Boa fé


Hoje, o dia vai ser legal. Senti isso assim que uma lufada de vento gostoso, com cheiro de sorvete e sabor de orvalho, invadiu meu quarto. Coloquei a coberta de lado; não era preciso dobrar a roupa de cama. Teremos tempos melhores para isso. Com um pouco de fé e uma xícara de café, o mundo está pronto para se abrir, como uma janela que recebeu óleo em suas juntas.

Por alguns instantes, talvez até mesmo horas, deixo as notícias tristes de lado e me embalo com a felicidade. São tantas as possibilidades que chego a me perder. Ensaios, enredos, tramas, temas: a ocasião faz o bom ladrão de sonhos e beijos e abraços. Robin Hood ainda mais romântico do que nos romances de capa-e-espada. Muito amor e nenhuma arma.

Na pracinha do bairro, a reunião de alunos após a aula matinal às vésperas do almoço. Observo-os com atenção. Riem e atropelam as palavras com a urgência de quem vive o juízo final – “só que não”, eles mesmos completam antenados com a gíria da vez. Espertos e exagerados, como sempre compete aos adolescentes. Entre a ingenuidade e a crítica mordaz, cometem os erros que a idade lhes oferece. Todos encontram algum tipo de alegria, longe de uma geração mais velha, antiga e reacionária.

Ali próximo, no parquinho infantil, aquela energia de quem está sobremaneira ansioso para crescer e se tornar um super-herói ou um professor (duas das profissões mais ousadas de que temos notícias). Crianças interagem com os tatibitates, fazendo-nos crer no entendimento entre povos, nações, religiões, partidos e ideologias. Pequenas amostras muito mais relevantes que um estudo detalhado do genoma humano. Ah, e nada contra a ciência; pelo contrário. Somos filhos do átomo em permanente evolução.

Há um mistério superior que sempre vai nos escapar. E isso não me incomoda. Tenho boa fé nos detalhes que ainda são tão emocionantes quanto a própria aventura principal. Cada qual à sua maneira, mas numa única narrativa compartilhada, como se fosse possível shippar a humanidade. Ou, sei lá, ao menos cutucá-la pelo Facebook.

Nesse clima supimpa, aceno com as duas mãos. Estou te convidando para dar o fora daqui, agora mesmo. O sol está meio escondido, mas quem se importa? Já desliguei o celular. Hoje, o mundo será o bastante. Amanhã, vamos querer ainda mais.

> Crônica publicada no jornal Notícias do Dia em 30/03/2017.

Aniversário de Floripa


Você fica sabendo do aniversário de Florianópolis pelo telefone celular. Terra em que nasceu ou escolheu para ser seu lar. São 344 anos resumidos em um único bipe; mas há muitos outros dias idos ainda no tempo de Meiembipe. As tradições gostam de marcar o tempo por cerimônias formais. E não importa se muito antes de Dias Velho já moravam as tribos locais. Antes, apenas uma Ilha perdida no meio do mar. Hoje, o continente trouxe histórias para somar.

– Mas, esperem aí, esta Ilha não é o paraíso de que todos falam?, pergunta o visitante oriundo de um país estrangeiro.

– Talvez seja, ô. Mas mesmo no paraíso há os que apenas consentem e calam!, responde o ilhéu com seu típico linguajar ligeiro.

Como toda metrópole, esta é uma cidade de dicotomias e desigualdades. Mas quem a conhece de perto, e parte, sempre carrega consigo amigos e saudades. No fundo, somos todos imigrantes numa terra cheia de leis. Porque a natureza não reconhece cartórios ou reis. Em alguns lugares, há corpos delineados por plásticas e carros importados num clima de ostentação. Noutras regiões, a infraestrutura mais básica sequer recebe alguma atenção. Os erros se repetem em todo o mundo, mesmo que tenhamos o sentimento mais profundo.

