Encerramento


O único modo de encerrar o ano é com devoção. Devemos tudo ao tempo, mesmo quando ele nos tira tudo. Estamos presos entre as suas articulações. Eis nossos meios de principiar fins. Porque a missão só termina quando compreendida integralmente. Soluços incontidos de conhecimento: o ar se recompõe até quando não for o bastante. Mas este ano terá sido tão diferente dos demais. Olha, amor, vivemos de novo tudo outra vez para nunca mais. E o que me completa é, também, a repetição de me encontrar mais e mais. Não existem quaisquer ambiguidades em tergiversar nesta fé devotada. Eu acredito e desacredito com igual intensidade. E, de momento, estou sem crédito algum – ao menos até o ano que vem. Antes do derradeiro evento, dou-me ao luxo de pensar no assunto. Chego mesmo a elaborar um intrincado plano de fuga que provavelmente não cumprirei. Tenho sorte porque não me dói sonhar. O ano finda com uma oração aberta a todos aqueles que quiserem ouvir.

Miséria e fome ou som e fúria


Tenho fome e grito. O garoto da quitanda varre para longe os alimentos desperdiçados. A feira acaba – não acabam as ruminações de um estômago sem peso. Toda miséria se afeiçoa da fome. O pão nosso que não há. E cada dia é sempre hoje: mais um momento na véspera do abate. Alguém, do outro lado da avenida, poderá escutar este meu gemido? Um coração cheio e a barriga baldia já não interagem com serenidade. O sofrimento beira o absurdo porque o absurdo também é alimento para nossa espécie. Fome animal. Tentativas amiúde para se esbaldar no amor. Soluços cada vez mais altos por uma sopa de água e pedras. Você suporta a miséria que não te pertence. Eu convivo com os esfomeados, gente tão fraca que não tem disposição alguma para sonhar com a revolução. E cansa sobremaneira esta falta de lógica. Tentei apelar para o bom senso, mas o garoto da loja só cumpre ordens: a comida partiu embrulhada num saco de lixo.

Os estrangeiros sempre estão em casa


Quem pode ir longe sem os pés no chão ou, no mínimo, sem a sensação de que a Terra ainda é o único lar conhecido em todo o universo? Há aqueles que se sentem estrangeiros no tempo; uma alma de outra época que calhou de estar aqui e agora. Muito mais perto de nós está todo o resto. Ainda assim, prolifera a ilusão de que as classes sociais nunca existiram. O que vigora até hoje: a inconformidade de um visitante indesejado pelo que tem ou deixa de ter. Qual um vírus, bactéria. Nem todos os passageiros pagaram a passagem. Os estrangeiros foram e são os protagonistas destas chamadas civilizações humanas. Por vezes, eles não sabem o que fazem. Não será o bastante oferecer uma colher de chá para os colonizadores de outrora – sem açúcar mascavo, mas claro, mais caro. Porque a gente sobrevive sobre os escombros que resistem. Ruínas que nos recordam de uma casa nunca habitada. A massa indignada acusa os estrangeiros de conduzirem o trem da história.

Das dores invisíveis


Se eu escondo a dor, é porque a dor não me representa. Só cabe em mim uma vontade incompreensível de prazer fugaz ou de felicidade constante. Oito ou oitenta. Este objetivo de longo prazo me acompanha desde a infância. Ainda estava crescendo quando me convenci de ignorar a dor até o limite do tolerável. Toda diretriz parte de uma conjuntura específica. As pessoas só podem ser julgadas pelo que está publicado – mas há muito mais na composição de um indivíduo. E o cidadão, como tal se apresenta, existe apesar da cidade. Da pólis emerge o sonho de viver absorto em felicidade, dentro de uma estrutura comunitária. As dores expostas para a comunidade provocam reações mistas, condizentes ao que cada um aprendeu a sentir. Evitar a angústia é uma habilidade desejada por muitos. A empatia traz uma carga pesada, tão invisível que dela preservamos somente o alívio. Já não passa por aqui o caixeiro viajante com os antibióticos de praxe. Menos um peso no ombro e mais um desajuste na projeção do meu sorriso. A dor usa uma capa invisível quando vem abusar de mim.

