Além dos limites do oceano (2001), de Mauricio Obregón


Como falar de amor sem citar os astros? Como falar dos astros sem citar o amor? Quando Romeu quis, em nome da lua, jurar que amava Julieta, a jovem donzela lhe disse: “Ah, não jures pela lua! A lua é inconstante e muda a cada mês em sua órbita circular, e teu amor pareceria variável também“. Julieta sabia do que falava. Se os astros são inconstantes, por que nós também não o seríamos?

O colombiano Mauricio Obregón, no último livro que escreveu antes de se encontrar com as estrelas, Além dos limites do oceano (2002), reconta as histórias míticas dos gregos através das correntes marítimas e das fontes luminosas do espaço sideral. Segundo os escritos de Obregón, as estrelas nem sempre se encontraram na mesma posição em que as vemos. E é a partir disso que ele procura identificar onde Homero teria escrito a Odisseia.

Instiga-nos saber que os céus estão muito mais próximos de nossas vidas do que poderíamos imaginar. As noites trazem consigo a possibilidade de observar não só o brilho das estrelas, mas também o infinito do cosmos. É como se estivéssemos no meio do oceano, quando o mar se confunde com o céu num único azul. Curiosamente, nos mais de sete mares descobertos também encontramos estrelas: no reflexo das águas e as estrelas-marinhas propriamente ditas.

Guiados por correntes marítimas, tanto os argonautas (que teriam vindo da Polinésia e povoado a América) quanto os gregos navegaram rumo ao desconhecido. Não estariam eles guiados por um nobre sentimento de amor? E os astros não os teriam influenciado ainda mais que os “mares nunca de antes navegados“, qual registrara Camões? Resta-nos tão somente imaginar algumas respostas convincentes sem nunca chegar à verdade do Universo, o que de fato pouco importa quando se ama.

> Além dos limites do oceano. Escrito por Mauricio Obregón. Originalmente publicado em 2001. Edição brasileira pela Ediouro (2002).

sea wave breaks about boulders at night

Sonho de uma noite de Primavera


24 de Junho, dia de São João. O que me lembra de uma peça de William Shakespeare. Explico: todo mundo acha que aquela peça “Midsummer night’s dream” é sobre um “Sonho de uma noite de verão“. Não é. No título original, nem mesmo há a palavra summer, mas sim midsummer – que alguns tradutores poderiam pensar ser o meio do verão, só que não.

Descobri a solução deste mistério que sequer sabia existir por meio de uma edição portuguesa intitulada “Sonho duma noite de S. João”, traduzida por Visconde de Castilho. Antes do texto traduzido, há uma interessante explicação sobre a titulação da obra traduzida. Os trechos a seguir, aliás, foram escritos, de facto, por Victor Hugo, e incluídos pelo tradutor. Acompanhem comigo:

Midsummer não significa propriamente o meio do Estio. Não é um prazo incerto do ano“.

Midsummer é um dia de festa, inteiramente britânico, marcado no calendário protestante no dia 24 de junho, isto é, no começo do Estio, correspondente ao S. João no calendário católico“.

Muitos comentadores por desatentarem nesta explicação dada pelo próprio poeta, fantasiaram que por este título ‘Midsummer night’s dream’, quisera ele especificar o prazo em que o enredo da comédia se passava. A prova de que andaram errados neste juízo, é o cuidado com que o autor nos precaveu, por boca de um dos interlocutores, de que a acção se dá no começo de maio. Quando Teseu descobre na mata maravilhosa os quatro amantes por terra a dormir, diz a Egeu que certamente haviam de ter vindo celebrar o rito de Maio, e para isso madrugaram. Portanto, não é, como geralmente se cuida, numa noite de Estio, que Botom (Canelas) e Titânia se enamoraram; foi sim numa noite de Primavera“.

Assim posto, numa adaptação ao hemisfério sul, onde as estações são contrárias às do norte, teríamos o sonho numa noite de outono.

Sao Joao

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A liberdade de Hamlet


Sem papas na língua, Hamlet não chegou ao fundo do poço por dizer o que pensava, mas sim porque já havia percorrido o topo do mundo munido de sua ferramenta mais ilustre: o pensamento. Para o príncipe da Dinamarca o resto foi silêncio, mas para nós aqui do outro lado das páginas o resto estourou como uma bomba moral; e, mesmo sem o gás lacrimejante, as lágrimas escorreram na certeza de uma caminhada humana contraproducente.

