O que não pode ser


Reitero que desaprendo com facilidade o que pouco ou nada me interessa. Ajeito os óculos e a atenção se esvai. Esquecimento e condições materiais. Um cobertor curto!, proclamou o arauto de sua majestade o Tempo. Este clima ameno favorece ao esmorecimento das ideias titubeantes. Vai por lá, volta, ou fica parada. Sem pressa de checar o itinerário. Já passou da hora de estudar o que não pode ser. Venha comigo nesta fascinante jornada existencial, com pontos de parada niilistas e uma capitã desatenta sob o signo de peixes. Ela reconta e conta os passageiros mais de uma vez, e sempre termina com um total diferente. Eu e você, por outro lado, fomos em busca de diversão e autocontrole. Mantenho vivo o sonho de manusear com destreza um sextante. Mais um item na lista de afazeres por desaprender. Esta malvada curiosidade nasceu comigo sob o signo de escorpião. Fogo ardente: paixão febril pelo vir-a-ser. Sou o ser-em-si abastecido de vazios e outros poréns. Eu perdi a chance de não existir, mas ainda poderei desaprender.

Se eu quisesse ser outro


A julgar pelo encaminhamento dos episódios que me circundam, jamais saberei as vantagens e as desvantagens de não ser eu. Esta vida é tudo o que tenho até agora. E é muito, é pouco, é bastante, é quase nada… tão longe feito a perfeição um dia aparecesse em minha frente – e não ficasse dúvida alguma quanto à sobrevivência do absoluto num universo de improbabilidades. Sob quaisquer aspectos, quais as chances de existir vida? Tamanha vastidão para um tempo de existência sobremaneira exíguo. Quando o mundo gira por completo, encontro-me – sem me reconhecer, como antes. Durante e depois, respectivamente, dou comigo mesmo e com meu duplo, ambos situados nesta miséria primordial ensimesmada pela realidade. Eu sei, eu sei: soa ligeiramente pessimista. Peço desculpas aos incomodados. Quem não teve, ao menos vez por outra, nuanças derrotistas? A solidão e o desespero de ser um só e apenas um. Quem me escolher terá de se conformar com esta decisão – muito antes do meu nascimento já havia a regra do inevitável uno. Continuo sendo aquilo que me coube; nos cantos, participo de uma aventura muito maior do que a minha própria história insinua. Já terei partido quando não me darei por mim.

Antes e sempre


Os fatos se reduzem nas interpretações, ainda que não se apequenem. Numa interpretação de fé, o tal diagnóstico sucumbe ao próprio mistério das forças sobrenaturais que regem a ordem soberana. Metafísico e meta-humano, talvez até mesmo longe demais de quaisquer compreensões lógicas ou ideológicas. Um exemplo: a tautologia na onipotência e na onisciência de deus é axiológica, o que não diminui o grau de espanto antropocêntrico em relação à existência da maldade. E não cabe aqui uma simplificação de tipos, como os vilões ou mesmo aquele lobo do homem chamado homem. Pouco importa, neste caso, que o mal ocupe um lugar de destaque pelas possibilidades dos descaminhos (ou o distanciamento do homem para com deus). O conhecimento destes princípios e destes fins forja o desespero qual condição circundante à experiência. A narrativa inevitável de que o pecado também residia nos jardins do paraíso. Cobras venenosas, ervas daninhas, maçãs podres, vontades que confundem corpo e alma. Física e metafísica; liberdade total não raro se transforma em prisão. Para a matéria, porém, lugares fechados não passam de abstrações. Supondo que esta interpretação faça sentido, a criação de deus ou a permanência de sua eternidade jogam para outro plano o debate sobre a eventualidade de um ANTES – e nem mesmo se faz necessário rememorar a questão demasiada humana bem como ulterior entre o ovo e a galinha. Eis o axioma que nos persegue do nascer do sol à derradeira despedida das sensações corpóreas. Carregar este mistério seria um fardo pesado demais para deus?

