Na estrada, novamente


Ele possuía uma íntima, longa, estreita ligação para com a estrada. Não uma estrada em especial, mas o conceito universal que liga dois ou mais lugares. Achava, com toda a sinceridade, que aquela história de ficar sentado à beira do caminho era uma total perda de tempo. O que lhe interessava era a ação. Andando ou correndo, caminhando com tênis esportivos ou forçando os cavalos do motor de uma motocicleta: era assim que vivia seus dias sem jamais permanecer por muito tempo num mesmo lugar.

Quando era convidado a dar uma entrevista, dizia sempre o mesmo: fazia aquilo porque aquilo era um motivo. E se lhe perguntavam qual seria seu próximo destino, explicava sorrindo: “em frente”. Sob o viés da razão, acreditava que muitas justificativas existiam apenas para agradar os frágeis corações dos leitores de jornais. E seu coração era firme, estável e batia com a força de seus passos.

Já não lembrava mais do início. Como teria sido o momento em que começara o trajeto? E como era a estrada? “Como todas as outras, oras”. Caminhos, trilhas e vias atraíam sobre si uma inconstância conveniente, como o céu de noite. Na estrada, novamente sentia aquela mesma indagação que não precisa de resposta ou afago. Viver de nostalgia, definitivamente, não estava em seus planos.

A origem do progresso, da evolução, da mudança, era intrínseca à paixão por seguir em frente. Ajeitava-se sobre seu eixo e saía por aí, como um planeta em alta rotação. “Abençoado tempo que, assim como eu, não deixa rastros”, comentou para um garoto que lhe indicou as horas. Naquela vez, em 1986, quando o Cometa Halley deu o ar de sua graça pela segunda vez no século XX, vislumbrou uma oportunidade de ser feliz. E, como sempre fazia, subiu em sua motocicleta para conhecer uma finita parte do Universo, ultrapassando as curvas com uma Harley-Davidson FXST, lançada três anos antes do desfile cometário. Assim, Halley e Harley, esta última com seu motor de 1340cc, guiaram-no em sua longa viagem até a hora da última parada.

Mas a última parada ainda não aconteceu. A mídia esqueceu dele, é bem verdade, porque mesmo as grandes histórias se perdem nas mentes ansiosas por novidades. E não custa lembrar que o próprio cometa só é assunto a cada 75-76 anos, quando se avizinha da Terra. Só que tudo isso é tão somente uma fração da história que ele escreve sobre duas rodas. O amor, o humor ou a dor que se lhe apresentam estão espalhados pela estrada, aquela mesma companheira de suas venturas, numa disciplinada relação que jamais pedirá nada em troca.

> Crônica publicada no Jornal Notícias do Dia em 24/01/2013.

 

Um leitor gentil


Para começo de conversa, ou de leitura, é necessário imaginar um leitor gentil. Não estamos cá em busca de um cavalheiro mentiroso que se furta a opinar em sinal de galanteio ou elegância. Fora cavalheiros!, pelo menos no que compete à literatura. Mas como a própria noção de literatura é ampla, vamos nos concentrar em três dos seus gêneros mais conhecidos: o romance, o conto e a crônica – sempre acompanhados de seus leitores gentis.

Saborear uma história romanceada, seja esta de amor, aventura ou aleatória, requer do leitor um tantinho de paciência e outro bocado de sapiência, tendo por aliado um inevitável dicionário. Felizmente, a língua – a nossa língua – possui quase tantas palavras quanto são os candidatos em véspera de eleição, com a vantagem que sabemos para que servem as palavras. Abrir a página 1 de um romance significa criar um compromisso, que até pode ser quebrado caso a leitura seja modorrenta ou lhe provoque náuseas. Vide a bula: livros ruins também fazem mal à saúde. Jamais aceite uma dor de cabeça por companheira de um romance; tampouco prossiga num livro que o faça dormir – para isso existe a televisão. O romance padece de ser degustado longa e tranquilamente, sem atribulações. Deixe os riscos para o espião que sabe mais do que deve, ou para esposa que se apaixona pelo novo morador da cidade, ou para o ladrão que rouba dos ricos para…

