Encerramento


O único modo de encerrar o ano é com devoção. Devemos tudo ao tempo, mesmo quando ele nos tira tudo. Estamos presos entre as suas articulações. Eis nossos meios de principiar fins. Porque a missão só termina quando compreendida integralmente. Soluços incontidos de conhecimento: o ar se recompõe até quando não for o bastante. Mas este ano terá sido tão diferente dos demais. Olha, amor, vivemos de novo tudo outra vez para nunca mais. E o que me completa é, também, a repetição de me encontrar mais e mais. Não existem quaisquer ambiguidades em tergiversar nesta fé devotada. Eu acredito e desacredito com igual intensidade. E, de momento, estou sem crédito algum – ao menos até o ano que vem. Antes do derradeiro evento, dou-me ao luxo de pensar no assunto. Chego mesmo a elaborar um intrincado plano de fuga que provavelmente não cumprirei. Tenho sorte porque não me dói sonhar. O ano finda com uma oração aberta a todos aqueles que quiserem ouvir.

Papel fotográfico também consome energia


Procure nas fotografias uma resposta para as suas intenções. Boas ou más. As fotos guardam uma ideia que, tão logo acontece, desaparece na incerteza insustentável de um instante. Algumas daquelas pessoas ali nem mesmo estão entre nós. Já não passam de saudade e convicção. Porque toda energia sempre se consome. Delírio-mor conceber ou crer no infinito do que não se pode experimentar. Mesmo que os universos se repitam de pouquinho em pouquinho, a redundância hipotética jamais será uma evidência derradeira. Aquilo que te compraz ou te comprova. E tampouco ajuda repetirmos o teste com a vã esperança de obter resultados opostos, pois somos todos filhos genuínos e bastardos da contradição. Aquela imagem composta sobre o papel fotográfico sugere que as temporadas ocorrem nos entreatos. Há realmente espaços vazios nas interseções do espaço ocupado? Talvez exigimos muito de alguém que sequer esteve presente no momento do registro. Passado tanto tempo, a única certeza entre nós é a de que ninguém lembra o nome do fotógrafo.

Planos e regras


Fazer planos quase lembra seguir regras. Pelo menos, quando do contexto. Planos, porém, têm uma data de validade mais curta, mesmo os feitos a longo prazo. A dificuldade maior de um plano não é outra coisa que a própria vida; esse estranho percurso no qual se desenrola a existência. Alguns de meus amigos diziam que jamais teriam filhos do próprio sangue e que adotariam se a paternidade viesse bater à porta feito vontade indômita. Qual o quê! Acabaram sendo pais antes dos quarenta anos pela boa e velha reprodução natural. A vida interveio e os planos mudaram. E são grandes pais, por sinal. Entre um plano e outro, há alguma metodologia que nos escapa porque diz respeito ao entusiasmo de determinados momentos. Por isso, fica tão difícil poupar. Por isso, as viagens são adiadas. Por isso, o espermatozoide fecunda o óvulo. Regras tendem a perdurar até que sejam ultrapassadas. Planos se sustentam enquanto não há atrito; o movimento prossegue concomitante ao sorriso no rosto. Às vezes, tudo muda. Às vezes, não. Um mistério simples que o mais sábio dos sábios ainda não conseguiu desvendar.

Ferramenta fora de controle


Ferramentas tecnológicas tendem a provocar uma redução no tempo necessário para uma determinada tarefa. E a moeda, enquanto ferramenta, exerce também este papel, mas não só. Atrelada à produção material, a moeda encurta o tempo e, simultaneamente, amplia as distâncias de classe. No capitalismo, uma variação deste tema se dá abruptamente: surgem os monopólios. A moeda, então, assume o protagonismo transformando as unidades carbono – nós, humanos, por óbvio – em ferramentas deste sujeito sem alma (o capital). De criadores passamos a meros utensílios tecnológicos, facilmente manipuláveis pelo capital em sua cruzada pela acumulação infinita. Das varetas friccionadas para produzir o fogo, das pedras lascadas para cortar a carne de animais, do ferro e do bronze fundidos para os equipamentos de guerra e proteção, da prensa de tipos móveis para trazer novas luzes às letras e ao pensamento, da máquina a vapor na primeira revolução industrial, dos semicondutores presentes ostensivamente na eletrônica: as tecnologias de ontem e hoje encontram na moeda uma barreira quase intransponível, fenômeno imprevisto da odisseia humana. Pela primeira vez, talvez seja mais necessário destruir uma ferramenta do que criar outra que a substitua. Afinal, erros sobre erros só fazem aumentar o descontrole de quem perdeu o rumo há bastante tempo.

