A história não foi feita hoje


A narrativa histórica está sempre em disputa. Há, no entanto, um perigo sempre presente de escolher uma versão que se quer universal, ausente de quaisquer críticas porque se arvora de carregar “o lado certo da história”. Enquanto ação inexpugnável do tempo, a história não tem lados. O julgamento moral é que determina as compreensões históricas dentro de processos civilizacionais que estão sempre em movimento, mesmo de modo devagar. O argumento do “lado certo da história” sempre parte de contextos, das oposições que se encontram sob as hostes do poder. O fascismo aparece aí, muitas vezes disfarçado de ordem ou de correção de rumos. Talvez a catarse pública seja necessária. Ainda assim, a tudo cabe a crítica. É um princípio básico daqueles que amam o conhecimento, dos que não se bastam porque dialogam consigo mesmos e com os outros que lhes negam. O prazer só existe na oposição à dor, mas tanto um quanto outro nunca são absolutos. Há dores que curtimos doer, como prazeres que nos deixam mal. O mesmo acontece com a história. A dúvida se mantém como condição básica para nossa humanidade. Não caiamos na tentação das certezas momentâneas.

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As palavras pela metade ou nem isso


Condição primeira da criação literária, a ideia nasce da falibilidade. O êxito da empreitada antecipa um desastre que pode ou não motivar a arte como tal. Imprescindível mesmo é a dúvida, o movimento da queda pouco antes de chegar ao chão ou, igualmente, a ascensão do salto no ápice auspicioso que contraria num átimo a força da gravidade.

A inconformidade autoral, ainda assim, não precisa vir do desalento ou da antinomia. Uma mera certeza corriqueira há de despertar o imponderável. De modo que o insólito se camufla no real, permitindo ao escritor pender para lado nenhum, insinuando um caminho tanto para aquele que ambiciona a refutação absoluta quanto para o outro que se locupleta na continuidade. Nesta corrida imaginária, o vácuo está disponível para a ultrapassagem em quaisquer direções.

Donde surge a questão premente: o escritor, necessariamente, tem de terminar suas ideias?

A escrita só existe pela sequência, independentemente da ordem cronológica ou mesmo da existência de fatos. Os argumentos validam a forma, vice-versando nesta equação tão contrária a um possível manual de redação. Algumas ideias inacabadas, se deixadas numa estante acessível, bem arejada e um tantinho longe das poluições narcisistas, serviriam com eficiência aos outros autores.

Legado em aberto: o escritor-jogador coloca todas as suas cartas na mesa e abre mão de finalizar a partida. Baralho; oportunidades; um texto – como todos os textos – incompleto em alguma medida. Ato contínuo da costura: tramas que se somam às outras na ação efetiva de desfiar.

Uma verdade ainda desencontrada porque os processos de criação literária afastam os autores daqueles sentidos supremos exponenciados pela adesão do ideário. Na literatura mundial, uma tradição ainda por vir, sabendo de outrem na antessala do autoconhecimento.

O texto se põe em vermelho no papel preto; marca de sangue do primeiro autor diluída na insustentável presença do fim.

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Mente quem sabe o que vai acontecer. Mente quem não sabe. Nossas expectativas nos levam para onde e quando deveríamos estar, mesmo se não conseguimos compreender a moral da história. É esta espontaneidade previamente delimitada quem cumpre o mister de nos deixar perdidos sabendo nosso lugar de origem. Migração para toda a vida. Qualquer verdade que diga o contrário não passa de uma sofisticada inversão da realidade. Os opostos se traem quando deixam de ser ambivalentes. Todos temos princípio e princípios. O ser e o nada jamais seriam inventados por um rábula sofista. À miséria da filosofia não convém investimentos ou aplicações; os recursos são escassos. Vamos deixar as dúvidas do jeito que estavam antes de toda essa balbúrdia extemporânea. O filho do homem poder ser o pai de alguém muito diferente de todos os outros. O tempo não iguala ninguém. Cheguei aos 40 anos sem entender tudo isso. E continuo desaprendendo.

