Novas tradições


Basta alguma união de pessoas, uma sociedade ou uma organização, para que regras sejam criadas, discutidas, reformuladas. Assim o foi durante toda a história humana, seja na visão da luta de classes iconizada por Karl Marx e Friedrich Engels, seja no atual e ainda confuso pós-modernismo virtual, seja pelos olhos de quem for. Tradições, então, são frutos dessas regras, porque leis espalham e espelham uma face evidente de uma falsa necessidade por “governos” ou por democracias representativas, para ser mais contemporâneo.

Mais que repetições institucionalizadas, tradições são importantes quando da afirmação de uma cultura. Ao se pensar numa cultura brasileira, convém então hospedar o carnaval na suíte presidencial de nossas raízes democráticas. O maior espetáculo da Terra, como muito qualificam-na, a festa nacional de raízes várias assume múltiplas faces dependendo da região do país. Há o Frevo de Pernambuco, os trios de Axé na Bahia, o samba-enredo do Rio de Janeiro e uma centena de pequenas variações por todo o Brasil. Em Florianópolis, os carros de mutação faziam a alegria dos foliões já nas primeiras décadas do cada vez mais distante século XX. No Centro e em Santo Antônio de Lisboa, o carnaval divertido era aquele das ruas, quando todos curtiam o mesmo espaço, sem a distinção de camarotes ou arquibancadas.

Mas algumastradições ficam pelo caminho ou se reinventam ou se traem pela própria obrigatoriedade dos anos. Sim, porque insistir em formas ultrapassadas pode até trazer alguma alegria momentânea, mas aí a nostalgia soergue o passado glorioso e nada mais é como era antigamente. E exemplos temos aos borbotões: a cerimôniade casamento, o baile de debutantes, e outras convicções que, se não caíram em desuso, perderam por completo o significado original. Engana-se, no entanto, quem pensa que tradições são apenas figuras reacionárias de uma teia social fechada. Ao contrário, uma opção que nos cabe é compreender a nossa carência por novas tradições e criá-las sem receio de alterar estruturas consagradas.

O carnaval é a maior de nossas tradições e, por isso mesmo, a que mais se alterou com o passar do tempo. E, perguntamos com um sorriso sarcástico no rosto: não é hora de alterar todas as demais?

> Crônica publicada no Jornal Notícias do Dia em 18/02/2010.

Crise


Existe uma máxima de que nos momentos de crise as pessoas se fortalecem. Assim, como se fosse necessária uma tempestade periódica e cíclica, alguns refazem planos, outros cometem os mesmos enganos, e o tempo esconde as crises, ano após ano. Tal dose de desventura pode parecer um tanto de masoquismo, quando isto nada mais é que o receio encravado nas mentes humanas, sutileza avassaladora que fez Shakespeare colocar no papel as seguintes bem traçadas: “Nossas dúvidas são traidoras e nos fazem perder o que, com frequência, poderíamos ganhar, por simples medo de arriscar”.

Entretanto, também necessitamos de cautela, porque os resultados dos apressados estão por toda parte: má distribuição das riquezas naturais, a exploração equivocada de bens universais, o crescimento desordenado nas cidades, o êxodo das áreas rurais… e tudo aquilo que os jornais e os movimentos sociais não nos deixam esquecer.

Uma visita rápida no Arquivo Público, ou na Casa da Memória, ou mesmo em páginas da internet oferece uma visão nítida do que era Florianópolis antes da crise. Ilha de beleza singular, a cidade cresceu cercada pelo mar e sem pretensões de grandeza. Mas aí o Continente foi agregado, as pontes surgiram para facilitar o acesso e um sem número de agravantes desmistificou a falsa imagem de paraíso na terra. Evidentemente que avanços públicos também marcaram presença. E aí estão as universidades (federal e estadual), os colégios, os hospitais e outros pertences da comunidade que colocam em prática o que dizem os teóricos da cidadania.

Mas crises não são passageiras, como muitos podem pensar. Sempre há crise, e é esta crise que move as engrenagens da sociedade. Crises refazem os amores perdidos, reinventam os conceitos ultrapassados, recolocam os dias novamente no calendário. Qualquer cidadão de Florianópolis, mesmo aqueles que não moram na urbe, são agentes da crise; pessoas comuns que convergem por caminhos diferentes, buscando um entendimento inexistente porque já aprendemos a conviver com esta invenção humana chamada crise.

> Crônica publicada no Jornal Notícias do Dia em 11/02/2010.

O Carioca na Ilha


O Carioca chegou de madrugada na Ilha e, como não conhecia a cidade, resolveu andar um pouco à procura de um táxi. No meio do caminho, não havia pedra alguma, mas sim um bêbado que veio ao seu encontro e quase lhe derrubou após um forte esbarrão. Metros mais tarde, não tardou a ver os táxis parados ao lado da Praça XV de Novembro. Perguntou ao taxista em que lugar ficava hotel X, pois havia reservado uma suíte para essa passagem pela Ilha. A trajetória foi curta, apesar de umas voltas espertamente desnecessárias do taxista: passou pela frente do Terminal Rita Maria, por baixo da Ponte Hercílio Luz (que, bravamente, ainda está de pé) e desceu na frente do hotel com apenas uma pequena maleta que vinha carregando na mão esquerda – teve que virar canhoto quando uma jogada brusca no xadrez lhe fez perder alguns movimentos da mão direita.

Na recepção do hotel, retirou os documentos da maleta e assinou as papeladas para se registrar na suíte principal. Não era assim tão rico, mas possuía um bom emprego na Cidade Maravilhosa. Mal terminara de guardar a caneta no bolso do sobretudo, fora abordado por duas belas morenas sorridentes. “As moças da Ilha são interessantes”, pensou o Carioca sem saber nada como realmente são as cidadãs que moram neste pedacinho de terra que beira o mar. Ambas estavam de minissaia, uma preta e outra vermelha, mesmo que fizesse muito frio naquele junho. Porém, o mais provável é que elas estivessem pegando fogo, paradoxalmente. O que fizeram a seguir, o Carioca e as duas belas damas, não convém dizer. Mas é fato que, passado muitos anos daquele episódio, o Carioca ainda lembraria daquelas mulheres com algum sorriso no rosto.

A manhã seguinte na Ilha reservou ao visitante apenas uma rápida reunião de negócios. Empresário do ramo de imóveis, o Carioca firmou parceria com uma construtora local de “resorts” no litoral ilhéu. Satisfeito ao saber que existiam mais de 40 praias a ser exploradas apenas na parte da cidade cercada pelo mar, o Carioca deixou a Ilha sem conhecer quase nada, mas ciente de que o mais importante (para seus negócios) levara consigo.

> Crônica publicada no Jornal Notícias do Dia em 04/02/2010.