Olhar de surpresa


Trago alguma verdade em meus olhos porque transformei mágoas em poemas. Vide verso; você deveria saber como é isso. Isso apareceu nas músicas que interpretei, conduzindo outras vozes dos meus afetos. Quem sabe de mim canta comigo amparado pelo entusiasmo dos apaixonados. E, ocasionalmente, choramos juntos, embriagados pelas palavras que não mais preenchem os espaços do meio. Meus olhos têm o peso dos dias sem tirar nem pôr. Talvez seja assim também para com os demais – não saberia dizer. Minha experiência é limitada pelo meu corpo; para além dele, as fronteiras alheias permitem ou não me levar adiante. Deste modo, posso ser vários, mesmo que não seja nenhum em sua totalidade. Mas como ainda alguém pode se surpreender com tão somente um olhar? Eis a pergunta que me faço quando tiro os meus óculos de grau e miro com precisão as pupilas refletidas no espelho. São estas as verdades que me pertencem? Qual seja, dou-me por satisfeito. Minhas ambições foram contidas pela experiência e o privilégio de conviver entre os meus.

O universo dentro de um globo


Um círculo que se fecha ou um labirinto sem começo. Quando se alargam as expectativas, fica ainda mais complicado enxergar o êxito disfarçado de saída. O lugar comum que volta e meia nos atrai sem jamais aparecer no mapa. Como não existisse fora das intenções de um demiurgo ou de um dramaturgo. O bardo recriou o universo dentro de um globo: a plateia sob a redoma e muitas indecisões em cena. O molhe de chaves está no alto da estante, dentro de um balde transparente, ao lado de um livro sobre um príncipe órfão. Há pressão por todos os lados. A força da gravidade permanece constante. Se a perseguição acabar, já não restarão mais razões para fugir. O descanso do escritor é realmente merecido? Com tantas portas nos afastando uns dos outros, os abraços diminuem gradualmente. Aquele silêncio que preenche o resto incomoda ainda por instantes adiante. A abstração concreta do pó se converte no círculo dentro do labirinto. Quero ouvir a versão de vocês.

Esperanças despreocupadas


Não é que eu não tenha mais esperança: apenas já não me preocupo mais com ela. Sei que alguns poderão assimilar tal decisão qual um fruto nascido da árvore do desânimo. E não ousarei refutá-los porque tudo está conectado. Teimo somente em direcionar as minhas conjecturas para uma solução menos rarefeita, mais próxima ao que sobrevive neste rés-do-chão. Valho-me da insistência por motivos pessoais que não cabem nesta narrativa crônica. Talvez alguém se frustre por acreditar que as respostas definitivas possam ser comprimidas em palavras – escritas ou faladas. Talvez a própria esperança se excite com tantas vãs tentativas de aprisioná-la numa caixa. E outras objeções que deixamos de registrar por excesso de informação. Uma ideia fixa se revigora a cada repetição bem sucedida: farsa, tragédia, drama, comédia… Só existe o conceito de problema porque fomos sagazes o suficiente para inventar o conceito de solução. Bem-aventurados nós que pulamos sobre as pedras soltas de um lago onde nadam as mais profundas preocupações.

O engano de não sentir dor


Após um choque, passamos a acreditar que a dor talvez não seja necessária. É um engano que perdura por alguns instantes. Se a emoção nunca foi boa conselheira, a tristeza sempre teve fama de má companheira. Entre impressões equivocadas, porém, encontramos na sutil arte do perdão a necessidade da dor para nos sabermos vivos. Não convém confundir tal apontamento com um elogio ao sofrer. A percepção da dor tende a expulsar o sofrimento do mesmo ambiente no qual as lágrimas tristes deságuam. Um exercício de paz e paciência. Eis uma nuança simples do saber viver. O despertar, porém, exige bastante de cada um. Este choque me transforma num maestro sem orquestra. Percussão, cordas e metais estão a passeio: a alma fora do corpo arrumando pretextos para se demorar mais um bocadinho. Nesta sinfonia dos ausentes, a dor é exaltada em notas agudas, enquanto a resiliência se fortalece com os tons mais graves. Vaivém de ir-e-vir: voltar a ser uma novidade traz conforto para quem tem a ambição de sorrir outra vez.

