Os olhos do início ao fim inacabado


Inicio o desenho de um rosto pelos olhos – uma técnica que me ajuda nas intermitências da composição artística. Meus estudos sobre as técnicas dos desenhos são incrivelmente escassos para quem almejava tanto de si neste ambiente específico. A mim, os olhos parecem uma porta de entrada para aquele espírito – outros dirão que é o sorriso, e estarão certos e errados igualmente – que culmina ao final do desenho. Daí vem também meu pequeno ranço para com a arte abstrata: sempre a sinto inacabada. Minto em partes. Inacabadas são todas as obras, sobretudo quando o horizonte for a perfeição utópica. O mesmo vale para as obras clássicas, que adquirem novos significados no passar das estações. A arte abstrata ainda me maltrata pela ausência expressa de um começo – ou, vá lá, ao menos de um meio! Mais do mesmo, o abstrato parece fugir do tempo. Outro incômodo!, porque só sei me localizar em meu próprio tempo-espaço. O relógio que habita em mim quer despertar. Por isso, os olhos. Pena que os desenhos únicos não possam piscar. Fechados ou abertos ou semicerrados ou parcialmente ocultos pelos cabelos, os olhos recomeçam a jornada do primeiro hominídeo que se desenhou numa parede daquela caverna ancestral. A face desenhada conta a história que as palavras escritas ocultam de nós.

A Marcha da Insensatez (1984), de Barbara W. Tuchman


A ignorância política se transforma na pior das ignorâncias porque pressupõe a falta de ligação entre os grandes problemas sociais. E não se trata de um problema exclusivamente contemporâneo. Alguém aí se lembra porque Luís XVI e Maria Antonieta perderam as cabeças? Numa palavra: descontrole. Antes como agora, várias foram as oportunidades que os governantes perderam de conduzir a sociedade lado a lado com aqueles que representavam. Nas mal chamadas repúblicas, a escolha de um representante deveria ser o sucesso da maioria. Porém, na maior parte dos casos, um pleito vitorioso se traveste na glória pessoal do político populista. E se Maria Antonieta estava preocupada demais em frivolidades materiais (brioches?!) não parece muito diferente destes mandatários de egos ainda maiores que seus patrimônios financeiros.

A historiadora estadunidense Barbara W. Tuchman, em seu livro A Marcha da Insensatez (1984), apresenta uma curiosa e ignóbil tradição de governantes que buscam políticas contrárias aos seus próprios interesses. De Troia ao Vietnã, a autora desnuda a fragilidade dos governos e afirma: “Sendo óbvio que a perseguição de desvantagem após desvantagem é algo irracional, concluímos, em consequência, que o repúdio da razão é a primeira característica da insensatez”. Por isso, os troianos aceitaram o cavalo; por isso, os Estados Unidos entraram no Vietnã, mesmo que tudo levasse a crer que essa seria uma jogada ruim.

É arriscado especular se vivemos ou não num período de transição, especificamente no caso brasileiro. Da mesma forma, soa pouco prudente imaginar que qualquer período histórico não seja um longo processo transitório – o que dá margem para muitas teorias tão bem fundamentadas quanto inacabadas. E alguma lógica existe para que após um momento tão revigorante quanto o Renascimento apareçam os governos autoritários ao longo do século XX. Inflados por um poder que não lhes é de direito, esses ditadores de ocasião sempre caminham para a inexorável derrota. Mas se duas Grandes Guerras ainda não extinguiram esses déspotas do planeta, há algo de podre nessas democracias tão exaltadas quais sejam americanas ou europeias.

Os ignóbeis políticos brasileiros e de outras nações marcham, mesmo sem saber, para o expurgo. Haverá um tempo em que as mudanças serão irrevogáveis. Nestes dias vindouros, os governantes forjados na insensatez servirão apenas para provocar assombro nos alunos que cursam história, como um capítulo complementar ao livro da Barbara.

