Monumento ao brigadeiro


Enquanto uns se preocupam em definir uma nação ou um povo perscrutando suas características histórico-culturais, outros querem mesmo é encontrar uma obra literária que resolva a questão. Particularmente, creio que o cerne de tudo, a espinha inflamada no meio da testa, o buraco da sandália bem no calcanhar de Aquiles, tudo isso se refira de fato à gastronomia. Passada a fase celular, quando a natureza acordou bem disposta e decidiu fazer disto um cactus e daquilo um ser humano, chegamos à sobrevivência em si. Comer é a origem de tudo, descontando o Big Bang e outras coisas mais ou menos da mesma importância. Basta olhar para um bebê e constatar: não importam tradições ou culturas, livros ou filmes, filosofias ou esoterismos; só importa a comida. Sem o leite, tchau antílope, tchau beluga, tchau capivara, tchau Diabo-da-Tasmânia, enfim, tchau mamíferos. Nós, humanos, inclusive, somos tanto filhos do átomo quanto da lactância. Não é por acaso que vivemos na Via Láctea, um caminho leitoso, onde todos os destinos se encontram.

É a comida, portanto, que nos principia a sermos o que somos. Um advogado ou um médico ou um zelador ou um linotipista não seriam nada disso não fosse por este bem lacto, elo-mor entre mãe e rebento. Tem muita coisa nessa vida que importa, nem precisa espernear ou se passar por um hater de meia tigela – eu entendo que haja frustração por aí, ainda mais com a economia desse jeito. Ainda assim, até mesmo para ser um frustrado de primeira categoria foi necessário o leite. Você é um mamífero e não pode fazer nada. Acostume-se com a ideia e tome um achocolatado.

Sob o céu nacional (um céu de brigadeiro, diria propositalmente), há sim um povo mamífero que busca por uma identidade, mesmo que de modo inconsciente. Brasileiros não se contentam em ser definidos apenas como latino-americanos ou emergentes ou mamíferos. Por isso, vão em busca do alimento que fará, por fim, a integração da nação. Em todo o país, desempregados abrem suas despensas no afã de uma satisfação emergencial, o devir gastronômico jamais ousado, ainda que tipicamente urbano, organicamente rural, inequivocamente presente em festas de aniversário.

O brigadeiro.

O Brasil é gigante pela própria natureza, mas moralmente ainda não encontrou a estatura de um brigadeiro. O doce, sensação nacional, é de uma simplicidade nada abstrata, de dar inveja aos grandes mestres da criação, como Deus e Leonardo da Vinci. Anote aí: leite condensado, chocolate em pó, manteiga e chocolate granulado. Um preparo rápido e a magia culinária se faz retumbante. A genialidade do brigadeiro reside em sua composição clássica, cuja presença peculiar e significativa do leite (sempre ele!) faz valer seu consumo calórico – a título de curiosidade, são 58kcal em cada docinho de 15g.

Como não poderia deixar de ser, a origem do brigadeiro no Brasil tem a ver com política. Getúlio Vargas finalmente deixara a presidência ocupada entre 03/11/1930 e 29/10/1945. Enfim, ocorreria uma eleição genuinamente democrática no país – na medida em que isso condiz com a realidade, claro. Um dos candidatos, pois, era o Brigadeiro Eduardo Gomes. Em São Paulo, apoiadores do Brigadeiro (comandante de uma Brigada nas forças armadas) criaram o doce para as festas em homenagem à candidatura de Gomes. Politicamente, o doce não fez a cabeça de todo o país, que acabou elegendo o Marechal Eurico Gaspar Dutra. Mas para a felicidade da nação, o brigadeiro vingou nos estômagos de norte a sul, sendo inclusive rebatizado na terra natal de Getúlio Vargas como negrinho – porque, todos sabem, o Rio Grande do Sul tem tradição em ser do contra. Existem pequenas variações dessa história, mas parece que a ligação do brigadeiro (doce) com o Brigadeiro (patente militar) é unilateral.

De todo o modo, as festas de aniversário fizeram muito mais pelo doce do que a política. Os brigadeiros espalhados sobre a mesa do bolo, dividindo o espaço quase a contragosto com cajuzinhos, beijinhos e afins, proclamaram a unanimidade nacional; peça de identificação sobremaneira mais relevante que o verde-louro daquela flâmula que ora serviu à monarquia ora prestou-se à república.

Desconheço se há um monumento ao brigadeiro, mas está mais do que na hora de unificarmos todos os projetos de país. Conceitualmente, um bom lugar para sediar tamanha obra seria o Pão-de-Açúcar, no Rio de Janeiro. Cabe, porém, um aviso: é preciso tomar cuidado com a diabetes.

