Só acontece com a gente


É bem diferente quando acontece com a gente. Pode ser uma coisinha de nada ou um problema do tamanho do mundo, mas se tem a gente no meio também há de ser sobremaneira especial. Porque sabemos que com os outros é mais tranquilo; um mundo bem menos complicado e dinâmico. Com a gente – ah! mas logo com a gente? – é sempre um carnaval às avessas, festa sem comemoração, lixo sem luxo, paixão acompanhada de sofreguidão.

Não, não é mentira quando eu digo que com a gente é mais estranho ou inoportuno. É só olhar para o lado e ver outrem. Aqueles estão sorrindo… mais adiante vemos dois ou três cantando… e quantos ainda restam… tão displicentes, como se nada pudesse abalar seus humanos corações. Mas o coração da gente é singular porque lida com as coisas de um jeito único e distinto – repentinamente, porém, somos lançados num planeta sem sentido, esperando por alguma absolvição.

Ninguém pode negar que com a gente os acontecimentos têm mais chances de darem errados. As opiniões alheias, concordemos ou não, parecem ser precisas e na medida em que os sentimentos individuais clamam. E a gente não se comove com as causas dos outros porque já temos questões sem respostas o suficiente.

Quando a gente encara face a face uma aventura, às vezes, esquecemos das personagens e, por isso, a história nem sempre acaba bem. Nalgumas oportunidade, vejam só, as histórias nem mesmo findam, porque com a gente o desfecho não se dá simples assim qual uma explosão estelar ou o desaparecimento de uma galáxia.

A fé, seja ela qual for, parece brincar com a gente. Aprendemos a enxergar as verdades possíveis, mas a gente também sabe que a mentira mora na casa ao lado. E neste condomínio fechado no qual se escondem as almas, a gente escolhe o imóvel mais incompleto. Daí que a gente não tem lareira para aquecer os corações; não temos cofres para depositar nossas expectativas e tampouco havemos de ter água para abastecer os sonhos mais áridos.

A gente não percebe aquilo que está óbvio para nossos concidadãos. Assim, vacilamos, cometemos pequenos deslizes e pedimos perdão por esta ignorância à qual já nos habituamos. Somos uma espécie em construção.

Dia vai, dia vem – mas tudo aquilo que poderia ser evitado só acontece com a gente. E está claro que, por tal motivo, somos diferentes da maioria. E admitimos que a gente gosta de todo este aprendizado, pois temos virtudes e vícios que nos permitem confessar aos quatro ventos o quanto somos gente, mas gente mesmo.

> Crônica publicada no jornal Notícias do Dia em 15/12/2011.

Quase no final de ano


Antes de mais nada, devo confessar que esse período que antecede a chegada de um novo ano, de acordo com o calendário cristão, não me é assim tão cativante.

E tudo isso por uma questão muito simples: não compreender por que as coisas têm de ser melhores e especiais apenas numa época do ano. Temos aí sempre 12 meses para fazer o que precisa ser feito e, mesmo assim, parece que tudo só dará certo nesse pouco mais/menos de um mês que acompanha as comemorações de Natal e Ano Novo.

Tradição é importante, indiscutivelmente. E nem cá estou eu a ir contra uma celebração encenada mias de duas mil vezes. Falemos baixinho, porém, e sejamos menos regrados em querer cenas coerentes de nosso cotidiano milenarmente construído. Parece-me demasiado estranho depositar nisso nossos anseios e acreditar que uma simples mudança de número será o elemento sine qua non do aguilhoamento que o novo ano trará. Já não estamos mais em fin-de-siècle para que seja feito todo essa mise-en-scène.

Palavras estrangeiras à parte, voltemos ao que nos interessa. As bobagens não tão bobas assim da aurora de um novo tempo.

E lá se vão dois milênios desde que aquele filho de carpinteiro pôs os pés no mundo para influenciar sobremaneira o modo de vida ocidental. Tenho comigo que Jesus Cristo e Karl Marx são as duas figuras que mais incidiram no pensamento do Ocidente e, em tempos globalizados, no Oriente também. Afinal, ainda que Cristo não tivesse os olhos puxados, as igrejas cristãs já estão por aqueles lados onde o sol nasce.