A marcha da insensatezEscrito por Barbara W. Tuchman. Originalmente publicado em 1984. Edição brasileira pela Best Seller (2012).

barbaramarcha

Tempos Modernos (1936), de Charles Chaplin


Em todas as áreas da criatividade humana, poucos são aqueles que verdadeiramente podem ser chamados de gênios. Não que sejam melhores ou piores do que qualquer um de nós, mas sim dotados de uma percepção e uma compreensão de mundo raras. E este também é o caso de Charles Chaplin, cineasta genial que transformou o fictício Carlitos num símbolo de transformação por meio da inconformidade.

Ainda que tenha realizado outras obras que fogem à temática social, foi com o elegante vagabundo de bigode quadrado, calçados largos, bengala de bambu e cartola curta que sua arte ultrapassou as fronteiras da chamada indústria cultural. Chaplin, por sinal, foi um crítico contundente da industrialização desmedida. Na obra-prima Tempos Modernos (1936), Carlitos surge na tela qual um peão de fábrica, incapaz de se adaptar ao intenso ritmo exigido por seus muitos chefes. Este herói acidental, mesmo sendo vítima da exploração capitalista, decide não ser um mero cidadão conformado, tomando para si ações vigorosas que acredita serem essenciais. Cada escolha sua desafia o espectador; ele acena com sua singeleza para nós, revelando o óbvio que agora já não parece tão obtuso assim. Somos todos como o trabalhador tomado pelo trabalho, quando deveria ser o contrário. E quando encontra uma pobre garota órfã (Paulette Goddard), enfrenta até mesmo a lei na medida em que seus ideais estão em jogo. A jovem vem acompanhada pela dúvida: será que vai dar certo? Carlitos, sem responder pede que a jovem sorria. Uma estrada vazia aponta para possibilidades infinitas. E percorrer este caminho acompanhado de quem lhe quer bem pode ser mais interessante do que ter as respostas. O american way of life ficará para trás, qual um sonho incompleto.

Carlitos aparenta ingenuidade, mas não se trata disso. A personagem compartilha com seu criador algo muito maior: a sensibilidade artística e social. Chaplin compreende que o cinema mudo não trazia na ausência dos diálogos falados uma deficiência a ser resolvida. Ao contrário: o som se lhe torna um parceiro inequívoco. Carlitos, por sua vez, prosperou com a força da mímica e as palavras não lhe trariam novas sensibilidades. E, por isso mesmo, canta em seu adeus às telas uma canção debochada: a Tintina. Uma pantomima ao reverso, cheia de sentidos ocultos ao melhor estilo non sense.

Desde os primeiros curtas-metragens nos Estúdios Keystone, logo na segunda década do século XX, o ilustre vagabundo nunca se deixou enganar pelos outros, mesmo acreditando que todos possuem um lado bom. Deste modo, seu otimismo não o torna um fraco incapaz de encarar a pauperidade dos dias. Pelo contrário, suas habilidades aparecem justamente quando necessárias. Tirando um sarro de policiais e outras autoridades, Carlitos sempre foi um cidadão que exerceu seus direitos com plenitude. Pleno também o era Charles Chaplin: diretor, ator, compositor, roteirista, produtor. Tempos Modernos, último filme mudo do cineasta, apresenta uma crítica à sociedade ocidental que, sob uma determinada perspectiva, pode até mesmo ter se estabelecido como um clichê. Entretanto, o inconformismo para com a realidade que move Carlitos/Chaplin foi um momento tão singular e genial que dificilmente se repetirá.

tempsmoderns

O melhor dos anos, o pior dos anos


2020 foi o melhor dos anos. 2020 foi o pior dos anos. A referência à abertura de Um Conto de Duas Cidades, romance histórico de Charles Dickens lançado em 1859, também se apresenta qual um lembrete do que desejamos esquecer; do que não esqueceremos jamais. De tempos em tempos, uma geração se coloca numa situação limite. E as provações aparecem. Alteramos o conceito de pandemia para sindemia por razões próprias deste contemporâneo. Talvez nada tenhamos de especiais ou melhores ou maiores em relação àqueles que já se reencontraram no pó.