A experiência na prática


Na prática, de que vale a experiência se não para validar a si mesma? Veja bem, você que me lê com alguma preocupação, veja bem, não estou negando a conceituação advinda da experiência. Se uma pedra cai todas as vezes que a jogamos para cima, há, evidentemente, uma possibilidade para estabelecer uma teoria científica. Igualmente, ocorre no campo das ciências humanas. Experiências, sobretudo quando repetidas, proporcionam a genuína essência do pensamento do homo sapiens, que a todo momento mescla o real e o abstrato para obter algum sentido do universo e da realidade. Estou cá, especificamente, falando da experiência em sua continuidade – a prática, pois.

Vejamos um exemplo factível: o relacionamento entre duas pessoas que finda por qualquer motivo. Pode ser por uma briga violenta de quem perde as estribeiras, por uma traição cruel com aquela pessoa que vivia no centro da roda íntima do casal ou pela simples conclusão de que o tédio e o fastio da convivência consumiram a ambos. Nestas situações, as razões têm origem distintas, mas sempre levam à ideia de um aprendizado a partir da experiência. Eis o que me interessa agora: concluir que não há aprendizado algum. Quando estiverem noutros relacionamentos, aquelas duas personagens que compõem este casal hipotético levarão perspectivas que serão condicionadas aos fatores próprios de cada contexto, de cada tempo. Se uma traição deixar um deles mais ciumento ou cauteloso, tal característica de nada adiantará ao encontrar outro alguém que não passou por aquilo nas mesmas condições, com a mesma pessoa.

Logo, a reprodução da experiência se invalida na prática. Sim, você me diz, sim, isto acontece porque as pessoas são diferentes e, por conseguinte, os relacionamentos também o serão. No entanto, você completa, no entanto, certas experiências, sobretudo no campo das ciências físicas, são imutáveis.

Vejamos, desta vez, um exemplo científico: a velocidade da luz como limite de velocidade. Na teoria da relatividade geral, você me alerta, na teoria da relatividade geral, nada pode viajar mais rápido que a velocidade da luz – justamente porque tempo e espaço estão fundidos. Eis também aí uma verdade parcial, novamente condicionada ao contexto. No alvorecer do universo, a expansão pode ter ocorrido além da velocidade da luz, dada a concentração de energia que existia naquele instante entre o nada e o absoluto. Não obstante, hoje, bilhões de anos após o Big Bang, a chamada “expansão métrica do universo” propõe que as dimensões espaciais aumentam (ou se estendem) com o passar do tempo de maneira mais rápida que a luz. O universo envelhece, expande-se e não respeita os limites impostos pela velocidade da luz. Não é que Albert Einstein e sua Teoria da Relatividade estejam errados, mas, sim, condicionados ao seu próprio tempo – o nosso tempo; o agora; o presente.

A observação do universo nos permite olhar para trás ou para frente. A luz de galáxias ou de estrelas mortas há bilhões de anos chega para nós neste exato instante, entre a leitura das palavras “exato” e “instante”. Para um observador extraterreno, distante aproximadamente 60 milhões de anos-luz da Terra, a explosão do asteroide que atingiu o planeta e extinguiu os dinossauros lhe chega quase agora, entre a leitura das palavras “quase” e “agora”. Da mesma forma, a previsão de um desfecho para o universo é observável a partir das condições atuais. Entrementes, apenas o tempo futuro criará os meios para o seu provável fim e, supomos, para o entendimento deste evento derradeiro.

Devemos, portanto, negar a experiência?, você me pergunta ainda mais angustiado agora do que antes. Não!, afirmo-lhe imiscuído nesta conclusão passível de falhas e publicada até mesmo para uma refutação veemente. Não mesmo!, reitero-lhe. A experiência se atrela à existência a partir da memória. A memória se relaciona igualmente com a intuição e, em alguma medida, com o irracional. Daí que há uma brecha intuitiva convalidada na oportunidade de rememorar a experiência sem restringi-la ao conceito.

Causa e consequência, qual o quê! Quem foi que disse que as experiências têm de cumprir alguma função? Se não conseguimos entender nada sem o uso da linguagem, também a experiência se ambienta sob o significado semântico de ser. E o que é, é. O complemento aqui se faz desnecessário, como também não cabe à experiência um sentido prático. Além do mais, sempre há uma chance daqueles dois formarem, de novo!, um casal.

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