A Mensageira das Violetas, de Florbela Espanca


Se o nome da poeta já é violentamente poético, suas poesias trazem a intimidade que se desabrocha para si mesma. Há uma sensualidade que parece jamais se completar. O desejo ardente do que nunca será. A acidez íntima, qual uma taça de vinho agridoce compartilhada na vontade quase desesperada, mas ciente de que a embriaguez será curta e poderosa. Florbela escreve: “Que importa o mundo e as ilusões defuntas?… | Que importa o mundo e seus orgulhos vãos?… | O mundo, amor?… As nossas bocas juntas!…”. Sonetista de mão cheia e vida curta. Decide partir de mundo por conta própria aos 36 anos em 1930. Seus versos e suas violetas, porém, ficaram para sempre.

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Na tarca do tempo cultuamos o futuro


Quem vive na região sul do Brasil ou, pelo menos, tem algum contato ou origem com a cultura gaúcha – que espalha-se do centro da Argentina até o Mato Grosso do Sul – certamente já viu ou experimentou uma cuia de chimarrão. Gostando ou não da erva-mate, é relevante pensar o quanto o hábito de tomar essa bebida quente, uma espécie de chá dos índios, faz parte de uma tradição compartilhada por milhões de pessoas.

O conceito de tradição assemelha-se ao de cultura. É um termo escorregadio; mas podemos, de algum modo, dizer que ela é justamente o conjunto de hábitos que várias pessoas têm em comum, seja numa família, numa vizinhança, numa cidade, num continente inteiro e, hoje em dia, em “tribos” – não ligadas por uma localização geográfica, mas unidas por gostos pessoais que espalham-se pelo mundo inteiro.

Na praça central da cidade de Francisco Beltrão, no sudoeste do Paraná, existe um inusitado monumento, no qual está inscrita a seguinte frase: “Na tarca do tempo cultuamos a tradição”. Desde o primeiro momento fiquei curioso em saber o que significava a palavra “tarca”, da qual nunca havia recebido notícia. – Que diabo é uma tarca?, pensei.

Aqui seria oportuno informar ao leitor que o tal monumento é uma cuia gigante?

Não sei o porquê da enormidade do objeto, talvez só Jung explique; mas sempre ficou bem claro que ali era lugar de gaúchos e descendentes, seduzidos pela promessa de terra e vida nova oferecida pela companhia colonizadora. Depois que os indígenas foram expulsos ou morreram, era a vez dos colonizadores, dos tradicionalistas, terem seu novo lugar. E, olha só, caras pintadas: a erva de vocês fica.

Bem, a tal tarca, de acordo com o dicionário, é um pedaço de madeira onde se entalham pequenos riscos para a soma de animais escravizados na pecuária, ou para a contabilidade de objetos. Na tarca do tempo. Na madeira do tempo. Um pedaço de madeira onde se marca o tempo. Um calendário entalhado em madeira. O tempo registrado de forma contundente, como uma escultura. Um molde do tempo.

Cultuar também significa venerar, reverenciar, ter admiração e respeito. No calendário entalhado reverenciamos a tradição. A cultura, aquilo que é compartilhado entre muitos. A tradição, a cultura entregue de geração em geração. Aquilo que recebemos de nossos pais. Honra.

É estranho pensar em cultura no séc. XXI. As mentalidades estão se transformando, rapidamente. Saímos de um mundo multicultural, onde era admitida a convivência entre várias culturas diferentes que não se confundiam, ligadas por um passado histórico comum, para outro mundo, intercultural, onde as diferentes culturas misturam-se e não parecem mais estar ligadas pela tradição, mas sim por ideias, pelo futuro.

Como pensa a nova geração? Quando olho para meu enteado, muitas vezes penso no que sente em relação à região onde vive e ao passado. Sendo um nascido após o impactante evento de 11 de setembro, como lida com uma realidade em que a internet sempre existiu e sempre foi onipresente? Acredito que, para ele, pouco importa a cidade onde mora ou o que ocorreu na época de seus pais e avós.

Nós já não transmitimos a ele uma tradição compartilhada há muitas gerações. Para a minha geração, que cresceu bombardeada por videocassetes e videogames, a região de vivência já era pouco relevante. Agora, tudo está ainda mais diluído. Em nuvens de bits e bytes, o passado está sempre presente no You Tube, na palma da mão. Está gravado, entalhado na tarca, nunca vai embora. Para que cronistas? Para que disciplina histórica? Os vídeos não mentem, não podem ser manipulados. Deixem-me fazer minha própria interpretação dos fatos.

Será?

Sempre haverá um narrador, um olhar, uma ênfase. Observador e objeto são um só apenas no mundo espiritual. Por aqui, as deep fakes, os vídeos altamente manipulados, editados e enviesados, prometem virar as ideias de pernas para o ar, fazem vítimas, agitando os mais calmos e nocauteando os mais incautos.

A idealização do futuro e a rejeição dos estudos do passado. O culto ao presente. O agora. O historiador Jacques Le Goff dizia que havia uma dualidade nas mentalidades, que dividiam-se entre Antigo e Moderno, Progresso e Reação. Para um homem medieval típico, o mundo tendia sempre à desordem, ao fim dos tempos. Já para um filho médio do séc. XX, o futuro era a promessa de prosperidade tecnológica – caso evitássemos a bomba atômica, é claro.

Bem, para onde vamos? O aqui e agora. Procuramos não deixar nada aos nossos filhos, a não ser valores de harmonia e respeito por si mesmo e seus semelhantes, desde plantas e animais, até a toda ecosfera. A imensa iconosfera virtual onde sua mente habita é fortemente agitada pelos ventos dos tweets, memes e comentários – mas seus pés são como raízes no chão da realidade, onde as pessoas ainda precisam estudar e trabalhar para crescer ao sol.