Se eu quisesse ser outro


A julgar pelo encaminhamento dos episódios que me circundam, jamais saberei as vantagens e as desvantagens de não ser eu. Esta vida é tudo o que tenho até agora. E é muito, é pouco, é bastante, é quase nada… tão longe feito a perfeição um dia aparecesse em minha frente – e não ficasse dúvida alguma quanto à sobrevivência do absoluto num universo de improbabilidades. Sob quaisquer aspectos, quais as chances de existir vida? Tamanha vastidão para um tempo de existência sobremaneira exíguo. Quando o mundo gira por completo, encontro-me – sem me reconhecer, como antes. Durante e depois, respectivamente, dou comigo mesmo e com meu duplo, ambos situados nesta miséria primordial ensimesmada pela realidade. Eu sei, eu sei: soa ligeiramente pessimista. Peço desculpas aos incomodados. Quem não teve, ao menos vez por outra, nuanças derrotistas? A solidão e o desespero de ser um só e apenas um. Quem me escolher terá de se conformar com esta decisão – muito antes do meu nascimento já havia a regra do inevitável uno. Continuo sendo aquilo que me coube; nos cantos, participo de uma aventura muito maior do que a minha própria história insinua. Já terei partido quando não me darei por mim.

O medo à distância


Em todas as vezes nas quais tenho medo, o futuro corre de mim e nem mesmo espera a largada. Cumpre uma maratona e segue adiante. Viaja com passaporte permanente, passagem só de ida e as malas inundadas de desacontecimentos. O medo finca seu pé na areia da realidade enquanto cava o cotidiano com a enxada do tempo: eis a imagem que me atordoa – aquilo que se transforma nas ideias que jamais terei. Ainda assim, sou eu e não o medo quem carrega as explicações e as metáforas. Uma entidade desacorçoada, atraída pelos astros; eu também reflito e repilo a luz do sol porque sou lua (minguante, que seja!). O medo não me paralisa por completo; feito vítima sem crime. Um leão que destrói a jaula para cheirar as flores do jardim. Há sempre muita confusão indomada quando as certezas selvagens deixam o zoológico sem se despedir. A validação do medo a partir de uma teoria científica pode se exaurir num instante infinito ou durar por toda uma eternidade efêmera. Uma cápsula de fuga lançada no empuxo de um buraco negro dormindo no centro da galáxia. A distância do medo não diminui à medida em que aumenta a aceleração dos corpos. Só tenho medo porque ouso sentir.

As veredas abertas no corpo humano


Pela natureza evolutiva singular de nossa espécie, fenômenos humanos são permeados de fundamentos tanto racionais quanto emotivos. Eis a dialética básica que acompanha a história. A partir das primeiras sociedades (organizações humanas baseadas em laços culturais), há uma sistematização/ordenamento do tempo que pode ou não ocorrer de modo consciente. Talvez seja esta a ontologia mais intrínseca aos processos evolutivos e históricos.

O que modernamente viemos a chamar de administração do tempo pode ser apenas um discurso derivado daquelas sensações primitivas que agruparam pais e filhos biológicos em famílias e em Estados apreendidos no espelhamento do outro. Concomitante à evolução biológica, ainda que num ritmo fora de sincronia, as trocas culturais (os comércios, as artes, as tecnologias, os saberes…) aprofundam ainda mais este duplipensar característico: a contradição se torna um pilar essencial daquilo que admitimos como realidade.

De tal modo que nenhuma esfera de nossas vidas cotidianas pode ser entendida e assimilada apenas como um ambiente na qual a razão tem de prevalecer. O Iluminismo escanteou as trevas do pensamento mítico; a crítica ao Positivismo nos possibilitou olhar com desconfiança a crença cega na ciência. No entanto, durante estes processos, erros se avolumaram motivados pela nossa dificuldade ao convívio pacífico, herdada de nossa origem animal e exponenciada pelo mal estar da civilização, um resultado indesejado – mas bastante previsível, se observado a posteriori – da cultura.

Fato tangível: cada vez mais temos de levar em conta os aspectos psicológicos dentro dos conceitos sociológicos. A interpretação das subjetividades talvez seja a maior contribuição da modernidade (e da pós-modernidade) para o zeitgeist contemporâneo, enquanto a historiografia se realiza na interpretação constante do ordenamento temporal. A história não termina aqui.

