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Crônicas de Evandro Duarte

~ Textos sobre o universo ao meu redor.

Crônicas de Evandro Duarte

Arquivos da Tag: Tempo

Stromboli (1950), de Roberto Rossellini

02 quinta-feira abr 2020

Posted by Evandro Duarte in Filmes

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Cinema, Fé, Filmes, História, Ingrid Bergman, Natureza, Roberto Rossellini, Stromboli, Tempo


Soerguido pela força da natureza, o cinema de Roberto Rossellini flui como a lava de um vulcão que cria e destrói com a mesma equivalência. Essa capacidade de controle, e da falta deste, desnuda-se por todos os seus filmes, mas ganha especial significado neste Stromboli (1950).

Em Stromboli, ilha e filme, todos querem o controle de suas vidas – e também das vidas alheias. Iludidas, as personagens esquecem que não têm autoridade sobre o tempo. E, aqui, o tempo se apresenta sob muitos feitios: tempo-natureza, tempo-história, tempo-fé. Qual seja sua representação, o tempo de Karin (Ingrid Bergman, uma força da natureza) será uma provação de fé – nada mais apropriado a um dos principais diretores católicos do cinema europeu.

O tempo-natureza envolve a todos na constante preocupação daquele que é o mais ativo vulcão da Europa. O medo da morte converge ainda mais ao tempo-natureza porque o julgamento final daqueles pobres ilhéus pode vir de um inferno vermelho em forma de lava. Já o tempo-história é absorvido pelo livre-arbítrio de muitas individualidades, a começar pela ex-refugiada Karin, uma lituana que desconhece o funcionamento das fronteiras ao final da Segunda Grande Guerra. E o tempo-fé não esconde sua falta de perspectiva seja na condescendência de um padre-administrador ou quando Karin guarda as imagens santas na casa de seu marido e pinta flores na parede da sala – a natureza, novamente.

Os tempos se misturam e ganham cada vez mais dramaticidade na sequência das cenas: temos Karin flertando com um conhecido na praia, o marido sendo insultado nas ruas, a imagens santas voltando para os locais de origem, o olhar de censura dos fiéis na igreja, a pesca sanguinária numa outra tentativa de controlar a natureza, Karin revelando que está grávida e, claro, a explosão do vulcão no mesmo momento em que ela acende o fogo em sua casa. Em resumo, Karin e a ilha são duas faces de um mesmo poder desconhecido.

Stromboli, situada ao norte da costa siciliana, é um nome de origem grega que batizou a ilha devido ao seu formato inchado e redondo. Para Rossellini, Stromboli não é a ilha, mas sim a mulher grávida – ou, também, o princípio do tempo para todos os mortais.

Na busca por algum controle, Karin foge e decide chegar ao outro lado da ilha subindo o poderoso vulcão. Extenuada pela natureza, só lhe resta compreender que a fé consiste em enxergar aos outros muito mais do que a si mesma; “Eles são horríveis. Tudo era tão horrível. Eles não sabem o que fazem”, diz para si repetindo as palavras do Cristo crucificado, enquanto vê ao seu redor o mistério e a beleza daquele universo natural.

ingriboli

Nostalgia (1983), de Andrei Tarkovsky

01 quinta-feira ago 2019

Posted by Evandro Duarte in Filmes

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A Tempestade, Andrei Tarkovsky, Assim falou Zaratustra, Cinema, Filmes, Friedrich Nietzsche, Nostalgia, Tempo, William Shakespeare