Ideia de piedade


Será que é mais o que se perde ou menos o que se deixa de ganhar? A privação da companhia antiga escapa ao cotidiano. Além do que somos, o que sobra? Os prejuízos viram argumentos sem sentido. Qualquer permanência usa para si um pouco de eternidade. Olha aquela centelha flutuando entre os espaços vazios das recordações! À luz da coerência, repetimos memórias e nostalgias porque os sentimentos exigem. A ideia de piedade vai adiante, claudicando no para sempre e até depois. Reentrâncias de uma micro-história, reencontros no microcosmo das relações pessoais. Família, amigos, toda sorte de companhias necessitando um pouco de compaixão nesta colisão com a perda. A viagem estancou na partida. Ainda vertemos lágrimas e orações; talvez também uns poucos pedidos de desculpas. Resiste a noção esdrúxula de que algumas certezas têm validade. Ninguém quer aparecer, mas se esconder nem pensar. Revolta porque não foi planejado. Saudade porque tão inevitável quanto as estrelas que se apagam na alvorada. Outra estrela desapareceu num céu que também era o meu. Aquele brilho de antes já não absorve nenhuma luz. Deve existir piedade na escuridão.

Colecionadores fervorosos


O primeiro prazer de um colecionador é estético. Pseudorreflexo em objetos que não devem possuir o proprietário. O talento para o desapegar de si mesmo é uma arte pouco divulgada. Alguns confundem com excesso de confiança. O colecionador, por sua vez, dá de ombros para a plateia desatenta. No espetáculo de uma coleção, irrompem intenções oblongas para conter o mundo ou, ao menos, fracioná-lo em partes observáveis. Uma característica essencial: os colecionáveis devem estar sempre à disposição. Convém deixar tudo ao alcance das mãos, lugar de acesso fácil para o ir-e-vir. Coleções não foram elaboradas com o intuito da prostração. O fervor dos colecionadores nunca pode cessar – ou a coleção correrá o risco de perder aquela vitalidade jovial. Aqui se faz o objeto; aqui se coleciona. Comprar ou ganhar se torna irrelevante. Porque sempre há tempo para encontrar a peça seguinte, ainda que os espaços se acabem. O mundo é imenso, mas não tão grande para conter tanto de si. As histórias contadas pelas coleções se passam num universo de fantasia, com os olhares admirados dos sonhadores que chamam a si próprios de colecionadores.

O avesso da ilusão


A mentira existe apesar de, confessadamente, não ser uma verdade. Quem admira a falta de sentido poderá encontrar alguma paz no avesso da ilusão. Tudo ao contrário, qual um jogo vencido apenas pela torcida. Contemplar inverdades ajuda na compreensão do caráter dalgum sujeito que se apresenta inocente. Uma estória estagiando no porto seguro (se alguém puder garantir a estadia). Os credores da realidade também contam causos de arrepiar os pelos da nuca. As pontas lisas dos dedos passam incólumes à febre terçã dos mentirosos. Os guardiões da ficção passaram as duas semanas anteriores no leito de um rio amargurado. Enquanto se escondiam das doenças, os detratores destes causos, pois, municiaram-se de especulações aleatórias. Quem pode garantir qualquer narrativa quando os profetas estão ausentes? Bondade sua confiar em mim após tantos deslizes. A ilha da imaginação teve origem numa falsidade continental. As placas tectônicas colidiram e as consequências ainda não foram todas inventadas. Maldade minha não te avisar deste conteúdo fajuto. Já é de manhã, mas nem mesmo anoiteceu. O vento matinal leva as mentiras para longe dos covardes. Enganaram-me dizendo que o café estava pronto.

