A febre da cura


Uma época de inteirezas e incertezas – como todas as demais; diferente das demais. A medicina numa escalada proeminente de sobrevivências. O prolongamento do pulsar a qualquer custo, desde que exista capital disponível. E a existência para si como se interpõe entre tantas nuances exclusivamente físicas? Matéria em ação. Sem escolhas fatais dentro de contextos clínico-morais. Pouco importa a dor desde que haja vida? Uma jurisprudência que relativiza contextos, que se abstém da interferência política porque subjugada a esta. Filha da cultura, a medicina se conforma em obedecer a doutrina da evolução tecnológica. Cada vez mais determinismo de classe social e menos opção antropocêntrica. Na obrigação de envelhecer, as paixões escarram em corpos semidescarnados. A vida redefinida cabe numa embalagem de 14 comprimidos semanais – um para a tarde, outro para a madrugada. Entre um remédio e outro, a matéria se decompõe e recompõe no mesmo instante.

De que servem os sentidos sem as direções?


Uma direção tem, ao menos, dois sentidos. Num espaço vazio e plano, são 360 graus à disposição – a divisão matemática pode te levar até bem próximo do infinito. E se os mesmos caminhos te levarem para aventuras ou desventuras? Você quer encontrar algum sentido, mas tampouco sabe qual é/era a direção. Se a extroversão dos teus pais lhe causar um olhar para si?  Na reclusão das aparências, o benefício da observação solitária. Talvez você considere tal característica como uma vantagem metódica no vaivém das relações pessoais. E se a embriaguez constante dalgum parente próximo promover em teu paladar uma revolta sintomática sobre tudo o que possa lhe entorpecer as sensibilidades? Nesta disposição para uma realidade sem máscaras, você crê distinguir mais adequadamente o que se lhe parece falso, mas também é capaz de cometer enganos, cair em contradição num átimo, ignorar sua lógica interna. As paixões, por exemplo, encantam até mesmo os cientistas. E se o casal feliz que lhe servia de modelo em sua infância sobrou na memória adulta somente como utopia? Aquilo que te leva aos encontros mora ao lado do que te conduz aos confrontos. E, por dedução, nada te define com antecedência. A chama é uma luz na escuridão ou o princípio de um incêndio. E você vai riscar o fósforo apesar de tudo.

Antes e sempre


Os fatos se reduzem nas interpretações, ainda que não se apequenem. Numa interpretação de fé, o tal diagnóstico sucumbe ao próprio mistério das forças sobrenaturais que regem a ordem soberana. Metafísico e meta-humano, talvez até mesmo longe demais de quaisquer compreensões lógicas ou ideológicas. Um exemplo: a tautologia na onipotência e na onisciência de deus é axiológica, o que não diminui o grau de espanto antropocêntrico em relação à existência da maldade. E não cabe aqui uma simplificação de tipos, como os vilões ou mesmo aquele lobo do homem chamado homem. Pouco importa, neste caso, que o mal ocupe um lugar de destaque pelas possibilidades dos descaminhos (ou o distanciamento do homem para com deus). O conhecimento destes princípios e destes fins forja o desespero qual condição circundante à experiência. A narrativa inevitável de que o pecado também residia nos jardins do paraíso. Cobras venenosas, ervas daninhas, maçãs podres, vontades que confundem corpo e alma. Física e metafísica; liberdade total não raro se transforma em prisão. Para a matéria, porém, lugares fechados não passam de abstrações. Supondo que esta interpretação faça sentido, a criação de deus ou a permanência de sua eternidade jogam para outro plano o debate sobre a eventualidade de um ANTES – e nem mesmo se faz necessário rememorar a questão demasiada humana bem como ulterior entre o ovo e a galinha. Eis o axioma que nos persegue do nascer do sol à derradeira despedida das sensações corpóreas. Carregar este mistério seria um fardo pesado demais para deus?

O absoluto na palavra escrita


A palavra escrita é ou não é a versão de outra coisa porque traz a verdade em si mesma; pouco ou nada importa a correspondência (ainda que vaga) aos fatos – isto a que chamam de uma história vivida, uma experiência da realidade no contemporâneo. O tom que a palavra escrita admite para si tem a ver com a tentativa de alcançar o absoluto. Eis a reconstrução da eternidade incontida, vide verso e reverso. Há ainda a relação entre extremos, um ocaso nascido do conflito. Quaisquer notas pacíficas anulam as origens físicas e metafísicas da palavra escrita. Não deixa de ser também a viabilidade de fuga para a memória: a inclusão de todos os tempos na participação do espaço literário. Um fim para os meios disponíveis ou indispostos. Mais do que uma especulação razoável sob e sobre a existência. A palavra escrita jamais se ausenta quando não existem outras opções em disputa.