A política é um exercício prático


Já estava cansado de ouvir tantas mentiras, distorções e comentários estúpidos sobre os dilemas políticos de seu tempo. Por mais que agisse com garbo e distinção (num tipo de nobreza que só ele próprio compreendia), a saturação dos infortúnios noticiosos lhe causara certo desconforto corporal, como se estivesse numa academia de musculação pela primeira vez.

O que mais lhe parecia surreal era a falta de lógica nos discursos formados por partes desiguais de falta de informação. Citavam uns aos outros sem estabelecer uma razão inicial. As conversas daqueles dias replicavam medos travestidos de preconceitos. Caluniadores e irresponsáveis se tornavam mitos por quaisquer bobagens. Era um universo de dados e números e estimativas que nada revelavam porque estavam sujeitos à investigação simplória. Faltavam, sobretudo, perspectivas – sob todos os pontos de vista.

Não estava fugindo do mundo, não. Pelo contrário. Saía da cama logo cedo com a disposição dos altivos. O desafio de encarar o mundo sob suspeita lhe despertava ainda mais constante que o cuco do relógio na sala de estar. Trocou, claro, algumas rotinas que lhe eram antigas – da época em que deixara a casa dos pais para alugar um apartamento no subúrbio. Talvez a falta de uma esposa lhe definira uma visão contextual mais enxuta. Antes que lhe pensem mal, assumo a responsabilidade ao afirmar que jamais se considerou o dono da verdade ou coisa que o valha. Humilde, mas não ingênuo. Moderado, mas firme em suas ideias. Um cara que poderia ser aquele vizinho que escuta música lenta bem alta nos fins de semana. Alguém que nunca se candidataria a nenhum cargo público.

Mas o abatimento para com as questões políticas era mesmo um sintoma extemporâneo. E, como a nostalgia, não tinha explicação. As angústias que lhe sangravam as ideias batiam como as ondas nos rochedos. A erosão e os sentimentos tendiam a se repetir porque o tempo segue em linha reta, mas a história é tão curva que chega a dar voltas sobre si. A política não era e nem é uma forma de ver as coisas. A política é um exercício prático que separa a humanidade de outras espécies tão espetaculares quanto ela própria. Aos políticos não deveriam caber obrigações, mas unicamente a vontade de ser diferente da natureza – bruta e impiedosa que só ela! Ainda assim, o que sobram se não promessas vazias e improbidades administrativas?

Naquele dia, não quis saber das notícias. Desejou bons dias à vizinha de apartamento e foi deitar cedo. Na manhã seguinte, começou a escrever a História.

> Crônica publicada no Jornal Notícias do Dia em 31/03/2016.

Recados de Marte


Quando a exploração humana em Marte teve início, sondas robóticas encontraram um planeta com pouco potencial, mas com um jeitinho todo especial. Os cientistas e demais interessados percebiam que aquele planeta traduzia a possibilidade dos primeiros passos em colônias fora da Terra. A Lua ficara para trás, avaliada apenas como uma bola rochosa gigante que influencia as marés e os cortes de cabelo.

Os primeiros humanos que pisaram no planeta vermelho jamais voltaram à Terra – não havia como, e eles sabiam disso. Mesmo assim, viveram bem em casulos artificiais que simulavam com muita propriedade as condições naturais terrestres. Tornaram o solo fértil e souberam como reaproveitar a água congelada encontrada no planeta. Eram pioneiros que tinham de lidar com a alta tecnologia dos equipamentos que permitiam a vida, mas também sabiam conviver com algum bucolismo de uma existência voltada à agricultura.

Por questões orçamentárias, no início foram enviadas não mais que uma dúzia de pessoas. Seis mulheres e seis homens de diversas nacionalidades com o objetivo de começar uma sociedade igualitária. Décadas mais tarde, os casulos ficaram muito maiores. O maior deles fora batizado como Supernova Iorque, por abrigar duas vezes a população da Grande Maçã original. Marte, agora, era um local atraente. O planeta inóspito de antes começara a dar sinais próprios de terraformação. A primeira árvore que brotou fora de um casulo foi notícia em dois mundos. O futuro promissor e a digna organização social deixaram a Terra em segundo plano. A moda agora era ter uma família marciana, como eram chamados os nascidos neste novo mundo sem índios.

