ao mundo que a globalização já não é uma ideia romântica como em outrora. A partir de 2010, com o anúncio da dívida pública grega, chegamos novamente num dos recomeços inevitáveis do capital e já não temos mais Karl Marx para melhorar suas observações e nem temos mais os Irmãos Marx para nos fazer rir dessa piada contemporânea.

Já no Rio de Janeiro há uma esperança por mudanças críticas, com as obras que visam tornar a cidade mais apresentável, por assim dizer, para os Jogos Olímpicos de 2016 e, ainda, para os jogos da Copa do Mundo de 2014 no Maracanã (que não se repita a final de 1930, com o Uruguai acabando com a festa dos brasileiros, por obséquio). Há também as chamadas pacificações, que tentam diminuir consideravelmente a presença do crime organizado, com alguma ênfase nas comunidades mais carentes, onde por muitos anos o Estado tapou os dois olhos com uma venda de seda preta. Mas a violência, como a globalização, é um elemento inevitável da desorganização social e, como o capitalismo mais do que necessita da desordem (classes sociais, lucros exagerados, especulações sem sentido), parece-nos útil que, enfim, a venda seja retirada e a seda que a originou seja produzida através de indústrias limpas, de tecnologias sociais geridas pelo empoderamento da comunidade.

A Rio+20, a bem dizer, precisaria ser muito mais que um evento sobre desenvolvimento sustentável. O Rio de Janeiro e mais um monte de gente têm que acreditar nas mudanças humanas de toda sorte, pois se foram os humanos que conseguiram destruir a natureza, serão os mesmos que podem salvá-la.

Este texto vai dedicado ao meu avô, que compra o Notícias do Dia religiosamente às quintas-feiras para ficar bem informado e, claro, ler os textos de seu neto.

> Crônica publicada no Jornal Notícias do Dia em 21/06/2012.

Quase no final de ano


Antes de mais nada, devo confessar que esse período que antecede a chegada de um novo ano, de acordo com o calendário cristão, não me é assim tão cativante.

E tudo isso por uma questão muito simples: não compreender por que as coisas têm de ser melhores e especiais apenas numa época do ano. Temos aí sempre 12 meses para fazer o que precisa ser feito e, mesmo assim, parece que tudo só dará certo nesse pouco mais/menos de um mês que acompanha as comemorações de Natal e Ano Novo.

Tradição é importante, indiscutivelmente. E nem cá estou eu a ir contra uma celebração encenada mias de duas mil vezes. Falemos baixinho, porém, e sejamos menos regrados em querer cenas coerentes de nosso cotidiano milenarmente construído. Parece-me demasiado estranho depositar nisso nossos anseios e acreditar que uma simples mudança de número será o elemento sine qua non do aguilhoamento que o novo ano trará. Já não estamos mais em fin-de-siècle para que seja feito todo essa mise-en-scène.

Palavras estrangeiras à parte, voltemos ao que nos interessa. As bobagens não tão bobas assim da aurora de um novo tempo.

E lá se vão dois milênios desde que aquele filho de carpinteiro pôs os pés no mundo para influenciar sobremaneira o modo de vida ocidental. Tenho comigo que Jesus Cristo e Karl Marx são as duas figuras que mais incidiram no pensamento do Ocidente e, em tempos globalizados, no Oriente também. Afinal, ainda que Cristo não tivesse os olhos puxados, as igrejas cristãs já estão por aqueles lados onde o sol nasce.

E o que Karl e Jesus têm a ver com o tema destas frases? Respondo-lhes, astutos amigos, numa palavra: Esperança. Posto que o Marxismo e o Cristianismo não foram fundados por Marx e Cristo, respectivamente, tudo o que temos hoje é uma forma de pensar e viver tão somente baseada naquilo que ambos pregaram numa determinada época da história humana. Assim, o Cristianismo dá a esperança de que todos, um dia, encontrar-se-ão com Deus. Já o Marxismo, fomenta a esperança de que as desigualdades, um dia, terão fim, quando então o comunismo fará a paz reinar na terra.

