O primeiro suspiro


Há por aí uma sensação incômoda, como se tudo fosse oito ou oitenta, como se luz e trevas fossem caminhos únicos e distintos. Bobagem pura que qualquer criança destrói qual uma torre de cartas. Pior ainda é crer num mundo à direita ou à esquerda, mesmo sem ter qualquer compreensão do que tais posicionamentos significam na prática.

O que acontece em grande medida é um esforço demasiado pela picuinha. Quem se atém a não-valores comezinhos perde um tempo precioso num universo irresoluto. Sem se dar conta, muitos insistem na tristeza movidos por uma incapacidade (e falta de incentivo, saliente-se) de verificar o plano geral da própria vida – não a vida de cada um, mas a existência em si, o porquê filosófico de estarmos aqui nesse mundo passando calor ou frio, suando a camisa com uma sabedoria sempre limitada e uma compulsão quase desenfreada pelo conflito, seja numa luta de classes ou na insensível busca pelo poder.

Chega mesmo a ser bobo esse sentimento de autossuficiência que alguns encontram quando estão num estágio melhor. É o rico que se dá por satisfeito quando não tem mais que se preocupar com dinheiro e se esquece do mundo. Ou o político saudado pelo povo, mas cujo coração de pedra deteriorou praticamente todas as suas relações pessoais. Para cada ação, uma reação. Cada vitória implica numa derrota. Escolher é perder a outra opção.

Essa visão de sucesso profissional construída sob a febre do american way of life afasta-nos de uma estrada muito mais feliz porque não condiciona as oportunidades ao trabalho. Logo, talvez estejamos errados em nossas expectativas para com o futuro distante. Transitamos por trabalhos, ideologias e outros subterfúgios da realidade porque acreditamos numa redenção vindoura; como se a aposentadoria nos trouxesse alguma paz, e a verve juvenil fizesse de nós uns nostálgicos de marca maior. Com a idade, aceitamos o destino de tudo porque nos pegamos impotentes ante o mundo. Uns se frustram, outros vão à praia – quando a aposentadoria permite, claro.

As trevas e a luz estão por aí desde o primeiro suspiro humano: aceitá-las como uma única força é um aprendizado que ainda não alcançamos. Mas temos tempo.

> Crônica publicada no jornal Notícias do Dia em 24/11/2016.

A ostra do Sr. Holmes


Tendo aceitado o convite de um velho amigo, o Sr. Holmes veio aproveitar a primavera numa casa com vista para o mar lá no Ribeirão da Ilha. Para não perturbar o pobre senhorio, vamos manter a identidade desse amigo no anonimato, mas convém dizer que o mesmo não faz parte dessa elite antropofágica que só faz deglutir os próprios bens. Era um sujeito simples, tão cordial que o Sr. Holmes tomou-lhe por melhor amigo tão logo seu companheiro de aventuras, Dr. Watson, foi para um universo indecifrável até mesmo para o mestre das deduções. É assim que a vida faz com quem insiste nela: ceifa-lhe tudo – do pó ao pó.

Assim que colocou os pés na areia, o Sr. Holmes se deu conta de que, pela primeira vez, estava numa praia única e exclusivamente motivado pelo lazer. Claro que noutras oportunidades visitara o mar. No litoral sul da Inglaterra, sentia certo apreço por Brighton, uma cidade que atrai muitos turistas, mesmo não sendo tão fascinante pela qualidade de suas praias. O Ribeirão em nada lembrava Brighton, como Florianópolis pouco se assemelhava à Londres.

Entrementes, Holmes, com sua idade avançada, cansara de Baker Street. Logo após o enterro de Watson, revistou as velhas anotações do doutor e decidiu rever amigos de um tempo que estava deixando de ser lembrança viva para se tornar história. Visitou uma ou duas pessoas no Reino Unido, quando o nome de um brasileiro lhe chamou a atenção. Fora aquele nome pitoresco para um londrino ou fora o Brexit (a saída do Reino Unido da Europa)? Não importava: A decisão de cruzar a oceano já estava tomada.

O anfitrião ilhéu do Sr. Holmes levara-o para comer ostras logo na primeira noite. Ah, e como o convidado ficara fascinado com o sabor da iguaria. Trocaria os milhares de chá que tomara no passado para ter conhecido as ostras muito tempo atrás. Mas nem mesmo o detetive mais brilhante de todos os tempos pode alterar o passado. Assim, contentou-se em pedir mais uma dúzia do molusco gratinado – para dividir com seu amigo, evidentemente. Foi aí que lhe ocorreu a solução de um caso que ficara perdido num canto escuro de sua memória. Lembrara-se, agora, de uma história mais surpreendente que Um Estudo em Vermelho ou O Cão dos Baskervilles. Sim, tinha a resposta na ponta da sua língua. Mas, primeiro, haveria de terminar com as ostras.

– Deliciosas!, exclamou.

Uma dedução elementar.

