Partidos inteiros


Ainda que uns poucos não acreditem, a democracia é um caminho para lá de interessante. Pode não ser o melhor possível, mas tem seus méritos que fazem valer a pena mesmo de almas pequenas. Na democracia republicana, porém, as almas pequenas se apequenam ainda mais quando fazem dos partidos políticos a engrenagem propulsora da administração nacional. Às vezes, partidos surgem com intenções sinceras, noutras não. E é este entendimento (ou a falta dele) que contribui negativamente para uma política de alianças tão duvidosas quanto a brasileira.

Em momentos de crises, os ilustres idiotas estão apenas preocupados em encontrar culpados e não em apontar iniciativas modernizadoras. Por que não anseiam pelo revigoramento partidário? Se perdemos o bonde do parlamentarismo, por que não trazer o assunto à baila outra vez e de novo?

Alguns partidos atuais assumem para si posições tão divergentes que, no final das contas, deixam de ser, exatamente, partidos. Partidos inteiros não deveriam existir num regime presidencialista como o nosso. Um partido é um fragmento da sociedade, uma demanda que deve se instaurar na república para fortalecer os pontos de vistas, colaborar com a diversidade e trabalhar por objetivos específicos das pessoas. Já num partido inteiro o que acontece é justamente o contrário: nenhum ponto de vista é fortalecido, pois o próprio partido aceita a contrariedade; não colabora com a diversidade, pois necessariamente um grupo pequeno deverá representar o partido em nível nacional, desprezando as divergências internas; e não trabalha por objetivos do cidadão, pois sua sustentação é através do próprio partido, cada vez mais preocupado em participar das esferas do poder. E, para ser ainda mais claro, esta última característica que consiste em olhar primeiro para si mesmo é precisamente aquilo que, por fim, o iguala a todos os outros partidos dentro desta bengala institucionalizada chamada governabilidade.

A governabilidade vem falando mais alto desde a redemocratização, e todo o resto vira acessório – incluindo os Três Poderes e sua incapacidade de trabalhar de forma organizada e individual. Nosso modelo desgastado precisa de uma chacoalhada direta, sem falsas representatividades, sem ideias retrógradas quais a volta de um regime militar ou a separação de alguns estados em novos países, sem incentivadores do conchavo e do poder a todo custo. A responsabilidade é de todos os partidos e do cidadão que deixou de participar desse jogo de interesses. Xeque-mate em quem? A democracia quer a resposta.

> Crônica publicada no Jornal Notícias do Dia em 29/10/2015.

Intolerar a intolerância


Nesses dias puídos de politicamente correto, arrivismo maquiavélico e outras abstrações socialmente temerárias, existe, sim, uma preocupação que permeia a esfera pública. E se a retórica tem que ser cada vez mais alterada para se fazer representar, então a luz de alerta está acesa como noutras oportunidades.

Meu receio principal é para com a tolerância aos intolerantes, principalmente quando colocamos a democracia em situação de risco. Tolerar a intolerância é o mesmo que dar de ombros no momento em que mais precisam da gente. E acreditem: precisamos cada vez mais uns dos outros para não dar voz aos recalcados. A intolerância mais visível é uma cria direta do recalque e da mediocridade. Eis o conformismo de quem vira para o outro lado e diz “tanto faz”. O posicionamento crítico, digno, respeitoso e, até mesmo, vigoroso tem que extravasar qual um duro golpe nas intenções de quem quer assistir ao circo pegando fogo. Os intolerantes, porém, esquecem que eles próprios são os palhaços.

Quando vejo estes desabafos repletos de rancor, ódio e frustração, admito que a democracia também dá oportunidade para que os idiotas sejam ouvidos e, muitas vezes, até mesmo seguidos com fervor. Mas a balança começa a desequilibrar para a estupidez justamente na ausência do lado que discorda calado. “Tanto fez como tanto fará”, dizem sem se comprometer com parte alguma. Justiça nem sempre significa igualdade. Respeitar o pensamento diferente também não é equivalente a aceitar o retrocesso obscurantista. A opção pelo juízo individual nunca trouxe qualidade alguma aos processos da vida civil. Chega a ser óbvio: não há vantagem no conflito – mas é fundamental o confronto de visões antes que se parta para a briga. E uma briga nem sempre é evitável, mesmo que o politicamente correto pregue esse discurso positivista.

Dizem por aí que não podemos refazer os começos, mas podemos e devemos interferir para que o fim seja mais do que esperávamos. Talvez alguns chamem isso de sonhos. E eles até mesmo podem estar corretos. Mas isto não tira a importância do que está em jogo e de quem joga. Os intolerantes só querem saber de si – como se tudo o mais fosse algum desvio de conduta. Daí a moralidade passa a ser bradada pelos imorais de carteirinha e de ofício. Corrupção que se alimenta como o Abaporu antropofágico, mas sem a nobreza pensante do quadro da Tarsila. Arte e sociedade corrompidas: o sinal maior da mediocridade.

Tolerar a intolerância é uma fraqueza que não tem mais espaço na construção da história.

> Crônica publicada no Jornal Notícias do Dia em 22/10/2015.