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Homem Vitruviano (1490). Lápis e tinta sobre papel de Leonardo da Vinci (1452-1519)

A experiência na prática


Na prática, de que vale a experiência se não para validar a si mesma? Veja bem, você que me lê com alguma preocupação, veja bem, não estou negando a conceituação advinda da experiência. Se uma pedra cai todas as vezes que a jogamos para cima, há, evidentemente, uma possibilidade para estabelecer uma teoria científica. Igualmente, ocorre no campo das ciências humanas. Experiências, sobretudo quando repetidas, proporcionam a genuína essência do pensamento do homo sapiens, que a todo momento mescla o real e o abstrato para obter algum sentido do universo e da realidade. Estou cá, especificamente, falando da experiência em sua continuidade – a prática, pois.

Vejamos um exemplo factível: o relacionamento entre duas pessoas que finda por qualquer motivo. Pode ser por uma briga violenta de quem perde as estribeiras, por uma traição cruel com aquela pessoa que vivia no centro da roda íntima do casal ou pela simples conclusão de que o tédio e o fastio da convivência consumiram a ambos. Nestas situações, as razões têm origem distintas, mas sempre levam à ideia de um aprendizado a partir da experiência. Eis o que me interessa agora: concluir que não há aprendizado algum. Quando estiverem noutros relacionamentos, aquelas duas personagens que compõem este casal hipotético levarão perspectivas que serão condicionadas aos fatores próprios de cada contexto, de cada tempo. Se uma traição deixar um deles mais ciumento ou cauteloso, tal característica de nada adiantará ao encontrar outro alguém que não passou por aquilo nas mesmas condições, com a mesma pessoa.

Logo, a reprodução da experiência se invalida na prática. Sim, você me diz, sim, isto acontece porque as pessoas são diferentes e, por conseguinte, os relacionamentos também o serão. No entanto, você completa, no entanto, certas experiências, sobretudo no campo das ciências físicas, são imutáveis.

Vejamos, desta vez, um exemplo científico: a velocidade da luz como limite de velocidade. Na teoria da relatividade geral, você me alerta, na teoria da relatividade geral, nada pode viajar mais rápido que a velocidade da luz – justamente porque tempo e espaço estão fundidos. Eis também aí uma verdade parcial, novamente condicionada ao contexto. No alvorecer do universo, a expansão pode ter ocorrido além da velocidade da luz, dada a concentração de energia que existia naquele instante entre o nada e o absoluto. Não obstante, hoje, bilhões de anos após o Big Bang, a chamada “expansão métrica do universo” propõe que as dimensões espaciais aumentam (ou se estendem) com o passar do tempo de maneira mais rápida que a luz. O universo envelhece, expande-se e não respeita os limites impostos pela velocidade da luz. Não é que Albert Einstein e sua Teoria da Relatividade estejam errados, mas, sim, condicionados ao seu próprio tempo – o nosso tempo; o agora; o presente.

A observação do universo nos permite olhar para trás ou para frente. A luz de galáxias ou de estrelas mortas há bilhões de anos chega para nós neste exato instante, entre a leitura das palavras “exato” e “instante”. Para um observador extraterreno, distante aproximadamente 60 milhões de anos-luz da Terra, a explosão do asteroide que atingiu o planeta e extinguiu os dinossauros lhe chega quase agora, entre a leitura das palavras “quase” e “agora”. Da mesma forma, a previsão de um desfecho para o universo é observável a partir das condições atuais. Entrementes, apenas o tempo futuro criará os meios para o seu provável fim e, supomos, para o entendimento deste evento derradeiro.

Devemos, portanto, negar a experiência?, você me pergunta ainda mais angustiado agora do que antes. Não!, afirmo-lhe imiscuído nesta conclusão passível de falhas e publicada até mesmo para uma refutação veemente. Não mesmo!, reitero-lhe. A experiência se atrela à existência a partir da memória. A memória se relaciona igualmente com a intuição e, em alguma medida, com o irracional. Daí que há uma brecha intuitiva convalidada na oportunidade de rememorar a experiência sem restringi-la ao conceito.