Já o conto traz consigo a alegria e a disciplina das visitas rápidas. Não é tão curto a ponto de esquecer o que dizer e nem tão longo de modo a atrapalhar as outras atividades da casa, como dormir depois do almoço, por exemplo. O contista conta duplamente com a gentileza do leitor em sua forma mais elementar: o respeito pela ideia. Afinal, existem brilhantes contos que se concentram numa simples sacada, daquelas que, ao lermos, indagamo-nos: por que eu não pensei nisso antes? E, ainda mais do que no romance, a primeira e a última frase dizem tanto sobre o autor e a obra que é como se aquele pedaço do meio (o desenvolvimento da história) fosse apenas um exercício de contenção – mas é claro que é bem mais do que isso.

Por último, mas não menos importante, eis a crônica. Normalmente mais enxuta que o conto, este belo exemplar da literatura que floresceu nos jornais não quer praticamente nada em troca do gentil leitor. Sua atenção, entre notícias quase sempre sobre problemas sociais, já é gentileza em demasia, porque o cronista e o leitor da crônica estão do mesmo lado da literatura: afinal, o cronista também é um leitor, gentil ou não.

> Crônica publicada no Jornal Notícias do Dia em 17/01/2013.

Sem lugar marcado para cantar o hino


Quando eu era criança, lembro-me de algumas preocupações que se faziam presentes sempre que as aulas estavam por começar. Saber qual carteira eu poderia ocupar era, provavelmente, uma angústia primordial.

Para o bem da verdade, sempre preferi sentar próximo às paredes, pelo menos até entrar na faculdade, onde não havia mais lugar marcado. E como a timidez é minha companheira desde pequeno, acreditava que nos cantos havia mais proteção, evitando assim perguntas inesperadas das professoras que escolhiam os alunos aleatoriamente. De fato, nunca soube se essa técnica funcionava. Para o infante, talvez seja mais importante não perder as esperanças de que estar certo.

Ainda na infância, toda sexta-feira era dia de cantar o hino nacional. Por mais que muitos trechos da letra não nos fizessem sentido algum, com um lábaro estrelado e uma flâmula em verde louro desconhecidos, os gritos do refrão saíam com empolgação. Em uníssono, todos os alunos exaltavam em verso a pátria amada Brasil.

Também por essa época, realizávamos o tradicional desfile de 7 de Setembro, dia em que não poderíamos ser tão independentes a ponto de faltar a aula. Seja com o uniforme da escola ou trajados de acordo com os temas escolhidos pelos professores, saíamos à rua com um pouco da disciplina dos quartéis. O regime de exceção acabara anos antes, mas o dever pátrio ainda era uma bandeira a tremular para além dos mastros.

Os pais orgulhosos apareciam nos desfiles para se certificar que as roupas de seus filhos estivessem aprumadas, pois na ausência de generais ou marechais verdadeiros, os olhos disciplinadores não se furtavam em bater continência.

Não posso afirmar se os colégios de hoje continuam com essa tradição pátria, como se as forças armadas plantassem suas primeiras sementinhas nos corações dos infantes. Mas não importa, pois os tempos mudaram e, com eles, as preocupações mais fundamentais. Sexta-feira deve ser um dia de ouvir música pop e o 7 de Setembro, enfim, tornou-se um feriado no qual não é preciso ir ao colégio. E como essa geração não sabe a sorte que tem!

O colégio no qual passei minha infância e, quiçá, alguns dos momentos mais divertidos e intrigantes desta vida já não existe. A estrutura está lá, intacta, mas crianças não correm mais por seus corredores na hora do recreio (ou “intervalo”, quando já estávamos mais crescidos).

E, de uma hora para outra, a gente cresce e vira adulto, sem compreender sentimentalmente a relevância de nossa infância – e como todas aquelas pequenas coisas determinaram o que fizemos depois. Minha timidez que o diga.

 > Crônica publicada no Jornal Notícias do Dia em 10/01/2013.