Imagine-se a começar as obras de Friedrich Nietzsche por Assim falou Zaratustra, quando o autor revê sua vida e obra de forma a consumi-la uma segunda vez, tendo já ligação íntima para com a mesma – coisa que jamais outro alguém terá. Algo semelhante ocorre ao assistir Nostalgia (1983), de Andrei Tarkovsky, sem ter contato com suas obras anteriores. Mesmo para quem desconhece os trabalhos de Tarkovsky, fica claro que se trata de uma obra autoral em tom de fechamento, uma espécie de A Tempestade de William Shakespeare no sentido em que autor e obras confundem-se como jamais dantes em seus trabalhos. Em Nostalgia, a aproximação não acontece de maneira fácil ou imediata. Como os bons livros sempre a reler, esta obra necessita de reinterpretação a cada nova sessão. Com seus planos longos e uma verbalização que confunde o rebuscado com o banal, a película se opõe a deixar frestas quando coloca suas personagens quais joguetes de um destino sem sentido. A priori, Nostalgia é uma colcha de sentidos (sonoros, visuais, imaginativos) que discute a essência da vida como metáfora da arte – e vice-versa. Neste cinema, o mosaico do tempo se dilata por um caminho árduo; a vela deve se manter acesa do início ao fim.

nostalgicalidade

Duas novelas de Harry Laus

23 quinta-feira ago 2018

Posted by Evandro Duarte in Livros

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As Horas de Zenão das Chagas, Harry Laus, Literatura, Literatura Catarinense, Livros, O Santo Mágico, Tempo


Quando um santo mágico aparece na praia ou quando um típico funcionário procura a verdade em relógios idênticos, Harry Laus (1922-1992) nos faz lembrar que há um sentimento de ausência que permeia todas as histórias humanas. Como o autor escreveu no dia 1 de Fevereiro de 1952 em suas Impressões de Vida (Bernúncia, 1998), “creio que chegará um ponto em que, à força de iludir e me iludir, não mais saberei quando estou sendo sincero”. Em suas novelas essa impressão aparenta ser ainda maior tanto pelo desenvolvimento das personagens quanto pela condensação do espaço-tempo.

As obras O Santo Mágico e As Horas de Zenão das Chagas, novelas cujas edições publicadas na década de 1980 serviram para a realização deste texto, não apenas exemplificam esses argumentos como também elevam à máxima potência um gênero literário que fica na crítica fronteira entre a primazia do romance e o caráter conciso do conto. À literatura, convenhamos, não apetece o título de ciência exata.

Em sua incursão novelística quando o autor estava em Porto Belo, Harry Laus colocou personagens e lugares com esmerada descrição para contar o curioso caso de uma aparição na praia da cidade conhecida como O Santo Mágico (Edição do Autor, 1982). Já de início somos apresentados às personagens cujo destino em comum possui ligação com o misterioso clarão azulado que parece ter uma auréola sobre si. A fé talvez seja o questionamento central daquelas figuras literárias, como o pescador Luca (o primeiro a ver o fenômeno), o padre Anatole que se veste de maneira muito peculiar quando se encontra sozinho e o jovem Altair que encontrou a felicidade em Porto Belo junto a mulher e ao filho. E todos acabam por questionar suas próprias verdades mesmo que não se dêem conta disso.

Publicada originalmente em 1957 no suplemento dominical do Jornal do Brasil, As Horas de Zenão das Chagas (Mercado Aberto, 1987), delimita a narrativa num espaço urbano, ainda que sua paisagem seja retratada sutilmente, mantendo essa insatisfação de uma vida semi-completa, tema tão caro aos mestres da escrita; do amor não-correspondido de Dante em Vida Nova às negativas finais da personagem-título de Machado de Assis em Memórias Póstumas de Brás Cubas. O desprendimento da realidade de Zenão é algo tão natural quanto os seus entediantes dias: “O desleixo em que mantém o quarto talvez resulte de certo comodismo que, de forma precária, substitui o conforto que não pode desfrutar”. A história de Zenão situa-se numa região indefinida entre a parábola do cotidiano e a própria vida ordinária com a qual a maioria dos mortais se relaciona sem se dar conta. A personagem traz a inconformidade já em seu nome: O “Zé” que “não” é, ou mesmo aquele que não passa nem mesmo por homem comum. Não obstante, ainda há o sobrenome cujos sinônimos denotam extremo dissabor.