Na esfera pública, os aniversários de um município são praticamente todos iguais. Se há dinheiro no caixa, a população se anima toda para ver artistas internacionais. Seria uma contradição celebrar o lugar e exaltar o exterior? Ou talvez esta seja nada mais que uma questão posterior. Na pergunta primeira, gritamos: – O que temos para celebrar? E, com o rabo entre as pernas, fingem ter alguma noção para administrar. É a velha e manjada narrativa de quem escolhe um progresso que nada se parece com um justo futuro. No outro lado da balança, os moradores (a grande maioria) seguem firmes sem sucesso, pagando impostos e trabalhando duro.

Tudo bem, ô, falemos de coisas boas e divertidas. Como um chopp no Mercado ou a quitação das dívidas. Afinal, o dia parece ser muito mais urgente. Assim o é para mim e para toda gente. Passado e futuro estão noutras estações distantes. Longínquos como os falsos moinhos de Cervantes. Melhor pedir outro chopp em taça tulipa. Afinal, é aniversário de Floripa.

> Crônica publicada no jornal Notícias do Dia em 23/03/2017.

Erudito e popular


Querem-nos impor as diferenças entre o erudito e o popular na marra. Como se distinção hierárquica fizesse alguém melhor por natureza. Nada disso. Não venham com essa porque não vão ter respaldo algum. Nós aqui do lado mais ansioso e destemido pertencemos ao time dos juntos e misturados; aqueles que encontramos na própria tradição o significado da novidade.

Passamos do grunhido à música de câmara sabendo que um pertence ao outro. A música, aliás, talvez seja a primeira forma de arte porque vem do ritmo. E a natureza é a mãe de todos os ritmos: O bater do coração, a cadência da chuva, a sinfonia do vento nas frestas de uma caverna. Naturalmente, aprendemos.

Da aurora de nossa espécie até o presente momento, percorremos um caminho de conquistas e perdas, mas que esteticamente sempre pareceu qualquer coisa de circular. Retomamos o popular quando o erudito parece não ser o suficiente – e vice-versa. A cultura não se faz por negação, mas por assimilação. Damos a volta ao mundo apenas para nos encontrar em nosso cotidiano tão minúsculo quanto o espaço vazio de um abraço. Abraçamos os diferentes porque não cabemos nesta partes simultâneas chamadas mente e corpo. Somos uma unidade simbiótica, dividida em metades para lá de interessantes.

Erudito e popular também são metades complementares e nada antagônicas. Cada qual ao seu modo aprofunda os dilemas mais necessários e, igualmente, triviais. Como um casal recém apaixonado, eles fecundam ideias impossíveis numa realidade possível. A união é estável, mesmo com os mal amados lhe desejando um divórcio com divisão total de bens. Estetas? Vai saber!

Não conheço qualquer coisa que possa se proclamar estritamente erudita ou popular. Mesmo os maiores sempre foram ambos. William Shakespeare, Machado de Assis, Roberto Rossellini, Alfred Hitchcock, Leonardo Da Vinci, Claude Monet, Ludwig van Beethoven, Tom Jobim… e tantos outros que se tornaram mestres na simplicidade, munidos de um vasto conhecimento, um tantinho de vaidade e muita coisa de humildade. Um legado mais do que legítimo para quem tem juízo e bom coração.

Na sua próxima festa, chame o erudito e o popular. Talvez seja o único jeito de agradar todos os seus convidados, sejam eles gregos ou troianos.

> Crônica publicada no jornal Notícias do Dia em 16/03/2017.

Cansaço


 

Começou a escrever entorpecido de cansaço. Olhou ao redor procurando as horas mal dormidas e não encontrou nada além de ausência. Assuntos não lhe faltavam; era outra coisa que lhe incomodava. Sim, como manda a tradição conservadora, ele tinha a sua própria musa, única que lhe dava atenção quando ninguém mais o fazia. Inspiração também encontrava no próprio mistério da vida; era uma surpresa a cada dia, afinal. Ainda assim, o texto lhe escapava como um rato que descobre a mecânica de uma ratoeira. As palavras se fingiam de mortas nalgum canto qualquer do universo ou de sua mente. Mas o prazo… o prazo!

Não poderia furar de novo. Acontecera duas ou três vezes anteriormente. Uma delas foi puro esquecimento. Outra fora um mal entendido na troca de e-mails. E a última ocorrera por uma ressaca dos diabos – nada mais adequado, já que se dera justamente naquele período chamado inferno astral. Mas seu aniversário já passara há tempos e tudo que restara para si era uma folha em branco.