Causa e consequência, qual o quê! Quem foi que disse que as experiências têm de cumprir alguma função? Se não conseguimos entender nada sem o uso da linguagem, também a experiência se ambienta sob o significado semântico de ser. E o que é, é. O complemento aqui se faz desnecessário, como também não cabe à experiência um sentido prático. Além do mais, sempre há uma chance daqueles dois formarem, de novo!, um casal.

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Duas novelas de Harry Laus


Quando um santo mágico aparece na praia ou quando um típico funcionário procura a verdade em relógios idênticos, Harry Laus (1922-1992) nos faz lembrar que há um sentimento de ausência que permeia todas as histórias humanas. Como o autor escreveu no dia 1 de Fevereiro de 1952 em suas Impressões de Vida (Bernúncia, 1998), “creio que chegará um ponto em que, à força de iludir e me iludir, não mais saberei quando estou sendo sincero”. Em suas novelas essa impressão aparenta ser ainda maior tanto pelo desenvolvimento das personagens quanto pela condensação do espaço-tempo.

As obras O Santo Mágico e As Horas de Zenão das Chagas, novelas cujas edições publicadas na década de 1980 serviram para a realização deste texto, não apenas exemplificam esses argumentos como também elevam à máxima potência um gênero literário que fica na crítica fronteira entre a primazia do romance e o caráter conciso do conto. À literatura, convenhamos, não apetece o título de ciência exata.

Em sua incursão novelística quando o autor estava em Porto Belo, Harry Laus colocou personagens e lugares com esmerada descrição para contar o curioso caso de uma aparição na praia da cidade conhecida como O Santo Mágico (Edição do Autor, 1982). Já de início somos apresentados às personagens cujo destino em comum possui ligação com o misterioso clarão azulado que parece ter uma auréola sobre si. A fé talvez seja o questionamento central daquelas figuras literárias, como o pescador Luca (o primeiro a ver o fenômeno), o padre Anatole que se veste de maneira muito peculiar quando se encontra sozinho e o jovem Altair que encontrou a felicidade em Porto Belo junto a mulher e ao filho. E todos acabam por questionar suas próprias verdades mesmo que não se dêem conta disso.

Publicada originalmente em 1957 no suplemento dominical do Jornal do BrasilAs Horas de Zenão das Chagas (Mercado Aberto, 1987), delimita a narrativa num espaço urbano, ainda que sua paisagem seja retratada sutilmente, mantendo essa insatisfação de uma vida semi-completa, tema tão caro aos mestres da escrita; do amor não-correspondido de Dante em Vida Nova às negativas finais da personagem-título de Machado de Assis em Memórias Póstumas de Brás Cubas. O desprendimento da realidade de Zenão é algo tão natural quanto os seus entediantes dias: “O desleixo em que mantém o quarto talvez resulte de certo comodismo que, de forma precária, substitui o conforto que não pode desfrutar”. A história de Zenão situa-se numa região indefinida entre a parábola do cotidiano e a própria vida ordinária com a qual a maioria dos mortais se relaciona sem se dar conta. A personagem traz a inconformidade já em seu nome: O “Zé” que “não” é, ou mesmo aquele que não passa nem mesmo por homem comum. Não obstante, ainda há o sobrenome cujos sinônimos denotam extremo dissabor.

Temos, pois, histórias talhadas em madeira de lei, ainda que com estilos diferentes que as naturezas dos enredos acabam por exigir. O Santo Mágico é uma história que se abre, larva que aos poucos se transforma em borboleta. Já As Horas de Zenão das Chagas é quase como um elevador que se fecha ante os olhares claustrofóbicos do leitor; uma história sobre o tempo passada em época indefinida. Borboleta ou elevador, as novelas de Laus irrefreavelmente sobem, com destino certo às alturas dos melhores prosadores brasileiros.

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Stromboli (1950), de Roberto Rossellini


Soerguido pela força da natureza, o cinema de Roberto Rossellini flui como a lava de um vulcão que cria e destrói com a mesma equivalência. Essa capacidade de controle, e da falta deste, desnuda-se por todos os seus filmes, mas ganha especial significado neste Stromboli (1950).

Em Stromboli, ilha e filme, todos querem o controle de suas vidas – e também das vidas alheias. Iludidas, as personagens esquecem que não têm autoridade sobre o tempo. E, aqui, o tempo se apresenta sob muitos feitios: tempo-natureza, tempo-história, tempo-fé. Qual seja sua representação, o tempo de Karin (Ingrid Bergman, uma força da natureza) será uma provação de fé – nada mais apropriado a um dos principais diretores católicos do cinema europeu.