Temos, pois, histórias talhadas em madeira de lei, ainda que com estilos diferentes que as naturezas dos enredos acabam por exigir. O Santo Mágico é uma história que se abre, larva que aos poucos se transforma em borboleta. Já As Horas de Zenão das Chagas é quase como um elevador que se fecha ante os olhares claustrofóbicos do leitor; uma história sobre o tempo passada em época indefinida. Borboleta ou elevador, as novelas de Laus irrefreavelmente sobem, com destino certo às alturas dos melhores prosadores brasileiros.

horasmagicas

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Planos e regras

16 quinta-feira nov 2017

Posted by Evandro Duarte in Ideias Imperfeitas

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Planos, Regras, Tempo, Vida


Fazer planos quase lembra seguir regras. Pelo menos, quando do contexto. Planos, porém, têm uma data de validade mais curta, mesmo os feitos a longo prazo. A dificuldade maior de um plano não é outra coisa que a própria vida; esse estranho percurso no qual se desenrola a existência. Alguns de meus amigos diziam que jamais teriam filhos do próprio sangue e que adotariam se a paternidade viesse bater à porta feito vontade indômita. Qual o quê! Acabaram sendo pais antes dos quarenta anos pela boa e velha reprodução natural. A vida interveio e os planos mudaram. E são grandes pais, por sinal. Entre um plano e outro, há alguma metodologia que nos escapa porque diz respeito ao entusiasmo de determinados momentos. Por isso, fica tão difícil poupar. Por isso, as viagens são adiadas. Por isso, o espermatozoide fecunda o óvulo. Regras tendem a perdurar até que sejam ultrapassadas. Planos se sustentam enquanto não há atrito e o movimento prossegue concomitante ao sorriso no rosto. Às vezes, tudo muda. Às vezes, não. Um mistério simples que o mais sábio dos sábios ainda não conseguiu desvendar.

Em tempo

18 quinta-feira maio 2017

Posted by Evandro Duarte in Ideias Imperfeitas

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Conhecimento, Existência, Futuro, Máquina do Tempo, Passado, Presente, Tempo, Viagem no Tempo


Creio que não exista pessoa que nunca quis viajar no tempo, principalmente para o passado. Aquele desejo de consertar as coisas ou conviver novamente com figuras que já partiram faz parte desta mistura entre ficção científica e nostalgia. A ciência nos leva a acreditar que, quanto mais o tempo passa, mais estamos perto de dobrar o tempo à nossa vontade. E isso parece sobremaneira injusto com quem veio antes.

Todo mundo deveria ter uma cota de viagens no tempo. Poderíamos viajar uma vez aos trinta anos e outra aos sessenta, por exemplo. Assim, ajeitaríamos aquelas coisinhas que ficaram não ditas pelo medo de não dar certo. Hoje, porém, sabemos o resultado. Compreendemos que muito do que fizemos ou deixamos de fazer teve implicações questionáveis, ainda que importantes. Olhar para trás é buscar o entendimento: o texto só faz sentido depois de lido.

A ideia de uma máquina do tempo soa fascinante, mas principalmente excludente. É preciso tempo (claro!), dinheiro, uma boa dose de loucura e outra de conhecimento científico para elaborar tamanha empreitada. Além do mais, o criador de uma máquina assim certamente a trataria com egoísmo justamente por participar de um poder que, em princípio, só caberia a uma divindade. Quem rala para colocar a comida na mesa no dia seguinte jamais teria tempo para bolar algo tão mirabolante e, quando muito, ficaria sabendo disso apenas pelos jornais.

Sob um aspecto bem orgânico, a viagem no tempo é a própria existência. Estamos permanentemente presos ao presente, em contato direto com tudo o que veio antes e caminhando com o momento seguinte. E se não ficamos satisfeitos com tal odisseia, é porque aprendemos a carregar o mistério qual uma mochila que há muito deixou de incomodar as costas. O insucesso da onipotência é parte da graça, quer seja para o soberano, quer seja para o bobo da corte.

Entrementes, viajar no tempo é uma máscara para lidar com o conhecimento adquirido. De nada adiantaria ir ao passado sem carregar na bagagem toda a nossa experiência até aqui. Se assim o fizéssemos, cometeríamos os mesmos erros e acertos porque não se pode alterar aquilo que jamais foi.

Eu sei exatamente para quando voltaria. E você?

> Crônica publicada no jornal Notícias do Dia em 18/05/2017.