Ninguém soube exatamente de quem ou de onde viera a primeira ordem legitimamente marciana: outro tipo de controle era preciso. Até então, todas as famílias ou indivíduos solteiros tinham de produzir sua própria comida e ajudar na manutenção do casulo. Isso não era visto como um ato obrigatório, mas sim um livre exercício de apego à sociedade. Desta vez, porém, este “outro tipo de controle” pegara-os de surpresa. Como ficariam os relacionamentos dali em diante? Qual a razão para questionar a harmonia vigente? Sem respostas concretas, foram à eleição assim mesmo. O administrador escolhido era um dos moradores mais antigos de Supernova Iorque, filho dos primeiros colonizadores. Ele aceitou a função com alguma relutância e prometeu mudanças. Anos depois, foi retirado do poder por suspeitas de corrupção.

Foi assim que começou o próximo erro humano.

> Crônica publicada no Jornal Notícias do Dia em 24/03/2016.

Predicados litorâneos


Quem mora no litoral sabe que o calor quase sempre vem acompanhado de uma chuva passageira. É um jeito divertido de a natureza oferecer a companhia do mar, o calor tão indispensável à vida e, ao mesmo tempo, lavar tudo como quem apazigua os ânimos mais exaltados.

Para o verão, temos um incremento considerável nas chuvas, no calor e em tudo o mais porque a natureza é tão mágica quanto científica. Vide o caso desta Ilha, capital do estado e das discórdias emocionais. Esta cidade, carinhosamente apelidada por estrategistas publicitários de “ilha da magia”, é igualmente um paraíso da ciência construído a partir das mais imbricadas e complexas relações químicas. Átomos, quarks e bósons fazem valer sua presença tanto quanto as bruxas e outros seres fantásticos elencados por Franklin Cascaes. E é justo que seja assim, porque deuses e homens sempre compartilharam do mesmo universo.

Se a natureza foi divina para com a Ilha de Santa Catarina, devemos-lhe prestar algum tributo; seja numa crônica ou tomando um banho de mar antes que comece a chover. Estas homenagens, claro, dão-se cotidianamente ao longo do ano, mas acentuam-se no verão porque, então, a cidade torna-se amplamente ocupada, como se não houvesse lugar vazio ou inexplorado. Há locais, sim, subjugados à vontade de uns poucos – reservados pela separação física inerente ao capital. Mas o verão sempre foi uma estação marginal e, como tal, destinada à democracia muito mais que suas três irmãs. A chuva que cai molha o rico e o pobre deitados sobre o mesmo solo arenoso chamado praia. Uns bebem champanhe, outros cervejas populares: todos saúdam a algo muito maior e mais relevante.

Hoje, aqui no litoral, é dia de compor uma ode ao verão. Por isso, pego meu violão e sigo toda vida reto até a primeira praia que me apetece. Não estou nem aí para o trânsito lento, as buzinas mal educadas ou a fumaça dos veículos. As únicas reações químicas que me interessam passam longe da combustão que nos leva de lá para cá. Sigo contra a corrente, mas a favor da maré e dos mares. Navego sem conexões wi-fi.

Pronto, cheguei. Sinto-me mais do que preparado para traduzir em melodia esses predicados litorâneos sempre ligados a sujeitos ocultos e felizes. Enquanto o sol ponteia o horizonte, ponteio cá as cordas do violão comprado em dez prestações. Agora, a canção está pronta, mesmo que ninguém além de mim a conheça ou venha a conhecê-la. Será para sempre um mistério não resolvido disputado pela magia e pela ciência: um empate técnico sob a chuva.

> Crônica publicada no Jornal Notícias do Dia em 03/03/2016.