Para além do mistério insuperável, a vida se faz dentro do infinito particular. O universo, ou tão somente a ideia do universo, cabe dentro de mentes e corações. As hipóteses se confundem sem um critério definitivo. No fim das contas, tudo tende a permanecer em aberto. E, quando se fecham, cicatrizes ou feridas expostas têm a mesma importância. A existência se desenrola noutros corpos que ainda respiram: universos diferentes e, por vezes, quase antagônicos. De ilusão se vive e se morre.

Os que podemos também passamos um ano inteiro reclusos, com pouca interação social; distantes de familiares e amigos; ausentes de encontros e comemorações que jamais ocorreram ou foram postergadas. Os que escrevemos também deixamos um legado em interpretações que se querem miúdas ou que se ambicionam épicas. Tanto faz. A cada qual conforme suas habilidades.

A arte se fez companheira porque sempre esteve ali, mesmo contra a crueza do real e a impassividade daqueles que já não se importam mais com ninguém. Livros, filmes, canções, gibis, fotografias, pinturas… na bagagem de cada universo a expansão em multiversos.

O poeta jamais se cansa, a poeta nunca desiste.

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Noite Estrelada Sobre o Ródano (1888): óleo sobre tela de Vincent van Gogh (1853-1890)

Sangue de Um Poeta (1930), de Jean Cocteau


O humano presente em Sangue de Um Poeta (1930), de Jean Cocteau, projeta o corpo ao mesmo tempo em que projeta no corpo: porque interessado em si mesmo torna-se objeto de sua própria arte. Assim, Cocteau altera o filme, invadindo-o com uma pergunta pessoal que surge feito uma legenda. O poeta-artista trilha na ambição não sem dúvidas e inspirações. Eis o momento do teatro de sombras a parodiar o mito da caverna. A morte em auto-reverse, como um dia que se repete indefinidamente. Os cortes bruscos da edição alteram a noção de um tempo já precário porque poético. As portas que se abrem no filme são também fruto de uma investigação pessoal sobre as artes, a filosofia e a religião. E, então, voltamos ao corpo como cerne da estrutura narrativa, que olha a si mesma qual um espelho. Legenda que se apresenta na película: “Os espelhos deviam pensar um pouco mais antes de refletir as imagens”. O que se torna inútil é todo o resto que não a procura pela arte como divagação necessária. O filme se traveste de clareza e objetividade, por mais surrealista que possa parecer. Desta feita, trata-se de uma metáfora explícita sobre o que é o homem e qual poesia ele quer para si.

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Campo dos Sonhos (1989), de Phil Alden Robinson


Ao menos dois fantasmas indagam Ray Kinsella (Kevin Costner) se o campo de baseball que o fazendeiro construiu no meio da plantação de milho é o paraíso. E Ray diz que não, que aquilo ali é Iowa. E é nessa fronteira simples entre a terra e o céu – razão e sensação! – que flutuam as personagens de Campo dos Sonhos (1989), de Phil Alden Robinson. Kevin Costner, em fase inspirada que vai até Um Mundo Perfeito (1993), de Clint Eastwood, interpreta o típico estadunidense médio, de sonhos perdidos pelo meio do caminho, gente comum que chega ao mundo adulto com a ambição desconstruída. O filme se desenvolve no ritmo de uma pseudo-fábula própria do final dos anos 1980 e começo dos 1990: tom motivacional, cadenciado por frases de efeito constantes, quase como um anúncio do que se tornaria o universo da auto-ajuda nos anos seguintes. A lamentar o fato de Phil Alden Robinson não ter pensado o filme em preto e branco, o que carregaria o simbolismo para o lado da metáfora, deixando à auto-ajuda o espaço de irrelevância que lhe cabe quando o assunto é arte.

sonhos

O ser literário


Disse, nas duas ou três vezes que me perguntaram, que literatura é tudo aquilo que está escrito. Claro, alguns dirão que tamanha isenção ou tão abrangente definição de pouco adianta para fins práticos. A estes, então, cabe toda a liberdade de escolha para pôr as coisas sob suas óticas particulares. Pois se não temos um acordo sob a ortografia que dirá sob uma forma de arte tão singular quanto a literatura?