O ser literário

11 quinta-feira maio 2017

Posted by Evandro Duarte in Ideias Imperfeitas

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Artes, Crônicas, Futuro, Imortal, Literatura, Palavras, Tempo


Disse, nas duas ou três vezes que me perguntaram, que literatura é tudo aquilo que está escrito. Claro, alguns dirão que tamanha isenção ou tão abrangente definição de pouco adianta para fins práticos. A estes, então, cabe toda a liberdade de escolha para pôr as coisas sob suas óticas particulares. Pois se não temos um acordo sob a ortografia que dirá sob uma forma de arte tão singular quanto a literatura?

Dito isto, podemos nos concentrar naquilo que nos apetece: as palavras. Pensamos por meio delas e, ainda assim, não lhes damos o devido valor. A etimologia mais profunda chegará num abismo infinito que atenderá pela dupla alcunha Necessidade-Criatividade. Penso que não existem raízes mais resistentes em quaisquer formas de arte ou comunicação. A Necessidade da palavra – que nasce sonora antes de ser escrita – supre uma condição inerente ao homem de ir além do mundo ao seu redor. Já a Criatividade que lhe acompanha é a explicação de si mesma; imaginamos sua origem a partir de nossa própria mente criativa; talvez seja Deus, talvez seja a ciência, talvez seja outra coisa – e este é um mistério para o qual, de certo modo, estamos preparados.

A palavra escrita e a literatura são entidades que tendem a flertar com uma ideia de imortalidade. Permitimo-nos imaginar um mundo sem nós quando deixamos versos, fatos e versões nalgumas páginas, quer sejam de papel ou não. Escrever é acreditar que o passado fará diferença no futuro. Em verdade, praticamente ninguém escreve para ser lido no mesmo instante. É até meio chato quando alguém fica sob o seu ombro conferindo cada nova letra que surge para complementar a anterior. Assim, o mais exibido dos autores ficará inibido porque a literatura nasceu para ser uma prática solitária, diferentemente do cinema, da música, da pintura…

Imortais ou não, continuamos a escrever. Eu aqui em 2017 e você que agora me lê no século XXII estaremos ligados até o final desta crônica, mesmo que nunca tenhamos nos esbarrado pelo tempo. De qualquer modo, a veia artística da literatura tem muito mais a ver em fazer perguntas do que entregar respostas insatisfatórias. A literatura é sobre ser. É ou não é?

> Crônica publicada no jornal Notícias do Dia em 11/05/2017.

Depois do Carnaval

11 quinta-feira fev 2016

Posted by Evandro Duarte in Ideias Imperfeitas

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Calendário, Carnaval, Culpa, Expectativas, Responsabilidade, Tempo, Vida


As expectativas tratam das pessoas que as têm. Nem mais, nem menos. O conteúdo, neste caso, é a forma. E passado o Carnaval, fazemos dessas perspectivas de opinião o eixo das atenções, principalmente na esfera das relações públicas, na qual existe uma série de códigos e posturas que precisam fazer sentido – pelo menos no conjunto das aparências.

Pós-Carnaval, vive-se da desconfiança dos dias vindouros. Uns desconfiam positivamente; outros guardam o dinheiro no colchão. Mas todos se relacionam como se tudo dependesse de decisões tomadas por terceiros. “Se ele fizer isso, será melhor” ou “Tomara que ela mude as coisas de uma vez por todas” são caminhos que alguém haverá de tomar, mas nunca quem sentencia tais assertivas. Às vezes, culpam o governo. Noutras, o povo. E de tanto falar em culpa, não assumem responsabilidades que lhes são de direito e de origem.

Os otimistas esperam sempre que os ânimos se compadeçam e tudo volte a ser como antes – ah, aqueles tempos nostálgicos quando o mundo era tão menos complicado. Já os pessimistas perdem suas tardes reclamando das notícias com alguma satisfação ao dizerem “nós bem que avisamos”. Entretanto, estes ou aqueles não estão imunes à própria inércia que lhes move, contraditoriamente, para o mesmo lugar.

