A década de 1930 se desenrolou concomitante à recuperação econômica após o Crash de 1929 e, também, à ascensão do nazi-fascismo na Europa. Por um lado, o capitalismo titubeava em sua crise mais relevante desde que as economias nacionais deixaram a rigidez das próprias fronteiras. Por outro, o comunismo se tonara uma possibilidade concreta e estabelecida a partir da Revolução Russa em 1917. Não obstante, a democracia ao modo ocidental ainda estava em vias de se solidificar, com as ditaduras eclodindo aqui e ali pelos continentes. Os governos de Alemanha e Itália ousavam para além dos próprios limites. E a arte das massas, sobretudo nos Estados Unidos da América (EUA), projetava-se nas telas de cinema. Uma Segunda Grande Guerra se tornou inevitável.
Eis a história recente e imediata que Charles Chaplin acompanhava com seu olhar de imigrante europeu na América do Norte. Quando lançou a película O Grande Ditador (1940), o sucesso de Chaplin estava consolidado nos EUA, sendo possivelmente o mais completo e famoso artista naquela fase inicial da sétima arte. Na esteira da transição entre os cinemas mudo e falado, Tempos Modernos (1936) se encaixou como a pedra mais preciosa lapidada pelas mãos do cineasta inglês.
Tais nuances cinematográficas devem ser levadas em conta quando da interpretação de O Grande Ditador, então o consentimento definitivo pelo autor ao cinema falado/sonoro. Trata-se por óbvio de uma película escrita sob o signo do engajamento social – um manifesto contrário à guerra. O discurso final do barbeiro judeu que toma o lugar do ditador antissemita não deixa dúvidas dos próximos passos que as nações indecisas devem tomar. Porquanto, não desejar a guerra se difere de fugir do combate.
Para efeito de comparação, podemos utilizar outro clássico realizado durante o conflito: Casablanca (1942), de Michael Curtiz. Enquanto na obra de Chaplin há uma dedicada busca pela tomada de decisão, no filme de Curtiz a decisão (do estúdio, do enredo, da direção…) já está tomada. A história e o cinema estadunidense assumem tons mais graves de 1940 para 1942. O ditador terá seu fim no reverso daquilo que buscou, como acontece com todos aqueles que não enxergam para além de si.
O manifesto político de Chaplin não impõe necessariamente um incômodo na dramaturgia de O Grande Ditador. Ao contrário, permite que se leia o filme a partir de sua época. Ainda assim, parece existir algo não muito bem resolvido e desajeitado na narrativa: o roteiro almeja contar duas histórias que se unem forçosamente ao final. Tal situação poderia ser evitada se Chaplin contasse apenas uma história, com duas tramas ocorrendo em paralelo. Essa impressão ganha respaldo na pantomima do barbeiro trabalhando ao som da composição clássica Dança Húngara nº 5, do alemão Johannes Brahms. A performance de Chaplin beira o sublime, mas não se une diretamente ao enredo. Entrementes, qual uma digressão, a cena tem sua razão de ser para colocar em oposição as visões do barbeiro e do ditador. Enquanto o primeiro trabalha inspirado pela música, colocando a arte no cotidiano das relações sociais, o segundo desdenha a melodia, tocando piano sem emoção e de modo burocrático. Mesmo a poesia que nasce a partir da cena na qual o ditador baila solitário com o globo terrestre tem qualquer coisa de alienação. Não por acaso, a dança ganha conotações sexuais, acompanhada por uma trilha sonora não diegética, alheia à gravidade das intenções cruéis da personagem.
A despedida de Carlitos, com seu fraque, cartola e chapéu característicos, dá-se com o barbeiro desmemoriado. E eis que temos Chaplin acenando para o seu legado criativo; conversando com sua filmografia; reiterando a imprevisibilidade do mundo, da arte, da ciência, da política…; retomando ideias que vão e vêm no tempo; terminando com um aforismo/trocadilho extemporâneo: na luta entre a civilidade e a barbárie, o barbeiro não é o bárbaro.