Alfabeto


Ainda que eu quisesse escrever uma crônica sobre o alfabeto, dificilmente executaria tal manifesto sem alguma omissão ou intromissão.

Bem que gostaria de assumir o peso desta carga sobre meus próprios ombros, mas tal não acontece de modo tão simples.

Crônicas, ressaltamos uns, por vezes como que surgem sem noção ou explicação.

De tempos em tempos, o cronista se dá ao direito de um ou outro exagero, uma ideia que lhe perturba a ponto de tornar-se texto.

Escrever é uma ação reativa, pois sempre temos novos motivos, ainda que motivados pela falta de um motivo.

Felizes são, pois, todos aqueles que escrevem sem ter por onde, teclando contextos como quem anda de bicicleta.

Gravam suas memórias no papel ou contam uma aventura qualquer, com ou sem personagens.

Histórias são fenômenos sociais autossuficientes; já o cronista está mais para um historiador descompromissado.

Interessado nos detalhes, o autor de crônicas pouco sabe onde quer chegar antes que as palavras tomem forma e direção.

Jogando vocábulos, brincando com verbos e versos, cada um escolhe seu próprio ponto de vista.

Kant, o filósofo, ressaltava que “eu não sou outro”; assim, o mundo que me cabe tem a ver apenas com o que sinto.

Longe de mim, no entanto, isentar-me de responsabilidades e passar por um cidadão despreocupado.

Mesmo nesta crônica, que vai passando da metade, toda a culpa reside no autor e em como este percebeu os outros.

Não quero com estas palavras apontar um caminho, sugerir verdades ou desmistificar a velha moral da história.

Outros argumentariam muito melhor do que eu, utilizando-se, talvez, de menos palavras e mais ações.

Porém, valho-me deste espaço crônico com a melhor das intenções, sob a força de um sentimento franco.

Quando a crônica deixa um ou dois ou mais leitores felizes, a satisfação do cronista corre distante de vaidades.

Rimos, sim, do sabor que deixamos noutras pessoas; não foram elas quem, atendendo à curiosidade inata dos humanos, deram com tais mal traçadas?

Somos suspeitos ao falar de nós mesmos, saliente-se; daí permanecemos com a pulga atrás da orelha na medida em que aparentamos ser os donos da verdade.

Trazemos tudo o que conseguimos carregar no ajuntamento destas letras que podem ou não fazer sentido algum.

Uma crônica ou uma poesia ou um romance ou tudo aquilo que advém da escrita é, também, sua autoexplicação.

Voltamos sempre ao início quando damos uma volta completa; e assim também ocorre com o alfabeto.

Xingam-nos aqueles mais exaltados que leram toda esta crônica somente para, ao final, descobrirem que se tratava de um recomeço.

Zeramos os contadores e nos preparamos para outra crônica.

> Crônica publicada no jornal Notícias do Dia em 26/01/2012.

Ciência da alma


Eu acredito na ciência tanto quanto a ciência acredita em mim. Sou fã das teorias, mesmo aquelas não provadas. Quero ter o apoio de tudo aquilo que é matéria mesmo quando eu e os meus próximos voltarmos ao pó. E não darei adeus para um pensamento quando outro aparecer; eis um caminho aberto para a ciência vir completar a fé – afinal, o desconhecido está presente igualmente para o religioso e o cientista. Então, podemos supor que o cético é aquele que ainda não passou por certas experiências e nem se deixou levar por uma verdade que parece não fazer sentido. E, na maioria das vezes, não faz sentido algum.

O que se esconde na natureza, sob ou acima de nós, é a força motriz de nossa espécie. Como os outros bichos, somos curiosos, mas fomos além ao supor que poderíamos explicar um princípio tão vago quanto a existência – da vida, dos objetos, das ideias. Se nos afastássemos alguns anos luz deste nosso grande lar e olhássemos ao lado das estrelas para o planetinha azul que deveria se chamar “Mar” e não “Terra”, qualquer coisa que por ventura acontecesse debaixo dessa camada gasosa que nos protege chamada atmosfera pareceria não ter qualquer relevância no lento caminhar do cosmos. Entretanto, o que seria motivo para alguma frustração intelectual é precisamente aquilo que faz da história terrestre uma aventura tão singular.

