Um Imperador abaixo dos trópicos


À terra fria do Velho Continente, o navegador dedicou alguns versos no vergastado caderno de anotações pessoais. Só lhe sobrou da terra natal a ausência mais íntima, a falta dos dias idos, a saudade dos tempos antigos marcada com facas em árvores milenares: iniciais de dois nomes que se eternizaram um no outro enquanto a relação durou. Saudade, palavra tão portuguesa quanto sua pátria natal, agora era companheira de viagem, navegando as escuras águas do Atlântico chuvoso.

Quando do término da longa temporada em mar aberto, o navegador avistou o recorte de um continente no qual se destacava uma pequena Ilha que se agigantava à medida que a distância encurtava. Os marinheiros de primeira viagem que o acompanhavam desceram primeiro, abrindo caminho para o navegador experiente. E assim, o português pisou na terra chã, colocando o nariz ao rés do chão para que os novos odores se lhe tornassem familiares. Quando deu-se por satisfeito, levantou num gesto brusco e fincou a bandeira de seu novo império.

O navegador se fez Imperador tão logo o dia começou a anoitecer. Alguns moradores da região que sofriam com um blecaute temporário (apagão de ocasião) foram ter com a tripulação à luz da pomboca. E quem é este náufrago às avessas que chega despido de ideias democráticas?, era a pergunta que não queria calar entre os nativos. Mas com algum discurso funcional, conversa cartesiana que convence através da lógica, o Imperador logo assumiu um papel de liderança efetiva, mas pouco afetiva, porque aqueles acostumados com o gelado inverno não apreciam o efervescente inferno.

E, nessa história alternativa, adivinhem o que se sucedeu? O mesmo, pois. Aterraram tudo, pintaram a cidade com o cinza dos concretos, poluíram as baías e os córregos grandes ou pequenos, tumultuaram a santíssima trindade que se avizinhara do maior mangue urbano do mundo, destruíram a história com implosões e demolições, desmataram a vegetação que se propagara por séculos e séculos. Em qualquer versão da história, na Ilha ou no Continente, a humanidade parece ter cedido à tentação de não ser salva. E o Imperador gargalhou pouco antes de se transformar em abóbora.

> Crônica publicada no Jornal Notícias do Dia em 18/06/2009.

Pescados e pecados


Os olhos marejados, a maresia do olhar que se perde no horizonte, ondas batendo doída e ininterruptamente nas paredes desta Ilha, porque todo o resto é mar.

Algum barco singra a baía na manhã gelada de junho. Muitos estão ansiosos em busca das tainhas, esses peixes que justificam horas frias varando madrugadas. Mais feliz, o pescador volta à praia com a embarcação repleta das pequenas criaturas presas nas redes.

Noutra rede, aquela virtual, alguém acessa um blog de um turista que andava na areia da Barra da Lagoa. Entre seus comentários particulares, fotos digitais apresentam o resultado da labuta marinha. Os sorrisos iluminam ainda mais as escamas cinzentas e brilhantes dos peixes. Quando dentro d’água, as tainhas trazem consigo uma cor que mistura o azul e o cinza. É uma espécie de celebração de matizes próprias, na qual essa espécie aquática festeja a beleza da vida. Para os que no mar estão, não existe nada mais importante que viver no balanço das águas, sentindo um pouquinho da imensidão do oceano. As estrelas-do-mar transformam o fundo escuro num céu aquático, como quem pinta sombras brancas nos olhos de Poseidon. E o deus dos mares na mitologia grega invade as cavernas assombradas sem qualquer sinal de medo, corajoso como convém aos divinos seres, apontando adiante a ponta do seu tridente.

Distante de toda essa festa que abraça todo o universo conhecido, alguém de largas posses e pecados aciona o motor de seu iate como quem se esquece do mundo e sorri para os esquecidos. Se há alguma mediocridade humana em demasia, toda sorte de falsos prazeres está no uso indiscriminado do vil metal. Mentalmente, o ser em si percorre todas as suas últimas atitudes em busca de uma gentileza; e não encontra nada. Com os olhos, identifica as centenas de construções que teimam em surgir sem a proteção de leis eficazes nesta Ilha. Ao passar sob as pontes irmãs, visualiza um casal de andarilhos arrumando as parcas trouxas para o pernoite. E, quando dá consigo, a secura da estação preenche-lhe o coração.

> Crônica publicada no Jornal Notícias do Dia em 11/06/2009.

O estranho visitante


Um céu rosado baixou sobre as duas baías sem que ninguém identificasse o responsável por aquele efeito especial, digno das produções virtuais mais elaboradas, ausente de ficção nas vivas cores da natureza. Porque o mundo é feito de átomos e aquarelas, moléculas e matizes, sombras e saudades.

Por entre as nuvens, furando o algodão doce, desceu um gigante alado, sorrindo para a multidão que se aglomerava às margens das baías. Ele apoiou os pés cuidadosamente entre as pontes Hercílio Luz e Colombo Salles. As sandálias rústicas, da dimensão de dois automóveis cada, traziam consigo um brilho azul festivo qual bandeirinha de festa junina. O vento sul, típico da estação, cedeu lugar a uma brisa suave que se espalhou do centro para as extremidades da Ilha e cobriu toda a superfície terrestre. O anjo colossal começou a falar e todos se calaram.

– Vim para fazer uma visita rápida. Quero saber como vocês estão se virando.

E não foi preciso que qualquer pessoa falasse em voz alta. Todas as respostas partiram diretamente dos corações humanos para o estranho visitante. Da Ilha, emoções vazaram junto com preocupações essenciais. Todos estavam ansiosos pelo futuro, receosos pelo conceito atual da palavra “progresso”, temendo as mudanças como é típico a todos que gostam daquilo que possuem, ‘inda que ninguém seja dono de coisa alguma.

– Vocês perguntam: Que vai ser de tudo isso?, disse o anjo.

E aquela era a dúvida primeira, a conversa passageira, o papo filosófico da academia e do botequim. Florianópolis deixou de ser lugar da natureza para se transformar em campo de batalha (social, política…); a alternância de mandos e desmandos recortou as características dessa cidade e, de certa maneira, colou-as totalmente regurgitadas em seus muitos aterros.

Quando o anjo dava sinal de subir aos céus, uma criança ousou perguntar se ele voltaria amanhã. E, mais uma vez, o anjo sorriu. Agora, porém, demonstrara certa surpresa. Afinal, sua chegada não fora programada e nem significava uma alteração da ordem. O livre arbítrio ainda estava valendo e todos continuavam condenados à liberdade.

> Crônica publicada no Jornal Notícias do Dia em 04/06/2009.