Dito isto, podemos nos concentrar naquilo que nos apetece: as palavras. Pensamos por meio delas e, ainda assim, não lhes damos o devido valor. A etimologia mais profunda chegará num abismo infinito que atenderá pela dupla alcunha Necessidade-Criatividade. Penso que não existem raízes mais resistentes em quaisquer formas de arte ou comunicação. A Necessidade da palavra – que nasce sonora antes de ser escrita – supre uma condição inerente ao homem de ir além do mundo ao seu redor. Já a Criatividade que lhe acompanha é a explicação de si mesma; imaginamos sua origem a partir de nossa própria mente criativa; talvez seja Deus, talvez seja a ciência, talvez seja outra coisa – e este é um mistério para o qual, de certo modo, estamos preparados.

A palavra escrita e a literatura são entidades que tendem a flertar com uma ideia de imortalidade. Permitimo-nos imaginar um mundo sem nós quando deixamos versos, fatos e versões nalgumas páginas, quer sejam de papel ou não. Escrever é acreditar que o passado fará diferença no futuro. Em verdade, praticamente ninguém escreve para ser lido no mesmo instante. É até meio chato quando alguém fica sob o seu ombro conferindo cada nova letra que surge para complementar a anterior. Assim, o mais exibido dos autores ficará inibido porque a literatura nasceu para ser uma prática solitária, diferentemente do cinema, da música, da pintura…

Imortais ou não, continuamos a escrever. Eu aqui em 2017 e você que agora me lê no século XXII estaremos ligados até o final desta crônica, mesmo que nunca tenhamos nos esbarrado pelo tempo. De qualquer modo, a veia artística da literatura tem muito mais a ver em fazer perguntas do que entregar respostas insatisfatórias. A literatura é sobre ser. É ou não é?

> Crônica publicada no jornal Notícias do Dia em 11/05/2017.

Apelo ao universo


A experiência artística diz muito das nossas pretensões. Por um espelho criativo, seja uma caneta ou uma filmadora, refletimos para além de si porque é preciso navegar. Entristecem-me aqueles que passam pela vida sem arte; nem chegaram a experimentar a magia que nos distingue nesse mundinho fechado – sem deméritos às outras espécies, que se registre. O planeta é uma explosão viva que busca o equilíbrio. Assim foi; assim será.

Quisera uma arte que dê conta de tudo, ‘inda que não esgote o conteúdo. E nosso recorte, desta vez, é o social. Não há como fugir dele, afinal. E não somos ilha para esquecer dos outros. Por sorte, o social é justamente a companhia primeira desde que deixamos o ventre. Choramos e nos encontramos num ambiente quase hostil, despreparado para nossas necessidades. Logo, aprendemos. Adaptamo-nos. Sorrimos.

A sociedade se revela para quem está do outro lado do espelho. Voyeurs. Um pouquinho de observação e fetiche. Deleites e deletérios. Mesmo assim, há uma vontade essencial de se fazer enxergar. Eis a arte, claro. Mas não exageremos ou inevitavelmente cairemos no mau gosto, nas ofensas e nas vaidades cotidianas que nos afastam de nossa própria origem mística. À arte não convém apelar apenas quando se quer chamar a atenção. Este lado apelativo que beira uma publicidade social não é interessante mesmo quando fala de grandes temas. Injustiças econômicas, preconceitos de cor e tom, intrigas de religiosos: a arte apelativa ignora o debate e parte para uma visão maniqueísta das pessoas. E o maniqueísmo está ultrapassado desde sempre – ainda que alguns insistam em lhes dar um respaldo tolo.