A loucura de Hamlet, criada qual o melhor disfarce detetivesco, determina uma mudança no entendimento da realidade. Essa sensação de que algo lhe escapa e de que nem mesmo a fé, o amor, a arte, o progresso ou os sonhos trarão uma satisfação tão sublime quantos as possibilidades sugerem. Rosencrantz e Guildenstern poderiam ser bons amigos, mas o príncipe não busca esperança no outro – afinal, já é muita responsabilidade ter de lidar com a morte de Ofélia, única pessoa em sua história recente por quem teve algum apreço e empatia. A dor dela, para o bem e para o mal, é a mesma daqueles para os quais os sentimentos importam contrários à razão.

Há alguma ingenuidade em acreditar que a vingança do fantasma (também chamado Hamlet e outrora pai do príncipe) se dá apenas por questões políticas ou por ciúme – afinal, seu irmão Cláudio usurpou-lhe o trono e sua mulher Gertrudes num ato vil de regicídio. Oras, o Fantasma, avistado inicialmente por simples guardas quais Marcelo e Bernardo, é o chamado nebuloso pelo qual alguém pode esperar uma vida inteira sem ter por onde. Quis o destino (ou Shakespeare, vá lá) tornar a aparição também visível aos olhos do gentil Horácio, a quem restou a difícil tarefa de relatar o estranho acontecimento ao legítimo herdeiro do trono. Vai daí que a conversa entre Hamlet e o fantasma seja também um ponto sem retorno, no qual as glórias serão deixadas de lado porque a consciência lhe será o único reinado – a digna nobreza que não tem a ver com castelos ou soberania alheia.

Ser ou não ser sugere fim e início. Se há história, sempre haverá drama – e quais de nós estarão livres no desfecho disso tudo? Hamlet, de alguma maneira trágica, descobre a liberdade na ponta de uma espada envenenada porque também não era redenção o que lhe apetecia. Sua partida serena ainda lhe permite profetizar questões menores, políticas até, como a escolha de Fortimbrás que chega da Inglaterra com notícias das quais o príncipe nunca saberá. Se Hamlet seria um grande rei como o próprio Fortimbrás aponta? O resto é imaginação.

hamlet

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Romeus e Julietas em “Nada se cria, tudo se inventa”


As letras, as palavras, as ideias estão aí. O que fazemos com elas e a forma que utilizamos é que as tornam interessantes, tais quais as obras de William Shakespeare. Se a própria convenção admite que o Renascimento (e/ou o Maneirismo) surge para “resgatar” valores da Greco-Romanos, temos de supor que os argumentos de ambos os momentos são os mesmos ou muito próximos uns dos outros.

Com Shakespeare, que Harold Bloom afirma ter “inventado o humano”, não ocorre de forma diferente. O dramaturgo inglês lia as Metamorfoses de Ovídio, além do poeta Petrarca, vide Mercucio em Romeu & Julieta: “Ro sem meu tem rosto de arenque seco. Ah, carne, carne, estás peixificada. Vai deslizar em versos de Petrarca”. Escrevera sobre os romanos, como está evidenciado em Antônio & Cleópatra e os gregos, notório em Sonho de uma noite de verão. E também conhecia um tanto sobre as cidades italianas de Verona e Veneza (Otelo). Resumindo, sua cultura era ampla, chegando até mesmo a flertar com o Novo Mundo em Noite de Reis.

Aos que acusam-no de plágio, convém afirmar que isso é no mínimo um anacronismo, posto que esse conceito de copyright é muito posterior aos tempos de Shakespeare. Romeu & Julieta teve alguma ou grande influência nos textos greco-romanos. Principalmente no que concerne à ideia de destino. Em vários momentos da peça, as personagens têm maus presságios, ainda que tenham vaga esperança que tudo acabará bem.