Quando as engrenagens sociais não estão bem azeitadas, a máquina sucumbe à paixão por si mesma. Há os que chamam isso de status quo, mas é só tosquice mesmo. Catalogar os humanos não faz o menor sentido quando a natureza define situações que fogem ao controle de nossa espécie. Ou, por acaso, alguém pensa que os vírus, as bactérias e seus comparsas estão preocupados com pobres ou bilionários, com plebeus ou consanguíneos da família real, com religiosos ou ateus…? Um corpo é só um corpo, até que se prove o contrário. Carne e água e ossos e mais umas outras coisas unidas ao pensamento. Mas a dengue ou a aids ou a zika não escolhem seus portadores dependendo do grau de instrução e tampouco estão interessadas se estes são analfabetos ou formados numa universidade pública. As desigualdades de uma sociedade só servem de desculpa para evitar o inevitável: uma expectativa que nunca se cumprirá.

Tanto faz estabelecer o Carnaval para marcar um recomeço. A vida não cabe num calendário, tanto como as expectativas não significam nada para quem escolhe não tomar partido. A decisão dos outros é proporcional à indecisão de si mesmo. A ressaca (ou a falta desta) é sempre mais significativa e perene do que a festa, independente da fantasia.

> Crônica publicada no Jornal Notícias do Dia em 11/02/2016.

Desejo de Natal

24 quinta-feira dez 2015

Posted by Evandro Duarte in Ideias Imperfeitas

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Desejos, Existência, Humanidade, Natal, Presente, Tempo


Alguma conveniência há quando dos desejos de Natal. Que qualquer alma pode sonhar com um presente que lhe realize, todos concordamos. Sonhar não custa e tampouco deve ser deixado de lado. A questão que coloco em pauta é a falta de sintonia destes desejos para com o dia a dia – porque é no cotidiano que as profecias se cumprem independentemente do tempo.

Presentes aparecem como soluções, quando são, na grande maioria das vezes, invenções de felicidade. Como aquelas pílulas que lhes permitem dormir. Imberbes, imaginam-se em possantes motos ou automóveis porque pode haver alegria no pedal de aceleração. Neófitas, esquecem dos dissabores que se lhes acompanha na adolescência e logo querem responder por sua independência financeira e emocional. Em ambos os casos, uma realidade paralela faz parte de desejos que se locupletam apenas em certa medida. Aquele distanciamento de um viver com os outros ainda existe, apesar da materialidade dizer o contrário.

Um desejo de Natal tem muitas origens. Alguns nascem por necessidade; Outros, por vaidade. Mas os que realmente causam desconforto são aqueles que não correspondem à intimidade da troca – esse ir e vir de ideias, sentimentos e descobertas que faz de um humano aquilo que ele escolheu ser. Mesmo que pareça sem sentido, ainda mais para uma sociedade consumista e individual, a experiência entre as pessoas se desnuda como a única razão incompreendida. Falamos aqui, sim, daquela felicidade que muitos chamam de utopia, porque ninguém parece ser capaz de alcançá-la durante a própria existência.

Para a experiência de uma vida ser completa, não podemos aceitar as concessões que nos corrompem, mesmo que numa escala diminuta. Erros podem ser pormenorizados somente em caso de uma dívida para com o perdão. Nesses momentos, os pedidos são atendidos sem julgamentos ou falsas argumentações. Esta aproximação com a realidade possível é, também, um passo essencial em direção à felicidade diária. Daí teremos que problemas serão unicamente problemas – nem bons ou trágicos, nem grandes ou miúdos, nem importantes ou irrelevantes. Resolvidos ou não, seguimos adiante com a certeza de antes: desejos têm de valer a pena.

Para este Natal, não ouso fazer desejos pessoais porque me parece irracional olhar para si mesmo como unidade. Mas também não cairei naquela vaga noção de amar a humanidade sem entender o significado dessa ousadia. Desejo, sim, que os desejos ganhem a forma do tempo, desmentindo as profecias em favor de uma causa muito, mas muito maior.

> Crônica publicada no Jornal Notícias do Dia em 24/12/2015.