Entrementes, um adendo que não é um desdito: apelar é essencial aos artistas. Não se pode compor um poema sem apelar ao coração; não se pode pintar um quadro sem apelar à imagem que temos de nós mesmos; não se pode criar sem ter a si mesmo e aos outros em mente. O apelo em questão se faz necessário ao princípio da arte: transformar mentes e corações. Esta é a evolução da qual somos partícipes. Você pode pensar em destino, em progresso ou no dia do julgamento final. Pense. Mas fique sempre com uma pontinha de dúvida porque não temos o direito (e tampouco seria divertido) de sermos maiores que todas as coisas. Não somos. Eu não quero ser; nem agora, nem depois.

Façamos, por fim, um apelo ao próprio universo para que nos dê ao menos uma chance da eternidade. Pois a finitude não combina com arte e nem com nossas pretensões.

> Crônica publicada no Jornal Notícias do Dia em 17/09/2015.

Alguma margem de erro


Quando o psiquiatra Carl Gustav Jung elaborou o conceito da sincronicidade, ninguém fazia ideia de que o Erro Grupo provocaria reações adversas com sua intervenção Hasard justo num 11 de Setembro, dia histórico dos velho e novo milênios. Mais sincrônico e crônico ainda é algo como a demissão da Ministra da Cultura, Ana de Hollanda, ter ocorrido no mesmo dia, então em 2012, data que o cronista viu Hasard em plena Praça Nereu Ramos, no Centro de Biguaçu.

Nem eu e tampouco Jung previmos tudo isso, mas não deixa de ser um jogo dedutivo que tantas circunstâncias se apresentem concomitantes. E jogos são nossos flertes com o imprevisível. Mesmo num baralho de cartas marcadas, há sempre o momento de perda… Perdemos o controle, ou um sentimento, ou um aspecto simultâneo da realidade que nem chegou a ser. Se Hasard é qualquer coisa muito aleatória, também assim nos parece todo o resto do cotidiano. Mesmo que estejamos juntos, lado a lado, eu e você veremos recortes que serão mais ou menos vagos a partir do que melhor nos aprouver.

Como noutras intervenções, não importa o momento que o espectador/partícipe modifica os rumos da história. E se há uma história, esta é a da humanidade, porque chegamos ao ponto em que tudo se dilui, estejamos atentos aos erros – e ao Erro Grupo – ou não. Como o cidadão não pode fugir da sociedade, a cultura também não escapará ao desavisado transeunte que estava apenas caminhando pela praça para pagar suas contas, ou comprar novos bens (bons ou maus) materiais.

As quatro performances que acontecem em sincronia durante Hasard são infinitas porque também se parecem com os fractais – pois que um fractal pode ser dividido em várias partes, todas semelhantes ao modelo original. E nesse mundo matemático-analítico, que mistura uma ministra demitida, violações sociais históricas (11 de Setembro, seja no golpe chileno de 1973 ou nos atentados aos estadunidenses em 2001), os pensamentos de uma práxis junguiana e tantos outros jogos mais, pouco vale perder ou ganhar. As muitas crianças e jovens que acompanharam a intervenção em Biguaçu foram e são testemunhas de que o divertimento (o motivo mais nobre da cultura) se dá por formas inesperadas. E o inesperado também é sincrônico, e cômico, e econômico na medida em que toda forma contemporânea de arte esconde ou mostra uma face do mercado.

Não interessa que a sociedade não compreenda a sincronicidade. Há muito mais experiência em cada segundo da realidade que qualquer conceito ou crônica urbana possam revelar. E isso é um problema?, você me pergunta. Não, respondo: basta admitir que num jogo é possível perder e ganhar com alguma margem de erro.

> Crônica publicada no Jornal Notícias do Dia em 13/09/2012.

