Mas o que era Carlitos para Chaplin? A personagem de si mesmo antes da fama ou, justamente, por causa da fama. Poeta visual da crítica social que não perde o foco do drama urbano, inglês, americano, burguês, mundano, de qualquer um que já sentiu o estômago roncar em demasia.
Nascido em uma família complicada (e qual não é?), Chaplin soergueu a persona de si mesmo no vagabundo e foi além. Adotou a criança, ainda que mal tivesse sustentação para si próprio [O Garoto (1921)]; participou de uma insana corrida pelo ouro no frio devastador, devorando uma botina para não morrer de fome [Em Busca do Ouro (1925)]; entrou na jaula do leão, prisioneiro das próprias desventuras, vítima das circunstâncias [O Circo (1928)]; encantou-se pela moça que vendia flores, mulher que não enxergava a beleza com os olhos, mas entendia das outras sensações [Luzes da Cidade (1931)]; encontrou emprego num trabalho alienador, num maquinário desumano sem propósito algum, circulando entre as peças como uma película num projetor, exaltando e lamentando ter de fazer uma arte que denunciava a exploração óbvia de uns poucos sobre muitos outros [Tempos Modernos (1936)]; trocou, enfim, de papel com o ditador impiedoso, porque falar é urgente em momentos extremos, mesmo se o lugar de origem for no cinema mudo [O Grande Ditador (1940)].
Após três casamentos com atrizes estadunidenses (Mildred Harris, Lita Grey e Paulette Goddard), foi ao lado de uma atriz britânica que terminou seus dias numa relação que ultrapassou três décadas. Oona O’Neill, filha do dramaturgo Eugene O’Neill, tornou-se o porto seguro na vida do gênio exilado, indispensável também por manter o vigor criativo daquele artista apaixonado. Mas Charles Spencer Chaplin já não era mais bem vindo na mesma América que lhe possibilitara o sucesso. Em 1952, visitou a terra natal, a Inglaterra natal!, numa viagem que seria curta. J. Edgar Hoover, chefe do Departamento Federal de Investigação (FBI) dos Estados Unidos, aproveitou a oportunidade para arquitetar a revogação do visto de Chaplin, que se exilou na Suíça com alguma mágoa, por óbvio.
Nas suas quatro últimas produções originais, Monsieur Verdoux (1947), Luzes da Ribalta (1952), Um Rei em Nova York (1957) e A Condessa de Hong Kong (1967), Chaplin compreendeu que Carlitos estava aposentado e imortalizado. O vagabundo se tornara um símbolo de uma sociedade forjada em estruturas que ultrapassaram a moral da primeira metade do século XX. Duas Grandes Guerras arrefecem qualquer um que tenha um coração no lado correto do peito. Porque atento ao contemporâneo, o artista como que antecipou as próprias cruezas de um capitalismo cada vez menos interessado no trabalhador fabril. Sem a esteira fordista, sem os ditadores imorais, Chaplin voltou-se à política miúda de personagens que frequentavam as elites globais num cenário de Guerra Fria.
No final da década de 1960, a saúde de Chaplin iniciou um processo de queda gradativa. Entrementes, em 1972, ainda viajaria para os Estados Unidos para receber um Oscar Honorário aos 83 anos de idade. “As palavras parecem fúteis e fracas. Posso apenas dizer obrigado pela honra deste convite”, disse ao receber aquele prêmio que tentava corrigir um erro histórico. O cinema comercial ansiava por fazer as pazes com a arte e Chaplin já não almejava pelo combate franco de antes. Talvez houvesse ali alguma resignação de ter feito mais do que o suficiente – mesmo que nunca ninguém o faça, dada a nossa condição humana de eterna insatisfação.
Aos 88 anos, Chaplin morreu dormindo no Dia de Natal de 1977, levando consigo parte significativa da história contemporânea. Seus filmes, porém, permanecem, como um legado sublime da arte ocidental. De alguma forma, a primeira metade do século XX se fundiu a um tipo de cidadão muito singular: um sujeito com um fraque desbastado, um chapéu coco fazendo as vezes de cartola elegante, sapatos largos e furados, bengala meramente de uso estético e ainda um bigode curto, raspado nas pontas, transformando Carlitos e Charles Chaplin num fenômeno tão raro que não cabe qualquer comparação.