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Sonhos capitais


Como substituir o capital sem utilizar outro objeto de sonho? Dos tesouros piratas e fortunas de imperadores chegando ao capital fictício em movimento, a objetificação se apresenta inerente aos modos de produção capitalistas. Há, por óbvio, uma enorme diferença entre se olhar no espelho e olhar através do espelho. Na ficção, a Alice de Lewis Carroll anulou esta diferença com um truque literário. Fora dali, os recursos materiais disponíveis encontram logo um correspondente imaterial. Capital existe muito antes do capitalismo, convém ressaltar. Sobretudo em sua forma pecuniária. O cotidiano avassalador e alienante, por vezes, impõe uma crença de que alguns materiais possuem valor intrínseco, como os metais ditos preciosos, quais ouro e prata. Destarte que todo o valor que há neles vêm de uma abstração definida pela cultura. Quando os europeus chegaram ao Novo Mundo, os nativos ameríndios não tardaram a perceber a sanha dos visitantes pelos tesouros oriundos da terra. Daí que o engodo do El Dorado se revelou um estratagema dos mais vigorosos e duradouros. A farsa persiste desde os tempos dos achamentos/descobrimentos até os dias atuais. Das trinta moedas de prata que nenhum lucro trouxeram para Judas Iscariotes aos bandeirantes que fizeram troça do Tratado de Tordesilhas para avançar pelo continente, destroçando paisagens e nativos pelo caminho: o vil metal, não importa a forma, desperta o sonhador com um fascínio metafísico. Nos oitocentos, Karl Marx compreendeu que o capitalismo transformou o capital em mercadoria (bem como em sujeito da história). Eis que o fetichismo da mercadoria alcançou o próprio capital; um desejo sem fim pelo acúmulo, pela capitalização sem a necessidade de quaisquer atravessadores; unicamente o dinheiro se reproduzindo por si mesmo ‘inda mais rápido do que os coelhos. Não há cajadadas que possam atingir os sonhos. Crises e contradições tiraram os sonos dos proletários na primeira Revolução Industrial. John Maynard Keynes tentou interagir com o sistema de modo prático a partir de um Estado interventor. Os Acordos de Bretton Woods, afinal, não passaram de uma soneca atípica, ligeira bonança fora da curva de exclusão; sesta com a barriga cheia na antevéspera do espelho quebrado. Alice encontrou o Gato de Cheshire e, como não sabia para onde queria ir, recebeu a orientação de que qualquer caminho servia. No País das Maravilhas ou aqui mesmo entre nós, nada importa sem um referencial – mesmo que seja um ponto de partida nascido de desejos íntimos fomentados pelo capital. O fim de um correspondente imaterial (de sonho) talvez seja a chave para abrir as portas que conduzem a um futuro sem crise, alienação e exploração. Porque até mesmo um pirata carece de alguma margem de segurança financeira para expropriar outrem. O Coelho Branco está atrasado para abrir sua conta no banco.

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O cinza é uma cor indecisa


Ondas de energia crepitaram aos meus olhos enquanto me preocupava em não sentir. Engana-se quem supõe este um caso premeditado com meses, semanas ou dias de confecção mental. Tampouco a raiva e a mágoa voltaram qual bumerangue sentimental. Apenas outro ponto final necessário, adiado longamente. Poderia mesmo ter ficado como um legado repentino se algo tivesse me acontecido antes. Um deslize qualquer; um vírus no ar e uma porção de responsabilidades para quem continua. Não foi o caso. Ao contrário, a contingência trouxe-me o alento. A oportunidade queimou de propósito. Consegui não sentir?

A matéria em brasa resultava de uma relação que sucumbiu à distância – ou, talvez, pela distância. Aquilo que chamam saudade foge ao nosso controle. Único sentimento impalpável que também pesa nos ombros. Meu coração já expurgou as respectivas dores noutra ocasião. Cores indecisas: fogo entre o azul e o amarelo / necessidades carregadas do que não foi branco e tampouco será preto. Cinza; cinzas. Algumas cartas, telegramas, registros de mensagens virtuais e umas poucas fotos deixaram de existir no intervalo de instantes.

Sim, algumas nuances agridoces vieram num átimo ao céu da boca. Abraços e braços e beijos já são tão menos do que poderiam ser. Vestígios inertes de amizade e desejo, amor e ausência, orgulho e necessidade. Na minha versão, os culpados somos todos e nenhum de nós. A alternativa de outrem não me diz respeito, como as secas palavras derradeiras fizeram questão de arrematar. Há amargor em outra boca ou nem mesmo as memórias mais aprazíveis estalam na língua de quando em quando? Não sei e, taxativamente!, jamais saberei.