Entretanto, Cristo e Marx morreram sem ver seus ideais em pleno vigor. E, permitam-me, utilizar-me-ei de uma sentença do nosso mestre realista Machado de Assis: “A esperança ainda os fez relapsos, mas tudo morre, até a esperança, e eles saíram para nunca mais“. Posto isso, resta-me pensar que a esperança, na maioria das vezes, deve ser deixada de lado. Sim, esqueçamo-la! Nada de esperança para o ano que vem; vamos mudar o discurso. Vocês já pensaram em fazer algo?

> Crônica publicada no jornal Notícias do Dia em 08/12/2011.

Certas incertezas


Todo conhecimento é mesmo efêmero quando pensamos na História e, sob a ótica da demagogia, todo intelectual é um demagogo em maior ou menor escala.

Independentemente que o relativismo seja questionado (e por que tudo o mais não o seria sempre? – afinal, é isso o que sempre fizeram as artes e as ciências), quanto mais elaboradas as teorias mais surreal parece-nos a realidade. Por aí eu até entendo o Theodor Adorno em relação ao mundo e seu pessimismo carrancudo – coisa típica de um artista frustrado, parece-me.

Entretanto, são momentos de alguma reflexão, quando lemos alguma teoria (e elas podem ser muito divertidas), que fazem a gente lembrar do poeta Fernando Pessoa ao citar navegadores antigos e seu lema: “navegar é preciso, viver não é preciso”. Pessoa interpretou a frase com seu talento poético e trocou a navegação pela criação. Donde se pode tirar que, quando mais nada importa, é justamente no ato de criar que a experiência humana se completa. As buscas por significado, sobretudo, são nulas porque não se validam. A filosofia quase sempre diagnosticou esses deslizes humanos, quer seja na imaginação fértil e religiosa de Sócrates, ou no materialismo de Marx, ou no anti-cristianismo de Nietzsche.

Colocando as coisas em perspectiva histórica (não necessariamente um relativismo cultural), toda criação não deixa de ser engraçada. Tão engraçada que chega a ser risível pensar que nalgum momento a criação inicial tenha sido oriunda de uma grande explosão e tudo não passava de caos (o Big Bang, pois). Eis o que nos apresenta a evolução indelével esboçada por Darwin ou uma pseudo-pureza de conceitos pregada por Rosseau.

De tal feita, percebemos que mesmo os grandes gênios, como Leonardo Da Vinci tão claramente representa, eram assim considerados por especializarem-se em determinadas interpretações e alguns poucos estudos cada vez mais aprofundados. Mesmo Sir Arthur Conan Doyle disse num texto que o talento dedutivo de Sherlock Holmes poderia soar mais como uma questão de fascínio do que propriamente de sabedoria. Holmes logo de cara, na história intitulada “Um estudo em vermelho”, na qual o detetive de Baker Street aparece pela primeira vez, revela que só guarda na mente o que lhe pode ser útil para sua profissão. E, mesmo assim, o companheiro de Watson passa por brilhante feito qualquer estudioso de academia.

Com tanta teoria, o que resta-nos?, alguém hei de perguntar. E, pelo menos para mim, tenho a resposta: partir para a ação.

> Crônica publicada no jornal Notícias do Dia em 25/08/2011.

 

Novas tradições


Basta alguma união de pessoas, uma sociedade ou uma organização, para que regras sejam criadas, discutidas, reformuladas. Assim o foi durante toda a história humana, seja na visão da luta de classes iconizada por Karl Marx e Friedrich Engels, seja no atual e ainda confuso pós-modernismo virtual, seja pelos olhos de quem for. Tradições, então, são frutos dessas regras, porque leis espalham e espelham uma face evidente de uma falsa necessidade por “governos” ou por democracias representativas, para ser mais contemporâneo.