> Crônica publicada no jornal Notícias do Dia em 17/11/2016.

Trump e nós


Num sentido mais estrito e histórico do que prático e cultural, a eleição de Donald Trump diz mais sobre as nossas expectativas do que sobre nossas necessidades. Temos, evidentemente, sempre medo de falhar. É o que nos torna humanos. É o que nos faz tomar decisões arriscadas, apenas para fugir de uma inevitabilidade histórica: as mudanças estão aí para nos iludir, fazendo-nos acreditar nessa ideia de progresso. A continuidade é menos conservadora do que a mudança porque ela não mexe com os desejos individuais. E vivemos a Era dos Desejos. Todos querem tudo; e agora. O cotidiano se tornou um ambiente inóspito por si só, principalmente quando se perdem as expectativas de mudanças: mudar de classe, de roupa, de refeição, de tudo que é físico e revela quem queremos parecer.

Justamente por ser um mega-bilionário, Trump se parece mais com a ideia de sucesso do que nosso vizinho feliz. Já não interessa mais a grama verde e retilínea da casa ao lado, quando o que se almeja é não ser o que se é. Talvez este seja o drama de sempre da classe média. Com medo de perder o que tem, vive em angústia num suporte quase cego àqueles que têm demais. E se as oportunidades mínguam, como é próprio do capitalismo de tempos em tempos, o vale tudo ganha sua vez. É quando surgem os preconceitos, a polarização do debate, o ódio que enxerga apenas a si mesmo e nunca além.

Participando ou não das eleições, o cidadão comum olha para seus políticos qual o reflexo de um espelho. E o desafio do candidato é agradar seus eleitores até nas declarações mais pessoais que não dizem respeito ao trato da coisa pública. Na prática, a política é tão distante quanto esse reduzido universo dos bilionários quais Trump e Cia: Gente que perdeu muito dinheiro ao longo dos anos, decretando falências consecutivas, mantendo-se no topo assim mesmo porque cumpria os requisitos desse sistema invisível a quem todos culpam. Reparem que a culpa sempre está no outro, nunca em si mesmo. É o outro que não sabe escolher seus líderes. Mas a piada pronta continua ali: o Outro fala o mesmo de ti. Muitas vezes, utilizando dos mesmos argumentos, da mesma adjetivação barata e rasa. O espelho, de novo. E nunca é fácil olhar para si mesmo. Ainda mais quando a imagem que aparece é a de Donald Trump.

> Crônica publicada no jornal Notícias do Dia em 10/11/2016.

A ponderação


A crítica, companheira indissociável da opinião, ganhou a graça das pessoas nestes tempos virtuais. O mundo líquido, de relações sinuosas e, paradoxalmente, desconectadas, permite-se aos contratempos de quem precisa ser ouvido, compreendido, aceito – e jamais repreendido. Mas o exercício da crítica, sobretudo quando se pretende assaz e relevante, vai muito além da opinião constante, permanente e urgente sobre tudo. Nenhuma tecnologia ou ferramenta que facilite a divulgação de pontos de vistas, convergentes ou antagônicos, substituirá a necessidade de conhecimento. Ter alguma sabedoria exige esforço, tempo e dedicação, mas vale a pena porque tende a suprimir todas aquelas idiossincrasias das primeiras impressões.

Desde sempre, tudo tem a ver com informação e formação. Essa educação obtida sob a égide da coerência escapa um pouco aos conceitos tradicionais, ainda que seja respaldada pela família, pela academia e pelas instituições que impõem certos limites, mas permitem que o pensamento circule com as rédeas soltas. A viagem da mente será sempre aquela mais próxima da verdade absoluta porque admite que erros e acertos são tão irreais quanto quaisquer outras coisas. Entrementes, nossa vantagem evolutiva fez brotar uma experiência a mais nos corações humanos: o discernimento. Ele pode andar ligeiramente esquecido nestes dias de ideias tão polarizadas, mas ainda existe para mostrar a fragilidade tanto de quem é oito quanto de quem é oitenta.

Não raro, damos com a incapacidade do diálogo quando linhas contraditórias atravessam a mesma encruzilhada. Acontece de forma mais explícita quando das manifestações político-partidárias, mas também se dá com todo o resto. Além da falta de conhecimento das questões mais pertinentes ao tema, foge-se quase de forma inconsciente de uma amiga ilustre chamada ponderação. E é aqui onde os pensamentos se encontram, porque longe dos ponderados ficam aqueles tristes e ressentidos: figuras mal amparadas pelo recalque do que nunca puderam ser. Pense bem: jamais você verá alguém acusando outra pessoa de ponderada, como se fosse um xingamento. O motivo é simples: a ponderação é o fim da estrada; não se pode ir além dela. É o local mais alto de corações tão leves que flutuam, porque até mesmo a gravidade não tem força lá.

> Crônica publicada no Jornal Notícias do Dia em 03/11/2016.