O tempo-natureza envolve a todos na constante preocupação daquele que é o mais ativo vulcão da Europa. O medo da morte converge ainda mais ao tempo-natureza porque o julgamento final daqueles pobres ilhéus pode vir de um inferno vermelho em forma de lava. Já o tempo-história é absorvido pelo livre-arbítrio de muitas individualidades, a começar pela ex-refugiada Karin, uma lituana que desconhece o funcionamento das fronteiras ao final da Segunda Grande Guerra. E o tempo-fé não esconde sua falta de perspectiva seja na condescendência de um padre-administrador ou quando Karin guarda as imagens santas na casa de seu marido e pinta flores na parede da sala – a natureza, novamente.

Os tempos se misturam e ganham cada vez mais dramaticidade na sequência das cenas: temos Karin flertando com um conhecido na praia, o marido sendo insultado nas ruas, a imagens santas voltando para os locais de origem, o olhar de censura dos fiéis na igreja, a pesca sanguinária numa outra tentativa de controlar a natureza, Karin revelando que está grávida e, claro, a explosão do vulcão no mesmo momento em que ela acende o fogo em sua casa. Em resumo, Karin e a ilha são duas faces de um mesmo poder desconhecido.

Stromboli, situada ao norte da costa siciliana, é um nome de origem grega que batizou a ilha devido ao seu formato inchado e redondo. Para Rossellini, Stromboli não é a ilha, mas sim a mulher grávida – ou, também, o princípio do tempo para todos os mortais.

Na busca por algum controle, Karin foge e decide chegar ao outro lado da ilha subindo o poderoso vulcão. Extenuada pela natureza, só lhe resta compreender que a fé consiste em enxergar aos outros muito mais do que a si mesma; “Eles são horríveis. Tudo era tão horrível. Eles não sabem o que fazem”, diz para si repetindo as palavras do Cristo crucificado, enquanto vê ao seu redor o mistério e a beleza daquele universo natural.

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Nostalgia (1983), de Andrei Tarkovsky


Imagine-se a começar as obras de Friedrich Nietzsche por Assim falou Zaratustra, quando o autor revê sua vida e obra de forma a consumi-la uma segunda vez, tendo já ligação íntima para com a mesma – coisa que jamais outro alguém terá. Algo semelhante ocorre ao assistir Nostalgia (1983), de Andrei Tarkovsky, sem ter contato com suas obras anteriores. Mesmo para quem desconhece os trabalhos de Tarkovsky, fica claro que se trata de uma obra autoral em tom de fechamento, uma espécie de A Tempestade de William Shakespeare no sentido em que autor e obras confundem-se como jamais dantes em seus trabalhos. Em Nostalgia, a aproximação não acontece de maneira fácil ou imediata. Como os bons livros sempre a reler, esta obra necessita de reinterpretação a cada nova sessão. Com seus planos longos e uma verbalização que confunde o rebuscado com o banal, a película se opõe a deixar frestas quando coloca suas personagens quais joguetes de um destino sem sentido. A priori, Nostalgia é uma colcha de sentidos (sonoros, visuais, imaginativos) que discute a essência da vida como metáfora da arte – e vice-versa. Neste cinema, o mosaico do tempo se dilata por um caminho árduo; a vela deve se manter acesa do início ao fim.

nostalgicalidade

Em tempo


Creio que não exista pessoa que nunca quis viajar no tempo, principalmente para o passado. Aquele desejo de consertar as coisas ou conviver novamente com figuras que já partiram faz parte desta mistura entre ficção científica e nostalgia. A ciência nos leva a acreditar que, quanto mais o tempo passa, mais estamos perto de dobrar o tempo à nossa vontade. E isso parece sobremaneira injusto com quem veio antes.

Todo mundo deveria ter uma cota de viagens no tempo. Poderíamos viajar uma vez aos trinta anos e outra aos sessenta, por exemplo. Assim, ajeitaríamos aquelas coisinhas que ficaram não ditas pelo medo de não dar certo. Hoje, porém, sabemos o resultado. Compreendemos que muito do que fizemos ou deixamos de fazer teve implicações questionáveis, ainda que importantes. Olhar para trás é buscar o entendimento: o texto só faz sentido depois de lido.