Escrever é como um duelo de faroeste. De um lado, o rosto concentrado, as mãos ansiosas para realizar seu trabalho, a respiração buscando um ritmo cadenciado. No sentido oposto, uma tela de computador intimidadora, ausente de conteúdo, mas cheia de si, cobrando-lhe a responsabilidade ao sussurrar “mas você quem decidiu ser escritor… não reclame”. Quem saca primeiro ganha a parada e, com sorte, uma história.

Por alguma razão desconhecida, lembrou-se de fragmentos do seu passado. Talvez estivesse buscando uma história pessoal que valesse a pena compartilhar. As desventuras na escola, as trapalhadas românticas da adolescência; momentos mais do que interessantes, mas que pareciam unicamente fazer sentido para si mesmo. Na ficção, o espaço para biografias é muito reduzido. Até mesmo uma crônica não pode carregar muito da vida pessoal autor com o risco de se tornar um autoelogio. O pintor sempre carrega nas tintas quando cobre a parede da própria casa. Por fim, o escritor deixou o passado na gaveta outra vez.

Estava para desistir de tudo. Bolou até uma resposta elaborada sobre uma nova enfermidade, quando veio aquela manjada ideia de falar sobre as dificuldades de escrever. E já tinha até mesmo a primeira frase: “Começou a escrever entorpecido de cansaço”.

> Crônica publicada no jornal Notícias do Dia em 09/03/2017.

Cotidianidades 2017


Não sei se faz algum sentido aquela velha ideia de que o ano só começa depois do Carnaval – nem enquanto metáfora. A saída de dezembro e a chegada deste 2017 vem acompanhada de fogos reais e bombas simbólicas, ainda mais em tempos de Operação Lava Jato. Já faz algum tempo, aliás, que o tempo não para, mesmo antes do Cazuza cantar isso com seu exagero inconfundível. O ano não apenas começou faz tempo como parece ser o mesmo dos últimos anos.

O erro na apresentação do Oscar de melhor filme e os acidentes em carros alegóricos nas escolas de samba do Rio de Janeiro são cotidianidades de quem nunca esquece a responsabilidade que é viver. Somos imperfeitos, mas não é preciso abusar. No caso do prêmio de cinema, um simples constrangimento transmitido para mais de 200 países pode abalar a empresa de auditoria que cuida há 83 de guardar o nome dos vencedores e entregar o envelope com o nome do premiado até que se diga “And the Oscar goes to”. A arte imita a vida e, por vezes, causa algum prejuízo; as pessoas machucadas pelos acidentes nas escolas de samba que o digam. As equipes organizadoras do Carnaval e do Oscar precisam repensar os detalhes para que este ano não continue a ser o mesmo no ano que vem.

Findo o Carnaval (menos na Bahia, ao que parece, felizmente), Marcelo Odebrecht dá seu depoimento sobre a chapa Dilma-Temer. Não é coincidência. As festas se sucedem tanto no céu quanto no inferno. Cabe a STF dizem se é Deus ou o Diabo quem tem razão na Terra do Sol. O complicado do Brasil é o brasileiro, parece-nos. Tempos extremos, medidas extremas: isso não rende bons poemas.

A efetividade do início do ano após o Carnaval é um mero truque inventado pelos políticos mal intencionados de Brasília. Eles fazem como a Ivete Sangalo que se disfarçou de palhaça para curtir os blocos de rua incógnita. A diferença é que a Ivete é muito mais divertida.

Também por estes dias, a NASA divulgou a existência de novos planetas que podem abrigar vida. Duvidamos, no entanto, que o Carnaval seja comemorado por lá, a cerca de 40 anos-luz de distância da Terra. Tampouco cremos nalguma implicação da empreiteira Odebrecht por aquelas bandas, mas é melhor esperar as delações premiadas.

O tempo não para e, por vezes, repete a si mesmo. “And the Oscar goes to La La Land. Não? Espera um pouco”.

> Crônica publicada no jornal Notícias do Dia em 02/03/2017.