Eu vi minha mãe bebendo chimarrão durante toda minha infância e juventude, mas nunca havia tomado. Apenas observei. E resolvi fazer o mesmo depois de adulto. Uma ideia que foi cultivada e floresceu muito tempo depois. Não cultuo a tradição, mas tenho respeito por ela, assim como tenho respeito pelos seres humanos e seus devaneios.

Espero, de verdade, que minha prole não nos reverencie. Que minha descendência afetiva, e efetiva, encontre ocupação e realização, apesar do poder sem fronteiras do capital digital sobre o trabalho precarizado. Que não nos cultue. Mas que sua geração aprenda com nossos erros e nos perdoe por não termos deixado um mundo melhor. Daqui a 30 ou 40 anos, espero que ainda possamos dividir uma cuia; eu e meu enteado, sem compromisso, olhando as nuvens…

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Esta crônica foi uma colaboração de Tiago Masutti. Para ler outros textos deste autor, siga-o no seu BlogInstagramFacebookWattpad ou Centopeia Site.

Realidades Adaptadas (contos escritos entre 1953 e 1966), de Philip K. Dick


A ficção científica de Philip K. Dick é sensorial e filosófica. Seus textos se ampliam justamente porque não são precisos, quase vagos. Daí, talvez, a dificuldade de adaptar sua obra no cinema. Neste Realidades Adaptadas, temos os contos que inspiraram os filmes O Vingador do Futuro (1990), Minority Report – A Nova Lei (2002), O Pagamento (2003), Os Agentes do Destino (2011), O Vidente (2007), Impostor (2001) e Screamers – Assassinos Cibernéticos (1995). Todos os contos muito bons. Já os filmes, quase todos muito fracos.

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Entre a Praça e o Porto (2008), de Angelo Renato Biléssimo


Sob a égide da liberdade, parece-nos que a faceta mais relevante da história é sua capacidade de jamais se esgotar. O recorte objetivo de uma documentação disponível (mas pouco explorada) nos permite ir além do que os dados contam na superfície. Neste Entre a praça e o porto: grandes fortunas nos inventários post mortem em Desterro (1860-1880), o historiador Angelo Renato Biléssimo lida com o passado da capital catarinense, então chamada Desterro, para discutir as relações humanas na sua complexidade de sempre, porém com um vigor pioneiro. Os inventários post mortem, que servem de eixo condutor do livro, revelam nuanças de uma elite que se estruturou na cidade e cujos desenlaces socioeconômicos ainda são presentes no cotidiano de Florianópolis. A escravidão também marca presença no livro – os cativos faziam parte do patrimônio de muitas destas famílias com grande poder na economia e na política. Porque a cidade e as pessoas nunca param no tempo.

> Entre a Praça e o Porto: grandes fortunas nos inventários Post Mortem em Desterro (1860-1880). Escrito por Angelo Renato Biléssimo. Casa Aberta, 2008.

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A Mulher Mais Linda da Cidade e Outras Histórias, de Charles Bukowski


Porque parte de nossa miséria, a poesia urbana escorre feito prosa, misturando-se à chuva na sarjeta. A história das ruas, dos sem eira nem beira, da perversidade num mundo de aparências move os escritores desde há muito. Uns, como Honoré de Balzac na sua Comédia Humana, eram ácidos sem ser cruéis; o mundo poderia ser trágico, mas, ainda assim, eloquente como o recorte de uma janela. Charles Bukowski, em seu tempo, derruba janelas e portas com um chute bem dado no queixo daqueles que se metem em seu caminho. Ficam estateladas, as personagens, entre cacos de vidro, sujeira e tudo o mais que cerca o inferno (e os inferninhos) da grande cidade – Los Angeles, para ser mais específico. A Mulher Mais Linda da Cidade é, também, a pior – e, por isso mesmo, legítimo exemplar da espécie humana –, que se envolve com o pior homem. Ao redor de ambos, os piores tipos se esbaldam, enfurnados em pocilgas fedorentas, penitenciárias que não valem nada e tantas outras ilusões perdidas, típicas de uma cidade que vive da imagem envelhecida dos filmes em preto e branco.

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O Oceano no Fim do Caminho (2013), de Neil Gaiman


Crescer é perder o fantástico dentro de si? Não há esta pergunta, literal ou literariamente, no livro O Oceano no Fim do Caminho, de Neil Gaiman, mas ela está oculta qual uma entidade tão velha quanto o tempo. A volta à casa de infância, quarenta anos após ter vivido um tempo saudoso e difícil, faz eclodir as lembranças – outra vez, e de novo. O britânico Neil Gaiman atualiza o gênero fantasia com o toque sutil e talentoso que o consagrara já em suas obras iniciais, como na série em quadrinhos Os Livros da Magia (1990-91). O Oceano no Fim do Caminho é, ainda, uma história curta que se estendeu por conta própria, como salienta o autor, e traz a engenhosidade característica de suas obras da primeira década do século XX, como a coleção de contos e poesias intitulada Coisas Frágeis (publicada em dois volumes no Brasil pela Conrad Editora). Se a Inglaterra tem a tradição de autores fantásticos – gente do naipe de Lewis Carroll, H. G. Wells, J. R. R. Tolkien e Terry Pratchett (sem contar, evidentemente, J. K. Rowling que é mais nova que o criador de Sandman) –, Gaiman sabe muito bem disso e homenageia passado, presente e futuro nas três gerações da família Hempstock.

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