A Tragédia dos Amantes de Verona, porém, fora escrita anos antes do bardo, contendo as mesmas personagens e a mesma trama, com pequenas alterações. Romeu & Julieta talvez seja a adaptação mais descarada que Shakespeare fez de um texto. Ainda que não se saiba exatamente qual o texto lido pelo bardo, anteriormente já existiam versões de Luigi da Porto (Amanti Veronesi) e Matteo Bandelo com o seu Romeo e Giulietta em prosa. Até mesmo os nomes das duas famílias rivais já eram conhecidos literariamente antes da tragédia do bardo.

Evidentemente que o gênio do inglês de Stratford-upon-Avon não deixou por menos e transformou seu texto numa desconcertante obra de arte, misturando trechos rimados e prosa poética. Shakespeare também concentrou a ação em poucos dias, para que o amor desmedido (?) dos jovens de Verona fosse ainda mais intenso.

Enfim, Romeu & Julieta é obra de inspiração; a peça mais amada do bardo, como afirma a crítica teatral e tradutora Barbara Heliodora, mesmo que não seja sua maior criação. Talvez, o ainda incompreendido (pelos fãs mais ardorosos) filme Shakespeare Apaixonado (1998), de John Madden, tenha demonstrado isso de forma bem interessante. Não à toa, a adaptação se deu pelas mãos de um grande admirador de Shakespeare, o também inglês Tom Stoppard (autor do roteiro de Rosencrantz e Guildenstern Estão Mortos, este sobre o universo não contado de Hamlet).

Particularmente, concordo com a Heliodora.

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Shakespeare traduzido no multiverso


De algum modo obtuso, porém concreto e fatídico, traduções desabrocham qual flor numa realidade paralela, perfazendo-se em interpretações. Como um estudioso ou um ator, ambos interpretam a partir de versões. William Shakespeare, como tal que era, somente o foi assim e assado em inglês. Logrou a sorte de ser traduzido e ganhou outras perspectivas à luz de um vernáculo que jamais foi seu. Destarte que traduzir um autor retumbante qual o bardo em nada diminui as possibilidades textuais. Pelo contrário, ampliam-se. Oh, multiverso infinito! ‘inda assim, adenda-se uma básica – mas fundamental – distinção entre versão traduzida e versão adaptada. Àquela convém um comprometimento intrínseco, tácito à qualidade autoral do tradutor. Enquanto esta, a adaptação, tem em si mesma um interesse menos na forma do que no conteúdo; assemelha-se a uma cortina que descerra um novo caminho – não a caminhada em si. Mais abraço formal que beijo de língua. O idioma de origem se subscreve sob a pele. Epiderme regional capaz de incluir sotaques e expressões ainda mais restritas na boca da língua-mãe. Não existe cicatriz quando da tatuagem em flor. Interprete como bem lhe aprouver.

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Shakespeare, Cervantes e Borges: a história vive da palavra


A história nada mais é do que interpretações. O que fica sempre, pois, é o texto. Neste sentindo, considero todo e qualquer texto uma obra literária e, por sua vez, literatura. Daí a importância até os dias atuais, mesmo em tempos de internet, da palavra escrita. E, com a permissão do escritor argentino Jorge Luis Borges, uso de suas palavras sobre o livro para ilustrar meu argumento: “Dos diversos instrumentos do homem, o mais assombroso é, sem dúvida o livro. Os demais são extensão do seu corpo… Mas o livro é outra coisa, o livro é um extensão da memória e da imaginação”. E o que nos coloca nesse mundo que não seja a imaginação e a memória? O próprio Borges, por sinal, que tantas vezes falou de William Shakespeare, afirmava a universalidade do bardo devido a sua obra que ultrapassava a experiência inglesa. Logo, Shakespeare era quem menos tratava especificamente da Inglaterra entre os autores ingleses e, justamente por isso, tornou-se seu símbolo máximo. Da mesma forma, Borges cita Miguel de Cervantes como ícone da Espanha, sendo o menos espanhol de seus escritores. Cervantes e Shakespeare, não por acaso, dividem a hipotética/fictícia data de morte (23 de abril de 1616) e uma imaginação para lá de extensa. Se a história vive da palavra, então talvez a leitura seja sua complementação inerente. Felizes os que lemos.