Um pouco de tudo e outro tanto de quase nada. Qual seja, a fogueira concentrada de papel e de intenções me aqueceu nesta quinta-feira de setembro. Por óbvio, reli tudo antes de pegar o isqueiro azul e transformar a matéria outra vez. Outra vez, encontrei um ponto final para uma história que abandonei há tempos. Antes da tarde acabar, o calor das cinzas se dissipou. Ensaquei aquela massa disforme e coloquei na lixeira. Minha única certeza sobre tudo isso guardarei para mim.

Este texto foi encontrado em meio às cinzas.

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De uma aquarela do Toquinho


Na Aquarela de Toquinho, o humano cidadão conseguiu de passar uma América a outra num segundo: bastava girar o compasso e, en voilà!, um mundo de presente. Eis o que acontece quando a imaginação toma conta, definindo rumos como quem navega, virtualmente ou não. “Um barco a vela branco, navegando, é tanto céu e mar num beijo azul”. A única história humana é, em si mesma, uma história de viagem. Cada descoberta é um caminho que se apresenta. As terras, apesar das fronteiras ilusórias e extremamente militarizadas, são locais de chegadas e partidas, encontros e reencontros. O mesmo chão une o garimpeiro e o latifundiário; as diferenças estão no modo de olhar essas paisagens. Sob a terra, a sete palmos, daí mesmo que quaisquer distinções se apagam. Se deixar, a areia vai tomando conta… qual o deserto em expansão, quais as dunas roubando um tantinho das avenidas litorâneas, qual o tempo simulado numa ampulheta. “E o futuro é uma astronave que tentamos pilotar”. Tempo. Espaço. Ou uma coisa ou outra. Ambas deixando claro que não existe fuga de si mesmo. Na América ou na África, ainda seremos viajantes. Imigrantes da própria Terra, expatriados no único lugar que poderíamos ter nascido. Visionários ainda esperando a chegada do avião rosa e grená. “E se a gente quiser, ele vai pousar”. Todas as cores se desmancham ao fim do arco-íris.

toquinho

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Um caleidoscópio pós-humano chamado Philip K. Dick


Não sou especialista em psiquiatria, mas posso dizer que sou meio doido, ao ponto de ser grande fã do psicodélico escritor escritor Philip K. Dick (EUA, 1928-1982) desde a infância, quando assistia o filme Blade Runner (Ridley Scott, 1982), baseado em um de seus livros mais famosos (Androides sonham com ovelhas elétricas?, 1968) nas madrugadas da Globo. Já li vários dos seus principais romances e contos, além de duas biografias, uma escrita por outro grande escritor, Emmanuel Carrere (Eu estou vivo e vocês estão mortos, 1993), que transforma a vida de Philip numa espécie de tragédia grega do séc. XX; e outra biografia escrita por um especialista em esoterismo, Anthony Peake (O homem que lembrava o futuro, 2013), que atribui a Dick a capacidade de transitar espiritualmente por várias camadas temporais de sua própria vida. A primeira delas li duas vezes, e ainda pretendo voltar a ler outras vezes, de tão fascinante. Em minha primeira ficção longa (Flores e Fúrias, 2018), dediquei a Philip K. Dick algumas passagens, inspirações e, sobretudo, o grande vilão da história (Felipe K. Dignoli).

Em Dick noto principalmente duas vozes, no frequente contato que fazia com amigos, autoridades e outros personagens: uma na qual ele fazia questão de ser levado à sério, como ser intelectual, erudito e literato, que era a narrativa de suas palavras ditas. Outra voz era aquela da narrativa de suas palavras escritas e não-ditas; aquela do Deus das entrelinhas, que parecia contaminar toda a realidade com uma ironia insuportável, até mesmo para o seu autor-escritor. Era como se estivesse rindo imensamente, lá no fundo de sua alma (ou de suas fitas magnéticas), quando revelava em público coisas do tipo “a realidade é um engodo eletrônico”, ou quando escrevia cartas paranoicas para a polícia.

Ao mesmo tempo (embora mais acentuadamente em sua última década de vida), era como se sua voz fosse interpretada, em tempo real, por ele mesmo, como sendo uma voz satânica, sobre a qual cabia fazer uma exegese eterna e contínua: – “O que estou falando é a expressão da verdade. Mas a verdade é real? Eu sou real?”. Difícil ouvir-lhe falando, ou ler suas cartas, e não lembrar do livro Valis (1981), que narra uma espécie de esquizofrenia teológica, ou Os Três Estigmas de Palmer Eldritch (1965), onde a piscadela macabra de Deus poderia acontecer a qualquer momento, lembrando aos personagens: – “Tudo que estás vivendo, é somente porque eu permito. Tudo que estás sentindo, é o que eu quero que sintas”.