No coração das estrelas


Foi o medo da gravidade que te fez se prender em mim? O curioso é que tínhamos todo o espaço à disposição. Uma gama de estrelas somente para servir de enfeites e, eventualmente, aquecer nossos corpos. Veja bem, eu não estou reclamando desta composição que inventamos durante a noite. Ao contrário, orgulho-me de dividir a autoria contigo. Mas a gravidade nunca nos ameaçou de fato. Até mesmo aquele buraco negro no coração da galáxia era risível para o que pretendíamos em segredo. Prefiro crer que foi a massa disforme do meu coração subjetivo o que aproximou nossa respiração. A rinite que se dane. Pingo duas gotinhas nas narinas e a palpitação aumenta. Uma arritmia controlada; dois corpos ofegantes contidos por um abraço. O calor sobre as peles nuas dura todo o outubro vermelho. E a gravidade continua brincando com seus tons de verde. Prometo nunca mais desdenhar dos seus medos. Logo eu que passei pelas estrelas com receio de esquecer os vagalumes no céu. É impressão minha ou aquele sol medroso tem o formato do teu coração?

O que não pode ser


Reitero que desaprendo com facilidade o que pouco ou nada me interessa. Ajeito os óculos e a atenção se esvai. Esquecimento e condições materiais. Um cobertor curto!, proclamou o arauto de sua majestade o Tempo. Este clima ameno favorece ao esmorecimento das ideias titubeantes. Vai por lá, volta, ou fica parada. Sem pressa de checar o itinerário. Já passou da hora de estudar o que não pode ser. Venha comigo nesta fascinante jornada existencial, com pontos de parada niilistas e uma capitã desatenta sob o signo de peixes. Ela reconta e conta os passageiros mais de uma vez, e sempre termina com um total diferente. Eu e você, por outro lado, fomos em busca de diversão e autocontrole. Mantenho vivo o sonho de manusear com destreza um sextante. Mais um item na lista de afazeres por desaprender. Esta malvada curiosidade nasceu comigo sob o signo de escorpião. Fogo ardente: paixão febril pelo vir-a-ser. Sou o ser-em-si abastecido de vazios e outros poréns. Eu perdi a chance de não existir, mas ainda poderei desaprender.

Balde de alma fria


O que é uma vítima das circunstâncias? Alguém que perdeu a alma sem saber de si? Minhas respostas estão em suspenso num balde de plástico. O balde sobe e desce amarrado pela corda. No terceiro andar, coloco um pouco de analgésico. No primeiro, trocam por um pote vazio de comida. Quando isto ocorre, ainda sou criança. Potes e baldes continuam catalogados como objetos mágicos. E eu sou como aquele camundongo regendo a orquestra enquanto dorme. A fantasia da personagem, porém, só me serve de referência. Tenho de lidar com outras circunstâncias – e outras vítimas, mas não convém esquecê-las. Todas as almas que conheço transitam entre opostos. Consciente ou não, as contradições são indispensáveis na composição deste panorama. Preciso de um mapa ou coisa que o valha para decidir quem receberá a minha torcida. Espero mais um pouco. Quem vem lá? Não reconheço esta vítima recente. Guardaram os fatos e os analgésicos no mesmo pote. Eu desço o balde pela última vez, movendo minh’alma fria do terceiro para o primeiro andar.

Pactos literários


Nem uma vírgula haverá de se perder nestas linhas que eu sigo. Seria tal atitude uma ambição desmedida? Depende do grau de sofisticação. O clássico nasce clássico ou se torna clássico depois de inúmeras relações sociais. Os pecados capitais não são unânimes. Existem intentos escondidos sob o tapete da ética. As linhas me propõem um pacto estético do qual eu próprio sou meu contra-argumento. Aceito a proposta por motivos variados; o principal, talvez, seja evitar processos por infringir os direitos autorais de sabe-se lá quem. O texto ganha contornos de revolução, curvas de rebeldia e um ritmo de poesia. Prosa poética, para ser mais conciso. Já não preciso de uma ovação a cada novo parágrafo. Escrevo só para mim e aprendi a conviver em meio aos segredos. Não conte nada para ninguém, combinado? Este é o segundo pacto. Desta feita, ficamos entre mim e você. Por favor, olhe para trás: todas as vírgulas ainda estão por lá?