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Borges, Shakespeare e Cervantes

 

Quem escreveu as obras de Shakespeare


Existem registros concretos de que existiu um William Shakespeare nascido em Stratford-upon-Avon e estes se encontram preservados até os dias atuais. O fato é que os dados sobre Shakespeare são poucos. E pouca informação gera milhares de teorias – muitas furadas, é bem verdade. Que ele não tinha cultura para tanto, que o seu texto era muito parecido com Philip Marlowe, Francis Bacon, etc, etc.

Nem mesmo seu rosto é consenso. Há poucos anos, a jornalista canadense Stephanie Nolen anunciou a descoberta de uma pintura de 1603 que seria então o único retrato legítimo do bardo. Depois de ser publicada pelo jornal The Globe and Mail, a reportagem se tornou livro, publicado no Brasil em 2004 com o título O Rosto de Shakespeare. Stephanie Nolen busca identificar em que medida um quadro com o tal novo rosto de Shakespeare, cujo atual dono é um canadense e vizinho da mãe da jornalista, poderia ser considerado como a única pintura do bardo feita em vida. O livro possui uma reconstituição de época interessante e revela alguns detalhes e sugestões de como pode ter sido a vida do nosso prezado Will.

Já o espanhol Fernando Martínez Laínez vai mais pelo lado da imaginação no capítulo “O homem que pode ser Shakespeare” de seu livro Escritores e Espiões, no qual aborda onze autores que teriam uma outra atividade além da escrita. Laínez aponta que Marlowe teria forjado a própria morte para continuar escrevendo sob o pseudônimo William Shakespeare. E tudo porque Marlowe era espião.

Para se responder a questão “Shakespeare era Shakespeare?” é preciso ter fé, acreditar, ponderar e opinar sobre o que temos de informação sobre o tema. No entanto, quaisquer dúvidas sobre a figura do dramaturgo não interferem no que é mais precioso: sua obra. Se é importante saber quem a escreveu? Suponho que sim. A vida de um autor sempre tem importância naquilo que lhe é creditado. Shakespeare escreveu no tempo certo as palavras certas, por isso é tão difícil alguém superá-lo.

Alguém foi Shakespeare, independente se foi o próprio Shakespeare ou outrem. E é esse alguém que é o Shakespeare que conhecemos hoje.

O resto é história. Ou melhor, literatura.

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Shakespeare romântico?


Doce é a tristeza lida nas palavras de um amor que se ausenta. Porque trágica, sentimental e libertadora, tal frase bem poderia abrir um capítulo qualquer de um livro romântico. Enquanto estilo artístico, o romantismo ocupa um determinado período na história da arte (ainda que estas fases não sejam tão claras como naquelas perguntas de vestibular). William Shakespeare poderia ter escrito frase similar em alguma de suas obras – ainda que o fizesse com muito mais talento literário. Algo assim: “Parting is such sweet sorrow, that I shall say good night till it be morrow”. / “Toda despedida é dor… tão doce todavia, que eu te diria boa noite até que amanhecesse o dia“. Apesar dos sentimentos românticos nos textos do bardo serem abordados com seu característico esmero, o mesmo pode ser dito a favor de outros elementos, como os filosóficos, os dramáticos, os históricos, etc… Logo, não cabe ao poeta inglês a identificação qual autor romântico como pede o figurino (aqui um jogo de palavras proposital para com o teatro e a coxia). Ao mesmo tempo, os românticos se inspiraram largamente em Shakespeare para escrever suas histórias, não restam quaisquer dúvidas! Romeu & Julieta é uma obra basilar para a criação romântica, sendo referenciada em diversos momentos nas obras de escritores, pintores e toda sorte de artistas. Além disso, os românticos são responsáveis (não isoladamente, saliente-se) por um reavivamento dos textos shakespearianos. Uma hipótese definitiva: talvez tenha sido somente a partir do romantismo que Sir William se tornou um autor clássico! Por isso, melhor ficar com as palavras dele.

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Tragédia e comédia no maneirismo shakespeariano


Ainda que o contraste entre comédia e tragédia desagrade os gostos mais austeros e puritanos, à arte cabe também uma elaboração da vida que vai além de princípios unilaterais.

