Trânsito crônico


Ela está sentada, única em seu próprio mundo, tremulando dentro do ônibus que trafega numa faixa dita exclusiva da ponte Colombo Salles. Um computador pessoal repousa em ondas digitais sobre suas pernas num sintoma de sua era, reflexo de uma escrita corrida e que corre ruas vicinais. De pé, ao seu lado, ele escuta canções clássicas num aparelho digital minúsculo – orquestra ambulante na palma da mão de repertório vasto.

Quando o veículo chega ao continente, o senhor de aparência entediada, que dividia a poltrona dupla com a garota do computador, levanta-se dando lugar ao jovem musical de cabelo bagunçado e camisa ligeiramente aberta. Ela desperta da dimensão em que estava no mesmo instante em que o ônibus encontra-se na esquina das ruas Fúlvio Aducci e Machado de Assis. E naquela situação de um trânsito literário, quando o político catarinense aperta a mão do escritor fluminense, a jovem para de digitar seus versos para ter com rapaz. Ela comenta alguma coisa sobre o trânsito; ele desliga o aparelho e sorri de um jeito especial, como se estivesse ansioso pela ação alheia. O ônibus continua seu trajeto de sempre.

Entre um assunto e outro, ambos descobrem os nomes um do outro, onde moram, os locais preferidos da Ilha e do Continente. Ele mora num apartamento da avenida Max Schramm, tão perto da ponte, mas tão longe em dias de trânsito intenso! Ela visitará uma amiga na avenida Atlântica. Curioso esse ir-e-vir, ela comenta, cada vez mais interessada na conversa com aqueles dois olhos verdes (e o que estes tinham por complemento). Ele sente o aroma do shampoo presente nos cabelos escuros da jovem. O tempo, para ambos, fica parado; mas o ônibus prossegue.

Basta conferir um mapa para saber que ele é quem deve descer antes. Ela sabe disso, mas pouco caso faz para o caminho. A cidade é grande, cheia de gente, repleta dessas histórias que acontecem volta e meia. Eles se despedem com um gentil aperto de mãos, sem combinar nada, sem marcar qualquer encontro futuro. Porque eles sabem que não adianta tentar compreender o trânsito de uma grande cidade.

> Crônica publicada no Jornal Notícias do Dia em 30/04/2009.

Na companhia do frio


As praias aceitam as mudanças de estação porque não lhes restam outras opções. O mundo natural é feito de alterações, coisas típicas de um planeta que gira ao redor do astro rei e sobre seu próprio eixo. Esse tempo humano que inventamos algures é um reflexo do universo palpável, um sonho estranho que não tem por onde vazar, salvo através da mente humana e, por que não?, urbana.

Como filhos da cidade móvel, navegamos pelo cosmos na companhia do frio, agora que a estação assumiu certas facetas do outono. Os dias quentes, pelo menos em sua essência, ficaram para trás, noutra estação que agora jaz. A Ilha desperta com seus cobertores recém tirados do armário. Comprimidos anti-gripe estão à vista, remédios de situação para amenizar dores de garganta, febres chatas e outros desvios de saúde. Somos máquinas adaptáveis que exigem certos cuidados; engrenagens delicadas e cientes de suas complicações existenciais. Na Ilha, nos portamos qual aprendizes de simbiontes, procurando vantagens tanto para nós quanto para nosso imenso lar cercado pelo Atlântico.

O que vem com a nova estação não é só aquilo que se sente na pele, como quando os pêlos se eriçam num arrepio de filme de suspense. Mais que as sensações substantivas, são aquelas que qualificamos em estados de espírito, numa zona cerebral indefinida e misteriosa. Mesmo os fazeres cotidianos se escondem no concreto da cidade, tanto em bairros tipicamente residenciais, como Santa Mônica, Itacorubi, Saco dos Limões, quanto em regiões de trânsito (humano e veicular) constante, como o Centro, a Trindade ou a Lagoa da Conceição. Viver o frio na Ilha é curtir um ritmo próprio, qualquer coisa que lembre uma chuva no final do longo feriado, um pouco de paz que pinta cores gris no céu e nas faces das pessoas. Se os dias quentes são explícitos, os dias frios são misteriosos.

Prazer invernal não tão divulgado pelos órgãos turísticos, o caminhar na praia sob o vento frio requer uma boa dose de sintonia entre as vestimentas que aquecem o corpo e as ideias que agitam o nosso interior. E, assim, também aceitamos o revezamento das estações, porque sempre estaremos em boa companhia se tudo o mais se der nesta Ilha.