Chove esta noite

05 quinta-feira nov 2015

Posted by Evandro Duarte in Ideias Imperfeitas

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Big Bang, Chuva, Clima, Darwin, Natureza, Tempo


De alguma forma pouco evidente, outra grande contribuição de Darwin ao nosso entendimento das coisas foi a seguinte: não adianta ir contra a natureza. Por mais que se esforce para dominar essa diva soberana que deixa qualquer estrela de Hollywood no chinelo, o resultado é efêmero. Suspiramos.

A chuva, por exemplo, faz por merecer a fama que tem. Quando escassa, todos sentem falta de qualquer pingo para encher açudes ou reservatórios. Quando em demasia, todos reclamam de sua inconveniente obstinação ao encobrir o sol e adiar os programas ao ar livre. E nem mesmo adianta ver a chuva poeticamente, como as lágrimas de deus ou aquele excesso que vaza da banheira dos anjos desastrados. Chove esta noite, e convém apenas a conformação.

De um tempo para cá, foi muito propício colocar a culpa dos desastres naturais e mudanças climáticas no acontecimento global. E isso tem sua razão. Mas não nos enganemos quanto ao poder original da natureza. Olhemos, particularmente, para o passado da Terra. Não foi preciso nenhum ser humano poluindo os rios ou esburacando a camada de ozônio para que aqueles simpáticos gigantes monstruosos chamados dinossauros viessem a sucumbir ante o peso do ambiente. Mesmo aquele asteroide que lhes custou o início dessa derrocada foi tão natural porque previsível e surpreendente: afinal, essa vida que aí está também é poeira de estrelas.

Por outro lado, a gente racionaliza demais, mesmo em situações tão triviais quanto a chuva. Percebemo-la qual um agente transitório, porque vai e vem quando lhe dá na telha. Mas a transitoriedade é só o que existe na natureza. A reciclagem é um princípio do universo quase tão fundamental que explicaria até o Big Bang se tivéssemos uma testemunha ocular daquele acontecimento. Chove esta noite, e os poetas podem compor canções molhadas, enquanto as galáxias se reciclam. Respirem fundo.

Mas a pergunta principal ainda permanece sem resposta: O que fazer nestes dias chuvosos? Deitar-se no quarto com as cortinas fechadas enquanto os pingos marcam seu próprio ritmo na janela não é a solução universal. Bang. Para os que querem crer nestas palavras crônicas, não deixo respostas porque prefiro os questionamentos. De que adianta saber o que fazer se você não estiver inspirado em como fazer?

Chove esta noite, e ganhamos outra chance de nos colocarmos em nossos devidos lugares. Não estamos acima ou abaixo da natureza, ainda que as chuvas nos cubram e o sol nos queime. Somos outro pingo do enredo darwinista. E chovemos juntos.

> Crônica publicada no Jornal Notícias do Dia em 05/11/2015.

Sobre tudo

13 quinta-feira ago 2015

Posted by Evandro Duarte in Florianópolis, Ideias Imperfeitas

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Amsterdã, Época, Nova Iorque, Paris, Tempo, Teoria de Tudo


Encontraram-se em Paris. Não, foi em Nova Iorque. Talvez Amsterdã? Mais provável que tenha sido em Florianópolis mesmo, num lugar bem comum. Um shopping. Nada disso: uma típica padaria. O mês do encontro poderia ser junho ou julho. Fiquemos, pois, com agosto. Um dia de sol, mas chovia bastante. Garoava apenas. Ele de terno; ela de vestido. Ele de bermuda e manga curta; ela com uma roupa tão curta que o autor fica indeciso entre um short ou uma minissaia. Encararam-se, enfim.

– Muito quente para esta época do ano, não acha?; ela abriu a conversação.

– Acho; ele disse engolindo rápido o pão de queijo e quase se engasgando. – E tenho até uma teoria do sobretudo.

– Uma teoria sobre tudo?

