Divinas curvas


Após o Caos cumprir seus dias, foi a vez da Gaia aprontar das suas. E como os deuses podem ser vaidosos! Assim, Urano e Gaia tiveram seus filhos. Um deles, o titã Cronos (a quem todas as crônicas prestam homenagem), reinou soberano até o dia em que foi destronado por Zeus.

Pelos deuses da beleza divina, a mais bela entre as mortais. Assim és tu, Ilha. Com estas curvas de fazer inveja ao corpo das mais saradas musas, estás banhada pela águas agridoces do Oceano – outro irmão de Cronos. Com tuas formas, brilhas sozinha e enches de luz a escuridão do Tártaro. Todos, pois, acabam por se envolver com tua acolhida de Afrodite e com teu abraço quente de Hélios. Todos os dias em teu convívio ficam nas lembranças de Mnemósine; viver contigo faz com que mulheres e homens pensem consigo: “Vale a pena não ser mais outro deus ou deusa”.

As personagens de nomes curiosos que antecederam estas palavras são algumas das criaturas relacionadas pelo grego Hesíodo na obra “Teogonia”. Tendo vivido alguns séculos antes de Cristo, Hesíodo era um aedo, espécie de poeta popular que contava história antes mesmo da História ser um conceito de domínio público. O aedo deu conta do mundo humano com o poema épico “Os trabalhos e os dias” e da vida divina com “Teogonia”.

Vivendo atualmente na Ilha, Hesíodo já não mais escreve sob a inspiração das musas, como fazia no passado. Com o acesso a internet numa cidade virtual, o grego digita suas veleidades para a humanidade no notebook, sentado num café próximo à Avenida Hercílio Luz. São as pessoas e paisagens que cortam diariamente a janela de seus olhos o que lhe dá motivos para colocar algumas linhas na memória digital do equipamento, qual cronista de jornal.

Hesíodo, agora, adotou a região central da cidade como sua nova pátria: microcosmo de uma sociedade ainda sobremaneira influenciada pela cultura grega de tempos remotos. Poderia ir para Creta, no mar Egeu, mas preferiu esta Ilha também de pescadores e de casas com as paredes coladas umas nas outras. Semelhanças à parte, Hesíodo quer saber das diferenças e novidades, entender como os mortais deixaram de lado as principais personagens do mito cosmogônico, identificar o antropocentrismo à luz do sublime.

A crônica na Ilha de Santa Catarina é uma necessidade que ultrapassa o limite do tempo, porque as divinas curvas desta cidade escondem mais do que revelam, porque mesmo os deuses morrem de inveja daqueles que podem chamar de seu este pedaço de céu cravado no mar.

> Crônica publicada no Jornal Notícias do Dia em 27/01/2011.

Cidade de todos


Aqueles que se esbaldam no lazer que o verão oferece, sabem que nesta época do ano, para nós que vivemos abaixo dos trópicos, os dias tendem a terminar com chuva ou com chopp. O calor que chega e demora a ir embora impõem aos dias uma necessidade refrescante, como quem clama pelo arrebatador vento sul.

As praias se enchem de conversas e corpos; a areia fica repleta de sabores e suor; os bares à beira mar não sabem o que fazer com tantas filas e fome. Desde a manhã até os últimos raios de sol, quem está de férias busca o refúgio na multidão, seja de uma piscina de hotel ou no vaivém das ondas desse litoral praieiro qual existe na Ilha.

Os habitantes que conhecem esse lugar e o tem em conta como a um velho amigo já sabem que sua cidade é de todos e mais um bocado de gente nesses dias da estação quente. E, assim, muitos não esquentam mais a cabeça com o trânsito doidivanas que se agita ainda mais com placas de veículos de outros estados e países. Quem perde a cabeça, dirá o ilhéu descolado, é francês na revolução. Quiçá o bom humor ainda tenha o seu valor nos dias que se seguem nessa metrópole cercada de mar.