Manifesto sobre a arte popular


Olhando por um sentido menos apaixonado ou aguerrido para com a arte popular, ficaremos um pouco ressentidos se lembrarmos que tudo poderia ter sido muito diferente, mais bem acabado e, obviamente, melhor. Porque essa necessidade de diversão ou essa pseudo-esperteza de alguns criadores nada mais é do que um sintoma mal inventado, mesmo que pareça fazer sentido sobre todas as coisas. Até o soldado sabe que “fazer sentido” nada mais é que uma obrigação involuntária. As rotinas, por certo, raramente são planejadas por quem espera sempre mais dos outros e de si mesmo. Essa falência de um bem querer (desejar o melhor) só teve no materialismo de nossos dias um retrato infiel e característico de um sonho que não deu certo. Vingou, isso é verdade, mas quando todos acordarem, se acordarem, verão que o assombro durou muito além do imaginado. A arte popular, outrora o que nos esperava atrás do arco-íris, caiu feito uma chuva torrencial; enxurrada de não-ideias largada a esmo. Mais do mesmo. E o complicado é que a repetição da prática não levará à perfeição. Dentre todas essas viagens pessoais, sociais ou planetárias, não existe um espaço claro de imensidão utópica. Tudo ao rés-do-chão como um chinelo surrado; os passos claudicantes num prejuízo preciso à longa caminhada humana. Poderíamos falar, em última estância, da natureza e seus fenômenos irracionais. Mas isso ficou démodée como todo o resto. A consciência está cuspindo para cima, sem saber para onde ir ou mesmo quem encontrar para ter com alguma coerência. Ainda que a ciência não queira viver na escuridão, almejando inclusive a totalidade do universo, soa-nos distante o sentimento de liberdade, parecendo pouco menos verossímil que um comercial de refrigerantes. Ou de cerveja. E, particularmente, fico preocupado com o amor, um velho guerreiro expatriado pela inconformidade de um tempo sem espaço. Se houve um esquecimento abissal dentro das estruturas da arte popular este se deu com o amor, porque ele não pode se proteger atacando, diferentemente de tantas outras intenções. O amor foi a intenção primeira que se tornou grande, mas padece de ir ainda mais para longe do senso comum – eis o conflito de criador e criatura chegando ao ponto mais extremo. Não acredito – novamente, lembro que esta é uma opinião individual sem a obrigação de ser compartilhada – que o clímax da arte popular surgirá da pressão das massas, tampouco que as elites sofrerão o revés mental para uma mudança significativa. Em algum momento, o amor sumirá sem deixar vestígios… e ninguém fará nenhuma arte para impedir.

> Crônica publicada no Jornal Notícias do Dia em 16/08/2012.

Possibilitando a informação


“O jornalismo é a arte de informar o possível. Às vezes, porém, um repórter ou um grande homem de imprensa é tentado pelo impossível, pelo que não aconteceu mas interessaria a alguém que tivesse acontecido. Então aparece o sensacionalismo, a chantagem e a corrupção na imprensa.”

A frase acima é do editor do livro Imprensa Corrupta, de Donald Curtis. Não se trata, porém, de um estudo sobre as vicissitudes legais do mundo da mídia. O livrinho (126 páginas em formato de 15×10 cm, Cr$ 350 à época) é um destes corriqueiros enredos policiais que encontramos nos sebos em troca de algumas moedas.

Curiosamente ou não, a expressão a arte de informar o possível nunca dantes tinha passado por meus olhos em se tratando de que cursei por quatro anos uma faculdade de jornalismo. De fato, o senso comum privilegia uma idéia de que o jornalista tem de saber tudo sobre tudo e, por vezes, conhecer a verdade de antemão. Não almejo aqui discorrer sobre o conceito de verdade (s), mas sim sobre a idéia de possibilidades. Tudo o que é escrito tem um quê de arte e a informação existe sempre, quer queiramos ou não.

Desta feita, não há informação incompleta. Explico melhor: se uma agitação numa casa me salta os olhos, tenho ali uma informação completa. Porém, se quiser saber se aquilo é uma festa, quem está in loco, o que motivou aquela situação, (enfim, o famoso lead jornalístico), aí serão várias informações conjuntas que me derão uma visão geral deste micro-cosmo. Em princípio, todo conhecimento agregado é sempre bem-vindo. Daí entramos no que alguns chamariam de aprofundamento, outros de erudição – o que, convenhamos, nada mais são do que meros rótulos.