Contar sua história


Os personagens reais sempre se revelam porque não contam apenas as histórias de si mesmos. É o que acontece quando se vive, mesmo que navegar seja ainda mais preciso. Se a vida é cheia de som e fúria, como Shakespeare falou outrora, nada mais justo que as aventuras sejam indispensáveis à existência. E os bem aventurados são os que comungam suas narrativas.

Vejam vocês que as relações amorosas apresentam as condições máximas de uma jornada mítica e mista. No princípio de tudo, qual uma galáxia em plena formação, há um pouco de caos misturado com ansiedade e mistério. Ninguém espera que o amor cumpra regras – porque isso não acontece mesmo. Neste sentido místico, uma poção do amor é sua própria contradição. Não sobram espaços mágicos para um sentimento que é a única magia por excelência. Quem já leu uma poesia de Fernando Pessoa sabe a diferença entre falar de amor e falar amorosamente. Na primeira situação, é possível ter o coração solitário, sem almas afins ou coisas que as valham. Mas quem fala amorosamente sucumbe à magia extemporânea que acredita no “para sempre” e se deixa levar por muitos sentidos que não fazem sentido algum.

Contar sua história diz muito sobre como vemos o mundo. Imagino cá o quanto Ulisses (ou Odisseu, dependendo do time que você torce) revelou sobre os outros quando teve de contar suas desventuras até voltar para suas queridas Penélope e Ítaca. Assim, suas percepções sobre ciclopes, sereias e seus pares apontaram que aquele mundo de antigamente já não cabia em si. Porque depois de uma guerra, como aquela ocorrida nas paragens de Troia, não há vitória plena. Aquiles estava morto: o homem se transforma em mito e nada mais parece igual.

Ainda que os conservadores não concordem, as odisseias do dia a dia são tão ou mais importantes que aquelas dos grandes homens e mulheres que legaram seus nomes aos eventos históricos ou míticos, reais ou fictícios, sinceros ou figurativos. Esse casal que, enfim, surge neste drama se qualifica em quaisquer destes aspectos. Luana e Solano sempre souberam que estavam incompletos e mal avaliados no mercado das disputas amorosas. Mas o que pode ser feito quando as ações estão em baixa? A resposta: uma boate chamada Ítaca e uma festa com fantasias. Nem é preciso dizer que Lua e Sol se reconheceram de imediato e partiram para um encontro em alto astral. Sequer precisaram tirar as máscaras para entender o que estava acontecendo. Beijaram-se com fúria enquanto o som eletrônico cumpria sua função sensorial. Os personagens estavam revelados.

> Crônica publicada no Jornal Notícias do Dia em 15/10/2015.

Navios e aviões em águas internacionais


A temperatura está tão indecisa quanto as pessoas. Há dias de choro nos quais é possível dar risada; há dias nublados em que se vê mais longe do que o próprio coração. As estações foram uma iniciativa grandiloquente em sua origem, principalmente porque se acreditava ter algum controle sobre o que torna a todos tão pequenos. Mas fingido é o clima em qualquer lugar, seja na seca Brasília (uma ilha-avião que nunca decola) ou na úmida Florianópolis (ilha-embarcação que navega sobre si mesma).

E se o clima pode variar, por que não as taxas de câmbio? O dólar nas alturas aquece e esfria mercados ainda mais severamente que uma frente fria oriunda de uma massa polar. Qual o aquecimento global que nos aproxima mais rapidamente de uma nova idade do gelo, essa economia de capitais especulativos nos encaminha às crises que se repetem tanto quanto aquele Vento Sul na ilha-embarcação. E mesmo o dólar dos turistas não é o suficiente para aplacar o sopro dos gigantes que estremecem lojas, empresas e fábricas de Naufragados à Ponta das Canas. Naveguem por aqui, verdes desenhos de George Washington, Ulysses S. Grant e Benjamin Franklin. Hoje, mais do que antes, dólares são mais do que reais.

Mas se o boom do turismo em dólar na capital catarinense ocorreu ali pelo final da década de 1990, o mesmo não pode ser dito da capital da nação. Lá, as verdinhas sempre falaram alto, seja como patrocínio indevido, incentivos fora de ordem ou, claro, corrupção na cara dura. A ilha-avião é, também, um porto-seguro para quem passeia por tempestades e afins. Para os que têm contatos, não há dia ruim, mesmo que a falta de umidade bata recordes históricos. Ali, como em qualquer parte, a opção do jeitinho sempre é uma segunda via quando a burocracia e as leis soam incômodas aos malandros de carteirinha. O motor de Brasília não funciona porque a gasolina foi desviada.

Pode ser ingenuidade acreditar que as leis ainda dão sinal de vida. Mas esta é uma sensação que permanece no ar apesar de tudo, como uma brisa quente anunciando mudanças no termômetro. Em princípio, não adianta esperar por uma chuva torrencial que lave a alma dos corruptos e incompetentes, mas também não é hora de abandonar o navio (ou o avião) e se deixar levar pelas águas internacionais. O que é o dólar se não um artifício fingido que também depende de tudo o mais para se manter de pé? Se o clima favorece a moeda estrangeira, vamos mudar o mundo de lugar. Olha o vento sul chegando…

> Crônica publicada no Jornal Notícias do Dia em 01/10/2015.