O absoluto na palavra escrita


A palavra escrita é ou não é a versão de outra coisa porque traz a verdade em si mesma; pouco ou nada importa a correspondência (ainda que vaga) aos fatos – isto a que chamam de uma história vivida, uma experiência da realidade no contemporâneo. O tom que a palavra escrita admite para si tem a ver com a tentativa de alcançar o absoluto. Eis a reconstrução da eternidade incontida, vide verso e reverso. Há ainda a relação entre extremos, um ocaso nascido do conflito. Quaisquer notas pacíficas anulam as origens físicas e metafísicas da palavra escrita. Não deixa de ser também a viabilidade de fuga para a memória: a inclusão de todos os tempos na participação do espaço literário. Um fim para os meios disponíveis ou indispostos. Mais do que uma especulação razoável sob e sobre a existência. A palavra escrita jamais se ausenta quando não existem outras opções em disputa.

Surfista Prateado: Parábola (1988), de Stan Lee e Moebius


Assim como Stan Lee, não acredito em heróis perfeitos. A antiguidade clássica nos ensina sobre a falibilidade dos mitos; porque, sob nosso ponto de vista, não existe outra narrativa que não a humana. O cosmo pode até estar aí desde sempre, mas é nossa presença nele que desperta essa coisa chamada história. Por excelência, Stan Lee era um contador de histórias. Com drama, intuição e objetividade, criou personagens que se parecem com a gente mesmo, mas a quem coisas inacreditáveis aconteceram… como ser picado por uma aranha radioativa ou ser atingido por raios gama. A genialidade, no entanto, não está no absurdo das tramas, e sim na relação pessoal para com estes desafios surpreendentes. A vida, por si só, é esta coisa sem explicação, com tantos sentidos possíveis que fazem o destino nos escapar das mãos. As grandes histórias em quadrinhos partem dessa perplexidade existencial – e o Surfista Prateado (concebido por Jack Kirby, outro mestre da nona arte, e desenvolvido dramaticamente por Lee) talvez seja um dos maiores veículos para discutir quem somos e para onde vamos. Além disso, pasmem!, ele surfa no ar. Quando Stan Lee e o também genial ilustrador francês Moebius se reuniram para produzir uma graphic novel, pareceu inevitável que um fenômeno singular na arte contemporânea despontasse no final da década de 1980. Surfista Prateado: Parábola é menos a propósito de escolhas e mais sobre consequências. O poder (mimetizado por Galactus) e sua fascinação inerente contam a história humana do passado ao futuro. O olhar decepcionado do Surfista para com as pessoas talvez seja o resultado de sua vida solitária, ainda que urdido na miséria de nossa espécie. E ninguém escapa dessa parábola.

> Surfista Prateado: Parábola. Texto de Stan Lee, arte de Moebius, cores de Mark Chiarello e John Wellington. Abril Jovem, 1989.

stanlee

> Siga também o Instagram:
instagram.com/cronicasdoevandro

Em tempo


Creio que não exista pessoa que nunca quis viajar no tempo, principalmente para o passado. Aquele desejo de consertar as coisas ou conviver novamente com figuras que já partiram faz parte desta mistura entre ficção científica e nostalgia. A ciência nos leva a acreditar que, quanto mais o tempo passa, mais estamos perto de dobrar o tempo à nossa vontade. E isso parece sobremaneira injusto com quem veio antes.

Todo mundo deveria ter uma cota de viagens no tempo. Poderíamos viajar uma vez aos trinta anos e outra aos sessenta, por exemplo. Assim, ajeitaríamos aquelas coisinhas que ficaram não ditas pelo medo de não dar certo. Hoje, porém, sabemos o resultado. Compreendemos que muito do que fizemos ou deixamos de fazer teve implicações questionáveis, ainda que importantes. Olhar para trás é buscar o entendimento: o texto só faz sentido depois de lido.

A ideia de uma máquina do tempo soa fascinante, mas principalmente excludente. É preciso tempo (claro!), dinheiro, uma boa dose de loucura e outra de conhecimento científico para elaborar tamanha empreitada. Além do mais, o criador de uma máquina assim certamente a trataria com egoísmo justamente por participar de um poder que, em princípio, só caberia a uma divindade. Quem rala para colocar a comida na mesa no dia seguinte jamais teria tempo para bolar algo tão mirabolante e, quando muito, ficaria sabendo disso apenas pelos jornais.