Por questões de meio e público, amiúde, o jornalista não pode se estender demasiadamente sobre um assunto; o que para os historiadores é mais necessário – ainda que o historiador também se detenha em algumas informações para construir verdades ou visões. Isso não impede que o texto jornalístico seja interessante e completo na medida em que se propõe a informar o possível, como bem colocado pelo editor do livro de bolso acima citado.

> Crônica publicada no Jornal Notícias do Dia em 15/09/2009.

À luz da desobediência


Quando os malabaristas da vida colocam a essência da arte apoiada num pedestal de madeira, os artistas do grande circo político se deixam levar por mal amados falastrões, cheios de vaidade, unilaterais naquilo que mais apetece a estupidez vigente.

A vingança dos munícipes, então, dá-se nos votos nulos e nas arquibancadas tão vazias quanto os discursos dos mandatários. O que se esconde nas entrelinhas da cidade não cabe num livro de memória, tampouco num romance de aventuras épicas. É pelo outro que aqueles saem de casa diariamente dispostos a enfrentar um tempo ruim, um salário lamentável e uma interpretação rasa das dicotomias salutares. E não convém salvar o mundo quando o prazo de validade já está vencido.

Ainda mais obtuso que os conceitos postos na (falta de) prática, são os relatos dos patrões sabichões, estes que nada dizem de coerente e estão dispostos a usar de táticas ultrapassadas para tentar controlar o que não pode ser controlado. Mesmo o trânsito, esse passeio urbano de horas mutantes, mal resiste às indicações coloridas dos semáforos que piscam na raiva do vermelho, na angústia do amarelo e no alívio do verde. E é quando a vermelhidão da luz ressurge que os malabaristas voltam à cena, como se fosse possível desafiar aos bastardos inglórios com bolas, bastões e um fogo ligeiro que sai das bocas feito um grito. Não há comédia, nem mesmo cultura que resista ao que nos surpreende pelas ruas e avenidas. São mistérios que as mais rebuscadas das teorias não são capazes de desvendar.

Aos críticos de toda sorte resta o mau humor como proteção ilusória de governos provisórios que se eternizam nas mesmices das mudanças. Bem por isso que a desconstrução tem de ser cadeira imprescindível nos bancos escolares, quase como uma ode à desobediência civil, ou um cuspe na cara (com ou sem fogo) daqueles que mal ditam os passos passageiros. Sem verdades ou mentiras, com vozes roucas ou inaudíveis pois que escritas, a saudade ainda é o mais importante porque distante está presente.

> Crônica publicada no Jornal Notícias do Dia em 13/08/2009.

Esperança e Nostalgia


Uma forma divertida de pensar os relacionamentos entre artistas e suas obras é colocando-os em duas categorias distintas, faces opostas da mesma moeda: os nostálgicos e os esperançosos.

Aos nostálgicos convém a inequívoca sensação de um olhar para si, mesmo quando se trata de entender o pensamento alheio. Esta forma de expressão artística está fundamentada no que seriam registros de sentimentos perdidos. Como se fosse possível colocar numa obra de arte tudo aquilo que a memória guarda de mais interessante, independente dos valores pessoais e julgamentos mais simplistas como belo ou feio, sensível ou bruto, humano ou demasiado humano. A nostalgia, alguém já disse, é lembrar muito mais do que poderia ter sido e não daquilo que de fato a história guardou.

Já os artistas esperançosos avaliam que toda a existência até este momento é um ensaio para aquilo que nunca chegaremos a ser e, mesmo assim, têm plena convicção dos tempos vindouros como um objetivo a ser perseguido. As produções artísticas dos esperançosos constituem de um verdadeiro painel da diversidade social; são sofismas invertidos, realidades construídas com base numa não-existência futura sincronizada com os desejos presentes. A esperança é um bem inalienável, assim como a arte também o é para os artistas e seus admiradores.

Por mais distante que pareça, esperança e nostalgia são tão próximas que se torna impossível determinar quando uma termina e a outra começa. E estes artistas nada mais são do que viajantes do tempo, interessados não noutra coisa além da própria humanidade.

> Crônica publicada no Jornal Notícias do Dia em 20/11/2008.