E a consciência (espécie de ciência da alma!?) é quem orienta os passos desta marcha intra-planetária que todos os seres vivos obedecem. Porque temos alguma ciência de nosso próprio tempo também nos convém assumir a culpa pelo que o mundo se tornou. Começamos não se sabe como, fomos atrás da sobrevivência, firmamos laços de sangue, juntamo-nos em grupos, desenvolvemos sistemas de controle e, então, tornamo-nos sujeitos de nossa espécie naquilo que pode ser considerado a existência mais anti-natural que a natureza foi capaz de criar. Por tudo isso, somos responsáveis e procuramos algo que possa restabelecer o que foi perdido, religando-nos com o passado, com a criação, como sugerem as religiões.

Eu acredito na não-conformidade – aquela pulga atrás da orelha que está presente em todas as viagens dos descobrimentos, sejam estas realizadas através de naus ou caravelas, de lendas ou fatos, de computadores ou livros.

O conhecimento está para mim assim como a ciência está para a matéria. E, do Universo ao único verso do poeta, tudo pode acontecer: mundos hão de colidir, estrelas brilharão em explosões galácticas, ondas continuarão a trazer as conchas para a praia enquanto uma criança, curiosa, fará buracos na areia.

> Crônica publicada no jornal Notícias do Dia em 12/01/2012.

Uma Ilha para além de 2012


Vou ser franco com você: não acredito no fim do mundo, pois as forças que regem o universo não teriam coragem de destruir lugares assim como Florianópolis. Pode parecer um orgulho ilhéu desmesurado, mas não o é. Sempre fui contra bairrismos e, particularmente, também não vejo mais lógica nas fronteiras quando o ir e vir está determinado pela conta bancária e/ou a capacidade de pagar as prestações de uma viagem qualquer. E, além do mais, de certa forma e sem muitas ambições motivadas por vaidades que não levam a nada, tudo o que precisamos está bem na nossa frente ou do nosso lado.

Esta Ilha que tanto nos cativa tem de estar imune ao fim do mundo por razões que não poderemos explicar com palavras crônicas ou imagens icônicas. Não adianta buscar a compreensão da não finitude destas praias recortadas, morros e lagoas apenas com a música faceira de um poeta ou o olhar sensível da velha rendeira tradicional. Aceitar que a Ilha resistirá aos eventos cataclísmicos que, segundo os Maias, terão vez em 2012, vai além de uma questão de fé.

Já morei tanto na parte insular quanto na área continental de Florianópolis, e se cito mais a Ilha em minhas crônicas é apenas por uma afeição conquistada na infância, com aventuras possíveis de uma criança pelas ruas e terrenos baldios (hoje já escassos) de um lugar chamado Parque São Jorge. Com suas avenidas e ruas ausentes de prédios e repletas de casas, aprendi a ver o mundo do meu jeito: espécie de universo reduzido, sem muitas dicotomias, é bem verdade, mas ainda assim tão vasto em particularidades quanto a imaginação infantil pode ser. E no Parque pude presenciar casas de amigos ou conhecidos alagadas pelas chuvas fortes das estações quentes. O pequeno córrego que corta o bairro não era capaz de dar vazão às águas trazidas sem culpa pelas nuvens e pelos ventos. Mas todos resistimos àquelas épocas sem graça como também suportaremos os dias lúgubres que as previsões mais desanimadoras para este ano possam corroborar.

Em algum momento, no entanto, e desdizendo a tudo que os parágrafos anteriores insistiram em afirmar, o universo chegará ao seu limite de expansão e nem mesmo um planetinha azul e bonito como o nosso terá vez na entropia de um big bang reverso. Mas se existir um lugar além da matéria, capaz de absorver tudo aquilo que não se traduz fisicamente, teremos a certeza final que Florianópolis existirá para sempre em nossos corações, como o pedacinho de terra que aprendemos a gostar.

> Crônica publicada no jornal Notícias do Dia em 05/01/2012.