Sob um aspecto bem orgânico, a viagem no tempo é a própria existência. Estamos permanentemente presos ao presente, em contato direto com tudo o que veio antes e caminhando com o momento seguinte. E se não ficamos satisfeitos com tal odisseia, é porque aprendemos a carregar o mistério qual uma mochila que há muito deixou de incomodar as costas. O insucesso da onipotência é parte da graça, quer seja para o soberano, quer seja para o bobo da corte.

Entrementes, viajar no tempo é uma máscara para lidar com o conhecimento adquirido. De nada adiantaria ir ao passado sem carregar na bagagem toda a nossa experiência até aqui. Se assim o fizéssemos, cometeríamos os mesmos erros e acertos porque não se pode alterar aquilo que jamais foi.

Eu sei exatamente para quando voltaria. E você?

> Crônica publicada no jornal Notícias do Dia em 18/05/2017.

O primeiro suspiro


Há por aí uma sensação incômoda, como se tudo fosse oito ou oitenta, como se luz e trevas fossem caminhos únicos e distintos. Bobagem pura que qualquer criança destrói qual uma torre de cartas. Pior ainda é crer num mundo à direita ou à esquerda, mesmo sem ter qualquer compreensão do que tais posicionamentos significam na prática.

O que acontece em grande medida é um esforço demasiado pela picuinha. Quem se atém a não-valores comezinhos perde um tempo precioso num universo irresoluto. Sem se dar conta, muitos insistem na tristeza movidos por uma incapacidade (e falta de incentivo, saliente-se) de verificar o plano geral da própria vida – não a vida de cada um, mas a existência em si, o porquê filosófico de estarmos aqui nesse mundo passando calor ou frio, suando a camisa com uma sabedoria sempre limitada e uma compulsão quase desenfreada pelo conflito, seja numa luta de classes ou na insensível busca pelo poder.

Chega mesmo a ser bobo esse sentimento de autossuficiência que alguns encontram quando estão num estágio melhor. É o rico que se dá por satisfeito quando não tem mais que se preocupar com dinheiro e se esquece do mundo. Ou o político saudado pelo povo, mas cujo coração de pedra deteriorou praticamente todas as suas relações pessoais. Para cada ação, uma reação. Cada vitória implica numa derrota. Escolher é perder a outra opção.

Essa visão de sucesso profissional construída sob a febre do american way of life afasta-nos de uma estrada muito mais feliz porque não condiciona as oportunidades ao trabalho. Logo, talvez estejamos errados em nossas expectativas para com o futuro distante. Transitamos por trabalhos, ideologias e outros subterfúgios da realidade porque acreditamos numa redenção vindoura; como se a aposentadoria nos trouxesse alguma paz, e a verve juvenil fizesse de nós uns nostálgicos de marca maior. Com a idade, aceitamos o destino de tudo porque nos pegamos impotentes ante o mundo. Uns se frustram, outros vão à praia – quando a aposentadoria permite, claro.

As trevas e a luz estão por aí desde o primeiro suspiro humano: aceitá-las como uma única força é um aprendizado que ainda não alcançamos. Mas temos tempo.

> Crônica publicada no jornal Notícias do Dia em 24/11/2016.

Desejo de Natal


Alguma conveniência há quando dos desejos de Natal. Que qualquer alma pode sonhar com um presente que lhe realize, todos concordamos. Sonhar não custa e tampouco deve ser deixado de lado. A questão que coloco em pauta é a falta de sintonia destes desejos para com o dia a dia – porque é no cotidiano que as profecias se cumprem independentemente do tempo.

Presentes aparecem como soluções, quando são, na grande maioria das vezes, invenções de felicidade. Como aquelas pílulas que lhes permitem dormir. Imberbes, imaginam-se em possantes motos ou automóveis porque pode haver alegria no pedal de aceleração. Neófitas, esquecem dos dissabores que se lhes acompanha na adolescência e logo querem responder por sua independência financeira e emocional. Em ambos os casos, uma realidade paralela faz parte de desejos que se locupletam apenas em certa medida. Aquele distanciamento de um viver com os outros ainda existe, apesar da materialidade dizer o contrário.