Na poluição das águas em suas duas baías, Florianópolis não consegue esconder dos turistas os seus pecados. A Ilha é como a Eva primeira, mas que não quer a maçã e a joga em qualquer canto sujando o templo sagrado chamado natureza. Desconfio até que o éden ficava em algum lugar entre a Tapera e a Costeira, quando o mundo ainda se chamava Gaia e os continentes ainda não haviam se separado – o que nos leva a crer que, um dia, a água que banha este pedacinho de terra era doce, feito caldo de cana que se bebe no Mercado Público.

O tempo é sempre bom, mas chove porque a natureza sabe que é preciso. Chamaremos de benfeitor o alcaide que, um dia, determinar que todos devem captar a água da chuva para os fins de sobrevivência e embelezamento. Assim, teremos preservado nossa espécie e utilizaremos a disposição para cultivar árvores frutíferas e plantas decorativas, devolvendo ao meio ambiente um pouco do presente que recebemos e com o qual passamos em comunhão por todas as estações (inclusive esta de dias e noites acaloradas).

E a chuva que abraça já não será mais de lágrimas da Terra desiludida com sua espécie mais orgulhosa. Envilecida, a humanidade pode não querer ser salva, mas luta com todas as suas forças para ter o melhor para si. Assim também ocorre nesta Ilha, de picuinhas e vaidades estúpidas – mas, no verão, quando os corpos nas praias trajam apenas sungas e biquínis, todos são iguais e fazem parte dessa festa promovida pela deusa Gaia.

> Crônica publicada no Jornal Notícias do Dia em 20/01/2011.

Quando o ano começa


Quando o ano começa, surgem as inquietações de sempre lado a lado com as novas-velhas resoluções, como iniciar o regime alimentar ou terminar aquele livro que ficou na estante. Desejos e ações também aparecem com algum vigor inicial, feito a esperança que, dizem, é a última a nos deixar. Como os dias e os meses estão de volta ao ponto de origem, é inevitável pensar que tudo assim nos parece como se fosse a primeira vez.

Quando o ano começa, nada é mais prático do que esquecer as inflamações da alma, transformando o corpo em inexplorada plataforma de ideias e atividades. Porque quem se mantém parado é estátua, e quem vive de passado é museu – e, muitas vezes, ambos estão juntos. Quem inventou o tempo certamente era um desocupado, dirá um ou outro mais irritado. E as horas do novo ano poderão ser gastas ao bel-prazer.

Quando o ano começa, muitos apontam suas canetas, facas ou enxadas para o futuro. E as ferramentas de trabalho tendem a buscar o sucesso profissional, porque o homem contemporâneo necessariamente é aquilo que faz. Até que chegue o momento no qual as máquinas farão qualquer serviço que requeira esforço físico – uma meta-sociedade –, os seres humanos ainda serão classificados por suas funções e assim nortearão suas aspirações.

Quando o ano começa, algumas explicações passam a ter mais sentido, porque a experiência municia a todos com um maior poder de observação. E a lógica, que se pensava deste ou daquele jeito, será transformada em pensamento pueril, fumaça que se dissipa no vento forte de uma tempestade de ideias. As emoções, pois, preenchem as lacunas dos dias e nada mais será como antes.

Quando o ano começa, outras pessoas aparecem pelo caminho. E os convivas de ocasião passam a integrar a história singular que só pode ser sentida através de um único cérebro. Aceitar o universo é também aceitar a individualidade dos fatos e a inevitabilidade da vida. E é através do outro que os novos tempos parecem mais ou menos agradáveis, mais ou menos compreensíveis, mais ou menos verdadeiros.

Quando o ano começa, é preciso jogar o lixo no lugar certo, reciclando os gestos humanos e aproximando uns e outros do que realmente importa.

Cada qual saberá de si neste ano que inicia e poderá finalmente perceber que quando o ano começa nada será tão igual ou diferente quanto em qualquer outro dia. E tal percepção não será problema algum se o indivíduo também perceber que este é o maior presente que o novo ano poderá lhe oferecer.

> Crônica publicada no Jornal Notícias do Dia em 06/01/2011.