> Crônica publicada no Jornal Notícias do Dia em 23/04/2009.

A Cidade Paralela


Em outras conversas, dessas sem compromisso, tergiversantes sobre as questões centrais da sociedade, deparamo-nos com as idéias mais incomuns, prosas que fazem rir ou chorar, desabafos sinceros em forma de medo. Ninguém sabe ser feliz sozinho, mas a maioria quer compartilhar suas tristezas para com a cidade. E, assim, estão colocadas as peças de xadrez no tabuleiro urbano, como se ainda as pessoas estivessem comprometidas ora com “Ave, César” (pão e circo), ora com “Ave, Maria” (fé cega e extra-terrena). De um ou de outro modo, uma cidade paralela é sonhada e projetada diariamente, num à parte qual solilóquio teatral; conversas com os próprios botões sobre interesses pessoais e de partidos (políticos ou não).

Na Ilha de Santa Catarina, essa criatura terrestre de recortes vários e formas sinuosas, um pescador pode ter de se afastar ainda mais do mar, dependendo dos aterros que, vez por outra, costumam descaracterizar a cidade. É como se a sustentabilidade fosse uma mera expressão política, feito tantas outras que ilustram demagogicamente os discursos de nossos representantes (?) nos três poderes. Qual a representatividade de um governo que não ouve aos seus, de um pai que não dá o braço a torcer quando o filho está certo, de um sistema mutante que se reinventa para permanecer sempre o mesmo? A cidade paralela, ocasionalmente, ganha um sentido de realização por vias tortas, sejam estas de concreto ou conceituais. Versos e valas com um fim não justificado pelo meio.

Quiçá exista em progresso um movimento urbano-sentimental que apeteça os corações erguidos com argamassa extraforte. Não há mais lugar para estas sem razões que desfiguram a cidade, um pouco por falta de espaço físico mesmo, outro tanto por ausência de uma sensibilidade mais apurada. Se a Ilha não possui uma regularidade em suas configurações geográficas e geológicas, convém encarar tal situação como um desafio da natureza. Eis o momento de deixar a pequenez humana de lado, posicionando-nos como gigantes tanto na cidade paralela quanto na cidade que está ao nosso alcance.

> Crônica publicada no Jornal Notícias do Dia em 16/04/2009.

A Ilha à noite


Tranquila como veterana a fazer prova, a Ilha à noite é um ensaio sobre o meio ambiente e o ambiente por inteiro. Luz alva, cor da lua, que céu é este que se lhe apresenta desnudo e ensaboadamente estelar, oh, Ilha de Santa Catarina?

Cervejas e versos acompanham os insones das altas horas virtuais ou daqueles adeptos a um barzinho, com ou sem violão. Esquinas já não tão baldias como naqueles tempos em que o mar banhava o centro, ainda se encontram as casas do passado que, hoje, abrigam momentos de diversão e boemia, em bares, botecos e botequins das grandes avenidas como Rio Branco, Gama D’Eça ou Beira Mar Norte, mas também das humildes ruas e travessas como João Pinto, Victor Meirelles ou a Travessa Ratcliff. Porque existe uma poesia úmida e quente sob a aparente rigidez urbana. Há que se encontrar e ser encontrado na selva de pedras; deixemos o trabalho e as obtuosidades de lado para ter com os outros, contar bobagens e desvendar, mesmo que por alguns instantes, os grandes segredos da filosofia. O legado de nossa miséria, parafraseando Machado de Assis, pode se revelar muito maior que qualquer emplastro ou coisa que o valha: na noite, vê-se o mundo com mais clareza, ciente de nossa pequenez universal e de nossa imensidão pessoal.

Àquela hora em que as portas da balada se fecham, é chegado o momento de contemplar o silêncio ser quebrado ante a presença do vento sul. Pequenos insetos e animais vadios dominam o passeio público como soberanos notívagos e noturnos. E são ligeiros como ligeira é a passagem do tempo. As praças XV de Novembro, Getúlio Vargas e Dos Namorados se transformam em pequenos feudos, nos quais o mundo fantástico se esbalda em festas acachapantes, com fadas e duendes dividindo a mesma história, sob a companhia dormente de um ou outro andarilho sem residência fixa.

Esta noite, como todas as noites, encerra seu espetáculo quando a aurora vem lhe dar bom dia, como dois vigilantes trocando de turno, como quando Julieta acorda do sono profundo e encontra seu Romeu sem romance ou vida.

> Crônica publicada no Jornal Notícias do Dia em 09/04/2009.