A ideia de uma máquina do tempo soa fascinante, mas principalmente excludente. É preciso tempo (claro!), dinheiro, uma boa dose de loucura e outra de conhecimento científico para elaborar tamanha empreitada. Além do mais, o criador de uma máquina assim certamente a trataria com egoísmo justamente por participar de um poder que, em princípio, só caberia a uma divindade. Quem rala para colocar a comida na mesa no dia seguinte jamais teria tempo para bolar algo tão mirabolante e, quando muito, ficaria sabendo disso apenas pelos jornais.

Sob um aspecto bem orgânico, a viagem no tempo é a própria existência. Estamos permanentemente presos ao presente, em contato direto com tudo o que veio antes e caminhando com o momento seguinte. E se não ficamos satisfeitos com tal odisseia, é porque aprendemos a carregar o mistério qual uma mochila que há muito deixou de incomodar as costas. O insucesso da onipotência é parte da graça, quer seja para o soberano, quer seja para o bobo da corte.

Entrementes, viajar no tempo é uma máscara para lidar com o conhecimento adquirido. De nada adiantaria ir ao passado sem carregar na bagagem toda a nossa experiência até aqui. Se assim o fizéssemos, cometeríamos os mesmos erros e acertos porque não se pode alterar aquilo que jamais foi.

Eu sei exatamente para quando voltaria. E você?

> Crônica publicada no jornal Notícias do Dia em 18/05/2017.

O ser literário


Disse, nas duas ou três vezes que me perguntaram, que literatura é tudo aquilo que está escrito. Claro, alguns dirão que tamanha isenção ou tão abrangente definição de pouco adianta para fins práticos. A estes, então, cabe toda a liberdade de escolha para pôr as coisas sob suas óticas particulares. Pois se não temos um acordo sob a ortografia que dirá sob uma forma de arte tão singular quanto a literatura?

Dito isto, podemos nos concentrar naquilo que nos apetece: as palavras. Pensamos por meio delas e, ainda assim, não lhes damos o devido valor. A etimologia mais profunda chegará num abismo infinito que atenderá pela dupla alcunha Necessidade-Criatividade. Penso que não existem raízes mais resistentes em quaisquer formas de arte ou comunicação. A Necessidade da palavra – que nasce sonora antes de ser escrita – supre uma condição inerente ao homem de ir além do mundo ao seu redor. Já a Criatividade que lhe acompanha é a explicação de si mesma; imaginamos sua origem a partir de nossa própria mente criativa; talvez seja Deus, talvez seja a ciência, talvez seja outra coisa – e este é um mistério para o qual, de certo modo, estamos preparados.

A palavra escrita e a literatura são entidades que tendem a flertar com uma ideia de imortalidade. Permitimo-nos imaginar um mundo sem nós quando deixamos versos, fatos e versões nalgumas páginas, quer sejam de papel ou não. Escrever é acreditar que o passado fará diferença no futuro. Em verdade, praticamente ninguém escreve para ser lido no mesmo instante. É até meio chato quando alguém fica sob o seu ombro conferindo cada nova letra que surge para complementar a anterior. Assim, o mais exibido dos autores ficará inibido porque a literatura nasceu para ser uma prática solitária, diferentemente do cinema, da música, da pintura…

Imortais ou não, continuamos a escrever. Eu aqui em 2017 e você que agora me lê no século XXII estaremos ligados até o final desta crônica, mesmo que nunca tenhamos nos esbarrado pelo tempo. De qualquer modo, a veia artística da literatura tem muito mais a ver em fazer perguntas do que entregar respostas insatisfatórias. A literatura é sobre ser. É ou não é?

> Crônica publicada no jornal Notícias do Dia em 11/05/2017.

Depois do Carnaval


As expectativas tratam das pessoas que as têm. Nem mais, nem menos. O conteúdo, neste caso, é a forma. E passado o Carnaval, fazemos dessas perspectivas de opinião o eixo das atenções, principalmente na esfera das relações públicas, na qual existe uma série de códigos e posturas que precisam fazer sentido – pelo menos no conjunto das aparências.

Pós-Carnaval, vive-se da desconfiança dos dias vindouros. Uns desconfiam positivamente; outros guardam o dinheiro no colchão. Mas todos se relacionam como se tudo dependesse de decisões tomadas por terceiros. “Se ele fizer isso, será melhor” ou “Tomara que ela mude as coisas de uma vez por todas” são caminhos que alguém haverá de tomar, mas nunca quem sentencia tais assertivas. Às vezes, culpam o governo. Noutras, o povo. E de tanto falar em culpa, não assumem responsabilidades que lhes são de direito e de origem.