Alguns dizem que K. Dick ficou paranoico devido ao abuso de metanfetaminas nos anos 1960. Mas acredito que, ao observar sua biografia com atenção, nota-se com alguma convicção que ele já nasceu atormentado e excessivamente obcecado pela natureza da existência, pela metafísica e pelas formas narrativas. A perda prematura de sua irmã gêmea, Jane, o fez deparar-se incontornavelmente com o horror de estar vivo – situação claustrofóbica que o fazia, muito provavelmente, comparar a vida com algo tão sinistro quanto a morte: – “Será que minha irmã não estará viva, enquanto eu, ao contrário, estou morto”? Esta ideia também lhe inspirou a moldar alguns de seus mundos-espelho, como O Homem do Castelo Alto (1962), sobre trajetórias de vida cruzadas num mundo paralelo onde as potências do Eixo venceram a Segunda Guerra Mundial; ou Ubik (1969), onde a morte é tão similar à vida que é quase impossível distinguir uma experiência da outra.

Também não podemos esquecer de sua fase de cristão místico, típica do mundo californiano dos anos 1970, no qual a onda New Age (Nova Era) invadiu sua alma através de um raio de cor rosa emitido por um pingente em forma de peixe, símbolo secreto das primeiras comunidades cristãs do Império Romano. Dick, já em seu quinto casamento, tinha recorrentes sonhos lúcidos entrecortados com dores lancinantes e lampejos de lógica visionária. Como resultado disso, afirmou ter contato frequente com uma entidade alienígena e descobriu, por milagre, que seu filho pequeno tinha uma doença não diagnosticada que precisava de intervenção imediata. Daí para falar publicamente sobre o conceito básico de “Matrix”, vinte anos antes do filme homônimo ser lançado, foi apenas um pulo do gato (outra de suas paixões, depois das mulheres).

Philip K. Dick acreditava realmente estar vivendo em um mundo invertido, no qual tudo que falava e dizia podia ser comunicado da forma mais falsa possível. Toda carta que escrevia era uma espécie de autodenúncia, uma exegese fictícia de uma ovelha elétrica que um dia sonhou ser homem. Era sua piscadela para o público leitor. Sua forma jocosa de gritar: – “Ei! Pelo amor de Deus, quando vocês todos vão perceber que estou apenas brincando? Afinal, nada disso é real… Nem eu mesmo!”. Estamos lidando com a vida e obra de um homem que levou a fantasia e a literatura até às últimas consequências. Hoje, com K. Dick morto, compreendemos tratar-se de um gênio sagrado, a trilhar o mesmo caminho sombrio das profundezas humanas no qual Dostoiévski e Kafka se perderam – embora o Philip vivo fosse um homem demasiadamente profano e incompreensível para si mesmo (como também sou eu quando me encaro no espelho)…

Esta crônica foi uma colaboração de Tiago Masutti. Para ler outros textos deste autor, siga-o no seu BlogInstagramFacebookWattpad ou Centopeia Site.

Frank Sinatra ao redor da lua


Em 1954, Bart Howard compôs a canção “In Other Words“, posteriormente rebatizada como “Fly Me to the Moon“. Em seus versos, o intérprete apaixonado como que ordena que levem-no até a Lua para ele brincar entre as estrelas ou, em outras palavras, ele anseia pelo beijo de sua querida.

Em 1960, Frank Sinatra protagonizou o filme “Onze homens e um segredo“, de Lewis Milestone. Sinatra fez o papel de Danny Ocean, que junto com outros companheiros elabora um plano para roubar cinco cassinos de Las Vegas numa só noite. Mas se o plano é tão bom, por que nunca foi feito? Ocean rebate com fina ironia: – Por que o homem nunca foi à Lua? Oras, porque faltam as ferramentas.

Em 1964, Sinatra gravou aquela que é, provavelmente, a versão mais conhecida de “Fly Me to the Moon“. E boa parte desta fama se deveu à relação direta entre a canção e as missões Apollo, realizadas pela agência espacial estadunidense NASA.

Em 1969, com as ferramentas finalmente disponíveis à bordo da Apollo 11, o astronauta Neil Armstrong foi o primeiro humano a colocar os pés no satélite natural da Terra. Ao mesmo tempo, o pequeno passo / grande salto transformou o sonho dos poetas e músicos em realidade.

A dúvida, no entanto, permanece. Não; nada a ver com o homem ter ou não pousado na Lua; mas sim imaginar se a querida deu-lhe ou não o solicitado beijo.

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> Clique aqui e ouça aqui Fly Me to the Moon, por Frank Sinatra.