Quando Rick Blaine fala para Ilsa Lund que ambos sempre terão Paris, todo o sentimento da frase tem muito mais a ver com o cinema, a história e a história do cinema em si, do que de fato com o caso de amor de ambos na Cidade Luz. Esta cena, quase ao final de Casablanca (1942), de Michael Curtiz, é tão devastadora que faz do filme uma obra definitiva, porque altera todos aqueles sentimentos ingênuos por uma ideia de nostalgia que é, afinal, a origem de toda arte.
Baseada numa peça teatral intitulada Everybody Comes To Rick’s, a película de Curtiz funciona tão bem devido à consistência com a qual foi desenvolvida. Ao abordar a Segunda Grande Guerra enquanto a mesma acontecia, Casablanca traz o absurdo século XX na forma de um amor do passado que retorna ao som da melodia As Times Goes By. Rick e Ilsa sofrem porque percebem naquele mesmo instante que são tão fundamentais quanto insignificantes; o que é uma história do amor quando o mundo está sendo dominado pela barbárie?
E não é por acaso que Richard Blaine se transforma num cínico ao partir sozinho para Casablanca, onde abre o Rick’s Café Américain ao lado de seu fiel companheiro Sam. O cinismo permite-lhe tomar partido na guerra sem levantar suspeitas, como quando lhe perguntam sua nacionalidade e Rick responde sem pestanejar: Eu sou um bêbado. E isso faz dele um cidadão do mundo, completa o Capitão Renault. O diálogo certeiro de um roteiro escrito durante as filmagens. De alguma forma, naqueles tempos interessantes e cruéis, ninguém sabia qual seria o fim das personagens como também não se poderia afirmar quem sairia vencedor da guerra.
Eis a inocência perdida que Curtiz tão bem pontuou ao lado do talento indiscutível de Humphrey Bogart (Rick Blaine) e Ingrid Bergman (Ilsa Lund). Bogart é a alma do filme e Bergman o coração. Enquanto ele faz de tudo para esquecer o passado, ela não foge às lembranças de alguém vítima daquela abominável guerra. Assim, o típico herói, representado pelo marido que Ilsa achava ter sido morto num campo de concentração nazista, só existe porque também outros cidadãos comuns, como Rick e Ilsa, lutaram como lhes era possível, desistindo da Paris pré-guerra, agora ocupada pela França de Vichy.
Apresentando o viés dos Aliados, a produção conta com uma cena em particular que muda profundamente o cinema e, mesmo, toda a cultura ocidental: em seu café, Rick está conversando com Victor Laszlo, o marido de Ilsa, no momento em que soldados alemães entoam o hino de seu país. Indignado, Laszlo pede que a banda toque a Marselhesa, que logo é interpretada vigorosamente pelos presentes, fazendo com que os alemães desistam de sua própria exaltação pátria. Este é o momento de ruptura, tanto no filme quanto da história contemporânea. A partir dali, não há mais volta para Rick e Ilsa, como também está definido o inimigo a quem deve ser calado, seja através de armas (o tiro de Blaine no Major Heinrich Strasser) ou de uma música.
A arte não é apenas uma propaganda de guerra, mas uma condição essencial de nossa própria existência. Logo, a Marselhesa é tocada pela banda que entretém os frequentadores do Café Américain, enquanto o hino alemão parte dos bárbaros soldados nazistas. “De todos os bares do mundo, de todas as cidades em todo o mundo, ela entra no meu”, diz para si mesmo Rick, sabendo que não há mais tempo para fugir de quem ele realmente é. “Você é um sentimental”, lhe diz o Capitão Renault, seu mais novo amigo naquele mundo também recente com as cores de Marrocos e do Oriente. O sentimento não é de tristeza, seja como for. Da ausência de amor à amizade que se apresenta entre as nações – o francês Renault e o americano Blaine –, o futuro não é trágico, apesar da guerra.
Todo o elenco de apoio da película insere também uma dignidade que provavelmente não se compara a nenhuma outra produção daqueles anos de guerra. Paul Henreid (Victor Laszlo), Claude Rains (Capitão Louis Renault), Conrad Veidt (Major Heinrich Strasser), Peter Lorre (Ugarte) e Dooley Wilson (Sam, que nunca recebeu um pedido para tocar As Times Goes By de novo), especialmente, são pura sofisticação naquela sinceridade característica de Michael Curtiz.
A relevância de Casablanca em suas muitas décadas de exibições poderia residir na inocência perdida de um cinema e de um ideal de mundo que não existem mais. Mas os clássicos assumem muitos outros sentidos ao longo do tempo. Desta feita que, para além das mudanças, estão as qualidades de uma obra de arte definitiva, coisa que o cinema, e apenas o cinema, poderia nos proporcionar.
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