Os otimistas esperam sempre que os ânimos se compadeçam e tudo volte a ser como antes – ah, aqueles tempos nostálgicos quando o mundo era tão menos complicado. Já os pessimistas perdem suas tardes reclamando das notícias com alguma satisfação ao dizerem “nós bem que avisamos”. Entretanto, estes ou aqueles não estão imunes à própria inércia que lhes move, contraditoriamente, para o mesmo lugar.

Quando as engrenagens sociais não estão bem azeitadas, a máquina sucumbe à paixão por si mesma. Há os que chamam isso de status quo, mas é só tosquice mesmo. Catalogar os humanos não faz o menor sentido quando a natureza define situações que fogem ao controle de nossa espécie. Ou, por acaso, alguém pensa que os vírus, as bactérias e seus comparsas estão preocupados com pobres ou bilionários, com plebeus ou consanguíneos da família real, com religiosos ou ateus…? Um corpo é só um corpo, até que se prove o contrário. Carne e água e ossos e mais umas outras coisas unidas ao pensamento. Mas a dengue ou a aids ou a zika não escolhem seus portadores dependendo do grau de instrução e tampouco estão interessadas se estes são analfabetos ou formados numa universidade pública. As desigualdades de uma sociedade só servem de desculpa para evitar o inevitável: uma expectativa que nunca se cumprirá.

Tanto faz estabelecer o Carnaval para marcar um recomeço. A vida não cabe num calendário, tanto como as expectativas não significam nada para quem escolhe não tomar partido. A decisão dos outros é proporcional à indecisão de si mesmo. A ressaca (ou a falta desta) é sempre mais significativa e perene do que a festa, independente da fantasia.

> Crônica publicada no Jornal Notícias do Dia em 11/02/2016.

Desejo de Natal


Alguma conveniência há quando dos desejos de Natal. Que qualquer alma pode sonhar com um presente que lhe realize, todos concordamos. Sonhar não custa e tampouco deve ser deixado de lado. A questão que coloco em pauta é a falta de sintonia destes desejos para com o dia a dia – porque é no cotidiano que as profecias se cumprem independentemente do tempo.

Presentes aparecem como soluções, quando são, na grande maioria das vezes, invenções de felicidade. Como aquelas pílulas que lhes permitem dormir. Imberbes, imaginam-se em possantes motos ou automóveis porque pode haver alegria no pedal de aceleração. Neófitas, esquecem dos dissabores que se lhes acompanha na adolescência e logo querem responder por sua independência financeira e emocional. Em ambos os casos, uma realidade paralela faz parte de desejos que se locupletam apenas em certa medida. Aquele distanciamento de um viver com os outros ainda existe, apesar da materialidade dizer o contrário.

Um desejo de Natal tem muitas origens. Alguns nascem por necessidade; Outros, por vaidade. Mas os que realmente causam desconforto são aqueles que não correspondem à intimidade da troca – esse ir e vir de ideias, sentimentos e descobertas que faz de um humano aquilo que ele escolheu ser. Mesmo que pareça sem sentido, ainda mais para uma sociedade consumista e individual, a experiência entre as pessoas se desnuda como a única razão incompreendida. Falamos aqui, sim, daquela felicidade que muitos chamam de utopia, porque ninguém parece ser capaz de alcançá-la durante a própria existência.

Para a experiência de uma vida ser completa, não podemos aceitar as concessões que nos corrompem, mesmo que numa escala diminuta. Erros podem ser pormenorizados somente em caso de uma dívida para com o perdão. Nesses momentos, os pedidos são atendidos sem julgamentos ou falsas argumentações. Esta aproximação com a realidade possível é, também, um passo essencial em direção à felicidade diária. Daí teremos que problemas serão unicamente problemas – nem bons ou trágicos, nem grandes ou miúdos, nem importantes ou irrelevantes. Resolvidos ou não, seguimos adiante com a certeza de antes: desejos têm de valer a pena.

Para este Natal, não ouso fazer desejos pessoais porque me parece irracional olhar para si mesmo como unidade. Mas também não cairei naquela vaga noção de amar a humanidade sem entender o significado dessa ousadia. Desejo, sim, que os desejos ganhem a forma do tempo, desmentindo as profecias em favor de uma causa muito, mas muito maior.

> Crônica publicada no Jornal Notícias do Dia em 24/12/2015.