Um desejo de Natal tem muitas origens. Alguns nascem por necessidade; Outros, por vaidade. Mas os que realmente causam desconforto são aqueles que não correspondem à intimidade da troca – esse ir e vir de ideias, sentimentos e descobertas que faz de um humano aquilo que ele escolheu ser. Mesmo que pareça sem sentido, ainda mais para uma sociedade consumista e individual, a experiência entre as pessoas se desnuda como a única razão incompreendida. Falamos aqui, sim, daquela felicidade que muitos chamam de utopia, porque ninguém parece ser capaz de alcançá-la durante a própria existência.

Para a experiência de uma vida ser completa, não podemos aceitar as concessões que nos corrompem, mesmo que numa escala diminuta. Erros podem ser pormenorizados somente em caso de uma dívida para com o perdão. Nesses momentos, os pedidos são atendidos sem julgamentos ou falsas argumentações. Esta aproximação com a realidade possível é, também, um passo essencial em direção à felicidade diária. Daí teremos que problemas serão unicamente problemas – nem bons ou trágicos, nem grandes ou miúdos, nem importantes ou irrelevantes. Resolvidos ou não, seguimos adiante com a certeza de antes: desejos têm de valer a pena.

Para este Natal, não ouso fazer desejos pessoais porque me parece irracional olhar para si mesmo como unidade. Mas também não cairei naquela vaga noção de amar a humanidade sem entender o significado dessa ousadia. Desejo, sim, que os desejos ganhem a forma do tempo, desmentindo as profecias em favor de uma causa muito, mas muito maior.

> Crônica publicada no Jornal Notícias do Dia em 24/12/2015.

Nossas referências


Você e eu estamos ligados desde antes da existência. Não é só pela química de nossos elementos e tampouco pelo líquido vermelho que corre em direção ao nosso peito. Somos a mesma variação de uma espécie em permanente expansão. Uns são mais loucos; outros menos engraçados. Nenhum de nós precisa ser triste porque é, em si mesmo, uma conquista histórica da evolução. Incompletos por vocação.

Não estamos sozinhos nessa parte que nos cabe deste latifúndio. Encontramo-nos em erros, acertos e outras adivinhações quase tão infantis quanto o princípio de tudo. Um único voto que compartilhamos ainda está sem apuração, pois o consenso é um objetivo distante e tortuoso.

Eu e você não gostamos de traidores porque queremos confiar, ainda que as explicações gerem mais dúvidas do que consensos. Congregamos essa esperança alheia que nos mantêm tão próximos quanto a física permite. Indivíduos que somos, não vivemos sem os outros. Precisamos aprimorar nossa comunicação independente do telefone estar quebrado.

Nalgum momento de fraqueza, talvez um de nós acredite ser ligeiramente distinto, com uma vocação especial para alegar verdades únicas. Mas quando respiramos fundo, no cantinho da sala, sossegados, a luz acende. Para alguns, é uma revelação. Já para outros, dura apenas milésimos de segundo. Você sabe tanto quanto eu que só buscamos uma interpretação que nos permita superar a noção trivial do universo e de tudo o mais. Essas algumas incertezas acariciam nosso coração que bate em uníssono.

Você e eu nunca seremos bastante, ainda mais quando padecemos das mesmas doenças e virtudes. Tossimos e sorrimos praticamente da mesma maneira. Há um certo estilo que subexiste em nossas memórias afetivas. Você me entende nas horas mais estranhas. Somos estranhos, mas eu retribuo tuas gentilezas igualmente.

Em determinadas situações, querem nos colocar num conflito sem razões. E cem razões encontramos já na largada para deixar estar e partir para o abraço. Os sentimentos partidos não combinam com esse respeito inequívoco que cultivamos ao longo de milhares de anos. Tua eternidade me pertence como a minha a ti. Esses golpes do destino só ilustram causas perdidas e sem qualquer validade.

Eu e você estaremos juntos, apesar do mundo. Enquanto estivermos indisponíveis, descobriremos uma brecha nessas regras ultrapassadas. Eis a constância da tradição e da inovação num único aperto de mãos. Para os dias bons e os não tão bons assim, fizemos um voto que há de ser cumprido. Somos a carne presente e o sonho futuro. Não nos escapamos de um encontro derradeiro cheio de som e fúria.

> Crônica publicada no Jornal Notícias do Dia em 10/12/2015.