– Não, não. Uma teoria do so-bre-tu-do; falou destacando as sílabas para mostrar que era apenas uma palavra. – Aquele casaco comprido, sabe? O sobretudo é algo que praticamente não vemos mais por aí. Antigamente, todo mundo andava com um. Hoje em dia, conheço dezenas de pessoas que sequer compraram um sobretudo nos últimos dez ou quinze anos. E, mesmo quem os usa atualmente, prefere sempre um modelo mais estiloso, tão fininho que esquentar é um elemento quase dispensável.

– E o que mais sua teoria aponta?; ela questionou, atenta aos gestos que ele fazia com as mãos, quase desenhando a teoria no ar.

– Não sei bem certo. Mas pode apontar uma mudança na moda, como foi com o fim do uso dos chapéus nas grandes cidades, por exemplo. Se bem que pode indicar também o fim da civilização como a conhecemos. Ainda preciso de mais tempo para preencher as lacunas; ele disse como se vislumbrasse a quantidade de trabalho que teria pela frente.

– Se for o fim da civilização, espero que sua teoria ainda demore bastante para ser comprovada.

– Não será neste inverno, isso eu posso garantir.

Riram. Trocaram despedidas e combinaram um novo bate papo para a semana seguinte.

Desta vez, ela estava de calça jeans. O vento sul viera com tudo e pegara ambos desprevenidos. Na frente da padaria, ele levantou seu paletó para protegê-la dos papéis e da sujeira que voavam pela rua. Entraram e foram se sentar na mesma mesa em que conversaram da outra vez, mas estava ocupada por um sujeito que lia um livro tão antigo quanto sua aparência. Era um sujeito fora de sua época, como se tivesse existido entre os séculos quinze e dezenove. Não dava para distinguir.

– Pena que a mesa estava ocupa…; ele começou a falar quando foi interrompido por ela.

– Você viu o livro que aquele homem estava lendo? O título era “Teoria sobre tudo”. Acho que você deveria falar com ele…

Mas o sujeito já tinha ido embora.

Pediram um café e foi só então que ela contou que trabalhava como meteorologista. Depois, casaram-se. E estão planejando uma viagem para Nova Iorque. Ou Paris. Talvez Amsterdã?…

> Crônica publicada no Jornal Notícias do Dia em 13/08/2015.

Perfil

Jornalista. Escritor. Leitor. Espectador. Algumas passagens da minha trajetória: Em 1998, fui Diretor de Imprensa do grêmio estudantil da Escola Técnica Federal de Santa Catarina (Florianópolis/SC). Entre 2001 e 2005, editei o fanzine JornalSIN na UNISUL (Palhoça/SC). No mesmo período, editei a seção de Literatura do portal cultural SARCÁSTICOcomBR (Florianópolis/SC). Nos anos de 2002, 2003, 2005 e 2010, realizei a cobertura crítica do Fórum Social Mundial (em Porto Alegre/RS) para o site SARCÁSTICOcomBR. Em 2002, atuei como cronista de cinema e editor de Cultura do Jornal Mercosul (Florianópolis/SC). Em 2004, publiquei de modo independente o livro "Caderno Amarelo de Poesias". Entre 2005 e 2006, atuei na área de assessoria de imprensa na Exato Segundo Produções (Florianópolis/SC). Em 2008, fui um dos vencedores do 6º Concurso Literário Conto e Poesia realizado pelo Sinergia - com a poesia "Nova Iorque em Vermelho". Em 2011, fui um dos vencedores do 7º Concurso Literário Conto e Poesia realizado pelo Sinergia - com a poesia "Soldado sem sentido" e com o conto "Velhos corações imaturos". Em 2012, apresentei o Programa Geral e o Ponto de Encontro no canal fechado TVN (São José/SC). Entre 2013 e 2015, fui editor-chefe do Jornal Independente (Biguaçu/SC). De 30/04/2009 a 10/08/2017, escrevi crônicas semanais para o jornal Notícias do Dia (Florianópolis/SC). Desde 2016, sou um dos editores e cronistas do Centopeia Site. Também produzo e apresento programas para o canal Centopeia TV no YouTube e para o podcast Centopeia Falante no Spotify. Publico semanalmente no blog Crônicas do Evandro e atualizo ocasionalmente o perfil do Instagram @cronicasdoevandro.

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