William Shakespeare mesclou o humor ao trágico com o talento que lhe era peculiar. Um dos casos mais divertidos e relevantes nesta união de dor e alegria se dá com a atarantada Ama de Julieta no clássico A Excelentíssima e Lamentável Tragédia de Romeu e Julieta (como a peça foi chamada numa de suas primeiras publicações): trata-se de um feliz revide do bardo aos que pregavam um classicismo demasiado. Foi como se o poeta soubesse na medida correta o grau demodè que a tradição teatral clássica grega trazia consigo. Shakespeare deve ter lido alguns daqueles autores consagrados, provavelmente Sófocles, Eurípedes, Ésquilo e outros mais. Com tais leituras, o bardo sentiu que aquela separação de gêneros – Comédia / Tragédia – já não fazia tanto sentido como dantes. Mas, além de tudo, o bardo carrega a tinta na narrativa! Suas personagens, desde o louco monarca (Rei Lear) ao ciumento mouro (Otelo), têm enredos definidos e definitivos, ainda que isso não signifique o fim das interpretações culturais. O dramaturgo de Stratford-upon-Avon soube no exercício de sua escrita o quanto a tradição pode ser útil quando se quer buscar algo que a ultrapasse em excelência, mas nunca em essência. Assim, temos o aprofundamento da matéria humana, jamais uma negação.

Por esta sinergia de gêneros e outros motivos, alguns estudiosos insistem em não incluir Shakespeare no estilo literário renascentista, mas sim no Maneirismo. Este último é caracterizado por tentar a conciliação das heranças medieval e renascentista, fundir o cômico e o trágico, colocar uma natureza dupla do herói, pela presença do grotesco e o convívio dos elementos realista e fantásticos. Nesse sentido, tanto a obra do autor inglês quanto a de Miguel de Cervantes (que, não por acaso, aparecem tardiamente no que chamamos de Renascimento) seriam maneiristas. Além da comicidade da Ama dos Capuletos, diversas situações que corroboram esta classificação estão distribuídas em outras peças do bardo. Vide o drama fantástico de Hamlet que enxerga o fantasma de seu pai, a presença do grotesco em seus vilões como Ricardo III e, mesmo, na trama carnívora de Titus Andronicus. Talvez a mesma conjuntura não valha à Espanha de Cervantes (talvez o país mais católico de então), mas a Inglaterra protestante na qual vivia o bardo possibilitou uma condição sine qua non para que estas características tão peculiares ganhassem relevância em praticamente toda sua obra.

Segundo Eduardo Dowden, em Característicos da Literatura Isabelina, a confluência do protestantismo com o renascimento possibilitou o florescimento de ideias e sugestões com um pé no mundo material e outro no mundo espiritual. Se o dramaturgo pode ter vindo de uma família católica, conforme aponta F. E. Halliday no livro Shakespeare – Vidas Literárias, isso só corrobora como essa duplicidade está presente em sua obra.

Seja como for, a classificação da obras de William Shakespeare como pertencentes ao Maneirismo ou ao Renascimento não consegue apontar a verdadeira categoria na qual nosso ilustre escritor se encontra: a dos gênios.

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Os tempos de William Shakespeare e Machado de Assis


As comparações entre William Shakespeare e Machado de Assis podem ser as mais diversas, tanto em relação às suas vidas quanto em função de suas obras. Ambos viveram momentos de transição secular (do século XIV para o XV, no caso de Shakespeare e do XIX para o XX, para Machado), quando novas ideias se faziam vibrar no ar e na mente das pessoas. Shakespeare pegou um momento de protestantismo latente, fatos históricos marcantes para a Inglaterra e uma cena teatral propícia para seus escritos que misturavam o popular e a tradição clássica. Machado de Assis caminhou por linhas similares, sendo até mesmo acusado de modernista! – um modernismo positivista à época, o qual sempre criticou. Isso porque Machado não fazia questão de navegar na moda do momento, quando do naturalismo-realismo (alguém aí falou em Eça de Queiroz?). O autor carioca quase nunca saiu do Rio de Janeiro (a cidade). Ainda assim, seus textos exploravam a alma do brasileiro não como quem define características locais e nacionalistas (José de Alencar?), mas qual o explorador de uma nação que sempre questiona a si mesma no eterno perguntar “quem somos nós?”. Shakespeare inventou o humano e Machado o explorou internamente.

