Testemunhas da revolução


Com as revoluções, alguns ajustes se tornam desejos insólitos de quem ainda está tateando vagarosamente com medo de pisar na ponta de um prego. Pelas ruas, pedaços de quartéis e casas e escolas compõem uma massa disforme: eis o preço das ideologias.

– A reconstrução não será fácil; comentou o empreiteiro para o governante de olhos mal dormidos.

– Mas tem de ser feita, mesmo que ninguém acredite ser possível neste momento; retrucou o homem de poder.

Enquanto o trator colocava entulhos e lembranças sobre uma caçamba já quase lotada, o morador sobrevivente veio ter com sua esposa que o esperava em pé na frente do que um dia fora sua casa. Ela estava com a maquiagem borrada, misturada com a poeira deixada após tantos meses de atos revolucionários.

– Quando apoiamos a causa, sabíamos que isso poderia acontecer, mas mesmo assim é bem chocante; admitiu o marido.

– Só me parece estranho pensar que nós somos os vencedores. Sei que as comunicações estão interrompidas e que as notícias do outro lado nos chegam pela metade… mas… mas… não consigo entender a necessidade disso tudo, dessa separação internacional e tudo o mais… nem sei se algum dia vou aceitar essa tragédia sem que doa fundo; ela mal conseguiu falar entre soluços.

Para o espectador local, testemunha ocular destes dias longos e angustiantes, a sensação de alívio ainda não é um luxo ao qual se pode desfrutar. A realidade em forma de tiros, projéteis e afins brotou de algo parecido com uma utopia, mas tão confuso como um sonho sem início ou fim.

Dos escombros de uma escola, um livro numa estante parecia fazer parte de um ambiente de paz. Estava limpo, praticamente na mesma posição de antes, quando tudo ao seu redor era uma estrutura de conhecimento.

O garoto que pegou o livro estudava ali noutras horas mais claras. Ainda lembrava do último dia de aula e da lição que fez sobre as fronteiras de seu país. O antigo professor se aproximou, retirou o livro das suas mãos e guardou na mesma prateleira em que estava.

– Sabe, professor, sou uma criança inocente, mas não ingênua. Da minha maneira entendo o que está acontecendo aqui: é um acerto de contas entre mentes fracas, não é?; questionou o aprendiz com a certeza dos bravos.

– Pode ser. Entretanto, não sei se é essa a pergunta que eu realmente gostaria de ver respondida. Gente como a gente tem de se apoiar no que os livros ensinam e naquilo que nossa imaginação avalia. Todo mundo tem o mesmo tipo de coração batendo dentro do peito, não é?; o mestre devolveu a pergunta.

– Pode ser. Pode ser mesmo; completou o menino.

> Crônica publicada no Jornal Notícias do Dia em 18/02/2016.

Depois do Carnaval


As expectativas tratam das pessoas que as têm. Nem mais, nem menos. O conteúdo, neste caso, é a forma. E passado o Carnaval, fazemos dessas perspectivas de opinião o eixo das atenções, principalmente na esfera das relações públicas, na qual existe uma série de códigos e posturas que precisam fazer sentido – pelo menos no conjunto das aparências.

Pós-Carnaval, vive-se da desconfiança dos dias vindouros. Uns desconfiam positivamente; outros guardam o dinheiro no colchão. Mas todos se relacionam como se tudo dependesse de decisões tomadas por terceiros. “Se ele fizer isso, será melhor” ou “Tomara que ela mude as coisas de uma vez por todas” são caminhos que alguém haverá de tomar, mas nunca quem sentencia tais assertivas. Às vezes, culpam o governo. Noutras, o povo. E de tanto falar em culpa, não assumem responsabilidades que lhes são de direito e de origem.

Os otimistas esperam sempre que os ânimos se compadeçam e tudo volte a ser como antes – ah, aqueles tempos nostálgicos quando o mundo era tão menos complicado. Já os pessimistas perdem suas tardes reclamando das notícias com alguma satisfação ao dizerem “nós bem que avisamos”. Entretanto, estes ou aqueles não estão imunes à própria inércia que lhes move, contraditoriamente, para o mesmo lugar.

Quando as engrenagens sociais não estão bem azeitadas, a máquina sucumbe à paixão por si mesma. Há os que chamam isso de status quo, mas é só tosquice mesmo. Catalogar os humanos não faz o menor sentido quando a natureza define situações que fogem ao controle de nossa espécie. Ou, por acaso, alguém pensa que os vírus, as bactérias e seus comparsas estão preocupados com pobres ou bilionários, com plebeus ou consanguíneos da família real, com religiosos ou ateus…? Um corpo é só um corpo, até que se prove o contrário. Carne e água e ossos e mais umas outras coisas unidas ao pensamento. Mas a dengue ou a aids ou a zika não escolhem seus portadores dependendo do grau de instrução e tampouco estão interessadas se estes são analfabetos ou formados numa universidade pública. As desigualdades de uma sociedade só servem de desculpa para evitar o inevitável: uma expectativa que nunca se cumprirá.

Tanto faz estabelecer o Carnaval para marcar um recomeço. A vida não cabe num calendário, tanto como as expectativas não significam nada para quem escolhe não tomar partido. A decisão dos outros é proporcional à indecisão de si mesmo. A ressaca (ou a falta desta) é sempre mais significativa e perene do que a festa, independente da fantasia.

> Crônica publicada no Jornal Notícias do Dia em 11/02/2016.