Mais que repetições institucionalizadas, tradições são importantes quando da afirmação de uma cultura. Ao se pensar numa cultura brasileira, convém então hospedar o carnaval na suíte presidencial de nossas raízes democráticas. O maior espetáculo da Terra, como muito qualificam-na, a festa nacional de raízes várias assume múltiplas faces dependendo da região do país. Há o Frevo de Pernambuco, os trios de Axé na Bahia, o samba-enredo do Rio de Janeiro e uma centena de pequenas variações por todo o Brasil. Em Florianópolis, os carros de mutação faziam a alegria dos foliões já nas primeiras décadas do cada vez mais distante século XX. No Centro e em Santo Antônio de Lisboa, o carnaval divertido era aquele das ruas, quando todos curtiam o mesmo espaço, sem a distinção de camarotes ou arquibancadas.

Mas algumastradições ficam pelo caminho ou se reinventam ou se traem pela própria obrigatoriedade dos anos. Sim, porque insistir em formas ultrapassadas pode até trazer alguma alegria momentânea, mas aí a nostalgia soergue o passado glorioso e nada mais é como era antigamente. E exemplos temos aos borbotões: a cerimôniade casamento, o baile de debutantes, e outras convicções que, se não caíram em desuso, perderam por completo o significado original. Engana-se, no entanto, quem pensa que tradições são apenas figuras reacionárias de uma teia social fechada. Ao contrário, uma opção que nos cabe é compreender a nossa carência por novas tradições e criá-las sem receio de alterar estruturas consagradas.

O carnaval é a maior de nossas tradições e, por isso mesmo, a que mais se alterou com o passar do tempo. E, perguntamos com um sorriso sarcástico no rosto: não é hora de alterar todas as demais?

> Crônica publicada no Jornal Notícias do Dia em 18/02/2010.

Toda Ilha tem num homem


Entre uma cerveja e outra, entre uma partida de sinuca e outra, entre um século e outro, os dois amigos conversam como quem faz poesia, discutem quais dois filósofos, e jamais chegam a conclusão alguma feito qualquer um de nós. São moradores da Ilha, destes que invariavelmente misturam a saudade do que foram naquilo que os torna o que são. Amadores de uma cidade, revolucionários na mesa do bar que se encontram, neste momento, investigando o tema da utopia.

– A Utopia de Thomas Morus era o nome de uma ilha, diz o primeiro.

– Ah, então está explicado, confirma misteriosamente o segundo.

Porque para Morus, na ilha de Utopia, a exclusão social seria exterminada através do trabalho, igualando privilégios e implicando uma responsabilidade única para todos. A ideia da Utopia, no entanto, correu mundo muito antes e depois de ser nomeada pelo humanista nascido naquela grande ilha que é a Inglaterra. Morus publicou seu livro em latim no ano de 1516 (uma edição no idioma nativo do autor só apareceria em 1551). Antes disso, gregos e romanos da chamada Idade Antiga formaram um ideário utópico, também tendo como cerne o trabalho dentro da cidade – a polis grega e a civitas latina. Na era dos descobrimentos (ou achamentos), o Novo Mundo era a deixa para a fértil imaginação européia vislumbrar um paraíso perdido, uma utopia desconhecida a servir de exemplo. Mesmo assim, o resultado foi apenas a destruição da cultura americana pré-Cristovão Colombo. Poucos séculos depois, e aqui a data de 1848 é singular com a publicação do Manifesto do Partido Comunista por Marx e Engels, a concepção utópica ganharia ares ainda mais intelectuais, numa interpretação que fazia do socialismo o modelo a ser seguido, baseado na análise histórico-materialista do mundo humano.

– Sempre se discutiu a mesma coisa, disse o primeiro, enquanto enchia o copo de ambos.

– Suponho que sim. Mesmo aqui nesta Ilha, agora mesmo nesta mesa sob algum efeito do álcool, continuamos a sonhar um mundo impossível.

– Impossível? Ora, não me venha com conclusões precipitadas.

– Isso não é precipitação. É puro Woody Allen aplicado ao tema de nossa conversa.

E assim encerraram a conversa. Era preciso começar uma nova partida de sinuca.

> Crônica publicada no Jornal Notícias do Dia em 30/07/2009.