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William Shakespeare e Machado de Assis

Gnomeu & Julieta (2011), de Kelly Asbury


Da animação inglesa (na verdade, uma co-produção entre EUA e Reino Unido), surge o rápido e certeiro Gnomeu & Julieta (2011), de Kelly Asbury. Ainda que o diretor seja estadunidense, a produção abarca em si mesma tons do humor característicos aos britânicos. Ao contar as aventuras de anões de jardim que são vizinhos e travam batalhas devido às antigas rixas familiares (Capuletos vs Montéquios ou, no caso, Vermelhos vs Azuis), Asbury apresenta indiretamente William Shakespeare às gerações mais novas. O próprio bardo destila sua sagacidade ao ser representado por uma estátua falante em uma praça qualquer da Inglaterra. Gnomeo e Julieta são os anões de jardim das casas rivais que fazem Shakespeare parecer ainda mais divertido. Harold Bloom (1930-2019), talvez o mais influente pesquisador shakespeariano do final do século XX e início do XXI, comentou certa vez que os jovens deveriam ler obras de alta qualidade literária desde cedo, porém não aquelas muito rebuscadas, e citou Romeu & Julieta como um texto adequado. Evidentemente, faz-se necessário descontar o fato de que a obra original se desenvolve à maneira trágica, com um final ligeiramente perturbador para quem tem pouca experiência de vida. Entretanto, viver também se aprende nestas inconsistências sociais. E a rivalidade desmedida acompanha a própria narrativa humana. Ao longo de conflitos e disputas, enfrentamos o desconhecido, munidos de uma capacidade única de não enxergar a paz. O bardo provavelmente daria seu aval para esta produção que, se não é brilhante, ao menos homenageia o sentimento de sua obra mais conhecida.

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Cidadão Kane (1941), de Orson Welles


Há cineastas de uma obra apenas, mas há aqueles que fizeram uma definitiva – obra-prima, obra-de-mestre, qual seja a titulação – que acabou ofuscando tanto suas obras seguintes quanto suas carreiras como um todo. Para Orson Welles, Cidadão Kane (1941). Impressionam os fatos do diretor-ator-roteirista-produtor ter realizado a obra aos 25 anos e sem jamais ter dirigido um longa-metragem. Um desses casos raros de genialidade cósmica, algo que ultrapassa as possíveis explicações mundanas.

Nunca uma reportagem investigativa rendeu um trabalho tão interessante, ainda que o filme se situe numa fina intersecção entre realidade e a ficção: Charles Foster Kane (interpretado pelo próprio Welles) teria inspiração numa poderosa figura da imprensa estadunidense, o magnata da imprensa William Randolph Hearst. O roteiro montado como os quebra-cabeças da segunda mulher de Kane fica na tênue alternância de uma história consagradora ou de uma tragédia aos moldes clássicos.

Orson Welles era um prodígio antes mesmo de almejar Hollywood. Em sua precoce carreira, fizera fama no teatro ao adaptar obras de William Shakespeare para o cidadão comum. Também fora um ícone no rádio, que ficou à beira do abismo com A Guerra dos Mundos, sua versão radiofônica da ficção científica do escritor britânico H. G. Wells. Mas o tumulto inesperado alçou ainda mais o nome de Welles, que ganhou um contrato para dois filmes com a RKO Radio Pictures, nos quais teria controle total sobre as obras. Era tudo o que o jovem autor precisava. E a história do cinema agradeceria, colocando Cidadão Kane repetidamente em primeiro lugar na lista das produções cinematográficas mais importantes já realizadas – às custas, claro, da carreira vindoura de seu criador. Assim, parece ser necessário assistir Kane saindo de cena justamente ao atravessar um espelho de imagens repetidas e infinitas: Welles ficaria aprisionado em si mesmo dentro daquele seu primeiro e definitivo filme.

Poderoso que era, Hearst fez o que pôde para retirar Welles da mídia – talvez por considerar Charles Foster Kane uma homenagem um tanto quanto ofensiva. Não obstante, os próprios excessos do cineasta lhe impingiram certa impopularidade. Ainda assim, Welles participou de importantes produções como tanto como diretor/ator – vide A Dama de Shanghai (1947), Othello (1952) e A Marca da Maldade (1958) – quanto somente atuando – vide O Favorito dos Borgia (1949), de Henry King, e O 3º Homem (1949), de Carol Reed. Entretanto, nenhuma destas obras obteve o frescor criativo das ideias exploradas por Cidadão Kane, obra que retomou o artesanato de Charles Chaplin e deixou espaço para a consagração do cinema artístico e de entretenimento realizado por Alfred Hitchcock.