E o que Karl e Jesus têm a ver com o tema destas frases? Respondo-lhes, astutos amigos, numa palavra: Esperança. Posto que o Marxismo e o Cristianismo não foram fundados por Marx e Cristo, respectivamente, tudo o que temos hoje é uma forma de pensar e viver tão somente baseada naquilo que ambos pregaram numa determinada época da história humana. Assim, o Cristianismo dá a esperança de que todos, um dia, encontrar-se-ão com Deus. Já o Marxismo, fomenta a esperança de que as desigualdades, um dia, terão fim, quando então o comunismo fará a paz reinar na terra.

Entretanto, Cristo e Marx morreram sem ver seus ideais em pleno vigor. E, permitam-me, utilizar-me-ei de uma sentença do nosso mestre realista Machado de Assis: “A esperança ainda os fez relapsos, mas tudo morre, até a esperança, e eles saíram para nunca mais“. Posto isso, resta-me pensar que a esperança, na maioria das vezes, deve ser deixada de lado. Sim, esqueçamo-la! Nada de esperança para o ano que vem; vamos mudar o discurso. Vocês já pensaram em fazer algo?

> Crônica publicada no jornal Notícias do Dia em 08/12/2011.

Relato de um texto naufragado


Tinha muitas vidas. Poderia ser Edgar Allan Poe ou Victor Hugo quando bem entendesse. Quando queria um pouco mais de aventura, transfigurava-se em Mark Twain ou Charles Dickens. Ainda conseguia poesia nas formas de Ezra Pound ou Florbela Espanca. E assim vivera tantas vezes que conseguira, finalmente, a imortalidade. Seu nome mais comum era Texto, mas também atendia por Memória, Alma e Imaginação.

Desta vez, estava dentro de uma garrafa. Aprisionado por um escritor que lera O Velho e o Mar, de Ernest Hemingway, mas terminara por naufragar como Luís Alejandro Velasco, personagem real de Gabriel García Márquez em Relato de um Náufrago. Munido de um lápis e algumas folhas em branco, o escritor colocou todo o seu desespero e sua angústia de estar à deriva em um Texto (sim, o próprio) tão trágico quanto belo.

Nos parcos papéis que possuía, contou desde seus primeiros passos na infância até os grandes relacionamentos que tivera na vida. Enquanto escrevia sua pequena narrativa, uma frase do escritor argentino Jorge Luis Borges lhe veio à mente: “Se lemos algo com dificuldade, o autor fracassou“. Era de um pequeno ensaio em que Borges tinha como tema central o livro e, ainda que não fosse tão pretensioso a ponto de que seu relato, um dia, se tornasse um livro, sabia que alguém poderia encontrá-lo e tratou de escrever com simplicidade e precisão.

O céu ensolarado ardia os olhos já cansados, mas não largou o lápis até que finalizasse sua história. Nos momentos finais da narrativa, revelou então que, pouco antes do naufrágio, conhecera Hemingway na capital francesa quando este escrevia Paris é uma Festa. Encontrara-o repetidas vezes no Café de Flore e conversavam muito sobre o ofício de escrever. Descobriu que o autor sentia uma grande admiração pelos jornalistas, mas que sua essência era, de fato, a de um escritor.

Depois de Paris, subiu na embarcação do capitão Ahab e foi à caça da baleia assassina Moby Dick descrita por Herman Melville. Desta forma, retornou ao ponto em que estava, finalizando seu relato e colocando-o dentro da garrafa que, minutos depois, jogaria ao mar.

Doze anos depois, a garrafa com o Texto fora encontrada em Florianópolis, uma ilha ao Sul do Brasil. Um jovem caminhava pela praia dos Ingleses quando viu o objeto flutuando perto da areia. Como ele era um estudante de jornalismo e apaixonado pela futura profissão, foi atrás de mais detalhes sobre o autor daquele Texto e descobriu que o homem jamais fora encontrado. Entretanto, as palavras ali escritas tornaram-se singulares na vida daquele que foi o seu primeiro e único leitor.

> Crônica publicada no jornal Notícias do Dia em 1º/12/2011.