O que é Rosebud? A resposta vale uma carreira inteira nos cinemas.

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Nostalgia (1983), de Andrei Tarkovsky


Imagine-se a começar as obras de Friedrich Nietzsche por Assim falou Zaratustra, quando o autor revê sua vida e obra de forma a consumi-la uma segunda vez, tendo já ligação íntima para com a mesma – coisa que jamais outro alguém terá. Algo semelhante ocorre ao assistir Nostalgia (1983), de Andrei Tarkovsky, sem ter contato com suas obras anteriores. Mesmo para quem desconhece os trabalhos de Tarkovsky, fica claro que se trata de uma obra autoral em tom de fechamento, uma espécie de A Tempestade de William Shakespeare no sentido em que autor e obras confundem-se como jamais dantes em seus trabalhos. Em Nostalgia, a aproximação não acontece de maneira fácil ou imediata. Como os bons livros sempre a reler, esta obra necessita de reinterpretação a cada nova sessão. Com seus planos longos e uma verbalização que confunde o rebuscado com o banal, a película se opõe a deixar frestas quando coloca suas personagens quais joguetes de um destino sem sentido. A priori, Nostalgia é uma colcha de sentidos (sonoros, visuais, imaginativos) que discute a essência da vida como metáfora da arte – e vice-versa. Neste cinema, o mosaico do tempo se dilata por um caminho árduo; a vela deve se manter acesa do início ao fim.

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Ariel (1965), de Sylvia Plath


Dissolve-se no muro. | E eu | Sou a flecha, | Orvalho que voa | Suicida, e de uma vez avança | Contra o olho | Vermelho, caldeirão da manhã”. Assim termina o poema Ariel que dá título ao livro de Sylvia Plath (1932-1963). A autora escreveu romances, contos e poemas em sua breve vida, mas foi na poesia que mostrou a força e as dores da palavra escrita. Ariel, originalmente publicado por seu ex-marido logo após o suicídio da autora, foi, então, substancialmente alterado. Ted Hughes, o ex-marido e também poeta, acrescentara poesias de Plath não originalmente pensadas para o livro e eliminara 13 outros poemas que considerou pessoalmente agressivos – Plath sabia da infidelidade de Hughes, possivelmente a principal inspiração dramática por trás de Ariel. Nesta edição bilíngue e fac-similar publicada pela Verus Editora em 2007, o texto original da autora é mantido no que era para ter sido um renascimento, mas se transformou num poderoso testamento literário para o triste desfecho da vida de Sylvia Plath. Ariel também é uma personagem de William Shakespeare na peça A Tempestade, bem como o nome do cavalo que Sylvia costumava cavalgar.

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Futebol ao sol e à sombra (1995), de Eduardo Galeano


“O jogo se transformou em espetáculo, com poucos protagonistas e muitos espectadores, futebol para olhar, e o espetáculo se transformou num dos negócios mais lucrativos do mundo, que não é organizado para ser jogado, mas para impedir que se jogue. A tecnocracia do esporte profissional foi impondo um futebol de pura velocidade e muita força, que renuncia à alegria, atrofia a fantasia e proíbe a ousadia”. Assim o jornalista e escritor uruguaio Eduardo Galeano descreve o futebol da virada do século XX para o XXI no livro Futebol ao sol e à sombra, publicado desde 1995 no Brasil em formato de bolso pela editora L&PM. Galeano não poupa nem mesmo o rei Pelé, ainda que engrandeça seu futebol. Comenta: “Fora das canchas, nunca doou um minuto de seu tempo e jamais uma moeda caiu de seu bolso”. Cita Shakespeare para remontar às origens da festa pagã que tem no gol seu desejado clímax. Destaca ídolos, clubes, seleções e Copas do Mundo para falar de uma paixão terrena presente em praticamente todo o globo, mas quase sempre desprezada pelos historiadores. Porque o futebol é tudo isso e muito mais.

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