Charles Chaplin (1889-1977)


Mas o que era Carlitos para Chaplin? A personagem de si mesmo antes da fama ou, justamente, por causa da fama. Poeta visual da crítica social que não perde o foco do drama urbano, inglês, americano, burguês, mundano, de qualquer um que já sentiu o estômago roncar em demasia.

Nascido em uma família complicada (e qual não é?), Chaplin soergueu a persona de si mesmo no vagabundo e foi além. Adotou a criança, ainda que mal tivesse sustentação para si próprio [O Garoto (1921)]; participou de uma insana corrida pelo ouro no frio devastador, devorando uma botina para não morrer de fome [Em Busca do Ouro (1925)]; entrou na jaula do leão, prisioneiro das próprias desventuras, vítima das circunstâncias [O Circo (1928)]; encantou-se pela moça que vendia flores, mulher que não enxergava a beleza com os olhos, mas entendia das outras sensações [Luzes da Cidade (1931)]; encontrou emprego num trabalho alienador, num maquinário desumano sem propósito algum, circulando entre as peças como uma película num projetor, exaltando e lamentando ter de fazer uma arte que denunciava a exploração óbvia de uns poucos sobre muitos outros [Tempos Modernos (1936)]; trocou, enfim, de papel com o ditador impiedoso, porque falar é urgente em momentos extremos, mesmo se o lugar de origem for no cinema mudo [O Grande Ditador (1940)].

Após três casamentos com atrizes estadunidenses (Mildred Harris, Lita Grey e Paulette Goddard), foi ao lado de uma atriz britânica que terminou seus dias numa relação que ultrapassou três décadas. Oona O’Neill, filha do dramaturgo Eugene O’Neill, tornou-se o porto seguro na vida do gênio exilado, indispensável também por manter o vigor criativo daquele artista apaixonado. Mas Charles Spencer Chaplin já não era mais bem vindo na mesma América que lhe possibilitara o sucesso. Em 1952, visitou a terra natal, a Inglaterra natal!, numa viagem que seria curta. J. Edgar Hoover, chefe do Departamento Federal de Investigação (FBI) dos Estados Unidos, aproveitou a oportunidade para arquitetar a revogação do visto de Chaplin, que se exilou na Suíça com alguma mágoa, por óbvio.

Nas suas quatro últimas produções originais, Monsieur Verdoux (1947), Luzes da Ribalta (1952), Um Rei em Nova York (1957) e A Condessa de Hong Kong (1967), Chaplin compreendeu que Carlitos estava aposentado e imortalizado. O vagabundo se tornara um símbolo de uma sociedade forjada em estruturas que ultrapassaram a moral da primeira metade do século XX. Duas Grandes Guerras arrefecem qualquer um que tenha um coração no lado correto do peito. Porque atento ao contemporâneo, o artista como que antecipou as próprias cruezas de um capitalismo cada vez menos interessado no trabalhador fabril. Sem a esteira fordista, sem os ditadores imorais, Chaplin voltou-se à política miúda de personagens que frequentavam as elites globais num cenário de Guerra Fria.

No final da década de 1960, a saúde de Chaplin iniciou um processo de queda gradativa. Entrementes, em 1972, ainda viajaria para os Estados Unidos para receber um Oscar Honorário aos 83 anos de idade. “As palavras parecem fúteis e fracas. Posso apenas dizer obrigado pela honra deste convite”, disse ao receber aquele prêmio que tentava corrigir um erro histórico. O cinema comercial ansiava por fazer as pazes com a arte e Chaplin já não almejava pelo combate franco de antes. Talvez houvesse ali alguma resignação de ter feito mais do que o suficiente – mesmo que nunca ninguém o faça, dada a nossa condição humana de eterna insatisfação.

Aos 88 anos, Chaplin morreu dormindo no Dia de Natal de 1977, levando consigo parte significativa da história contemporânea. Seus filmes, porém, permanecem, como um legado sublime da arte ocidental. De alguma forma, a primeira metade do século XX se fundiu a um tipo de cidadão muito singular: um sujeito com um fraque desbastado, um chapéu coco fazendo as vezes de cartola elegante, sapatos largos e furados, bengala meramente de uso estético e ainda um bigode curto, raspado nas pontas, transformando Carlitos e Charles Chaplin num fenômeno tão raro que não cabe qualquer comparação.

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Fred Astaire (1899-1987)


Um braço envolvia Ginger Rogers, o outro conduzia a parceira de dança, enquanto Fred Astaire cantava que estava no céu, como um anjo flutuando entre as nuvens acompanhando a melodia, dando um sentido sofisticado à própria ideia de interpretar. As contribuições de Astaire ao cinema, como na cena descrita anteriormente do clássico filme O Picolino (1935), são fundamentais para entender a história da sétima arte, suas nuances evolutivas – o aparecimento do som! – e, ainda, a relevância dos gêneros que consagraram artistas de elevado talento.

A sofisticação de Fred Astaire é genial porque genuína. Se havia uma persona para além do indivíduo, esta era o resultado de uma dedicação técnica sem precedentes e, tampouco, descendentes. Ninguém dançava como ele. E, ainda hoje, sua destreza física parece ser inalcançável, mesmo que Michael Jackson tenha flertado com a mágica do sapateado astairiano. Um exemplo clássico de que o improviso advém de muito preparo e ensaio.

Astaire iniciou a carreira fazendo dupla com sua irmã, quando ambos ainda eram crianças. Após o final da parceria familiar em espetáculos amadores, Fred logo subiu nos principais palcos dos Estados Unidos e da Europa. E não tardou a ser convocado para se eternizar nas imagens em movimento. Assim, o cinema se tornou seu maior parceiro, enquanto Ginger Rogers a sua grande companheira em cena, somando 10 filmes juntos.

Porque compreendia que os filmes musicais precisavam ir além de canções e danças, Astaire fez sua visão prevalecer: as músicas passaram a ampliar os roteiros e as cenas ganharam mais conteúdo, privilegiando o trabalho dos bailarinos e não a ousadia de planos rebuscados ou a edição repleta de cortes. Lição de um mestre que fora aprendida também por outro dos mais importantes atores de musicais: Gene Kelly. Por falar em Kelly, o próprio artista revelou que a sua melhor companhia nas danças não se dera com nenhuma atriz, mas sim com Astaire, no clássico Ziegfeld Follies (1945), em um segmento dirigido por Vincente Minnelli, outro ícone dos musicais nos anos dourados de Hollywood.

Música e cinema foram feitos um para o outro. Basta lembrar que, mesmo na época em que os filmes eram mudos, muitas sessões contavam com um pianista ou um conjunto de músicos acompanhando a cadência da projeção. Difícil foi conter os ânimos na sala de cinema para que o público não afastasse as poltronas e começasse a dançar. Porque a história da arte também sempre teve a ver com ritmo. E, no final da dança, a sofisticação sob medida de Fred Astaire deixa o público no céu.

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Marilyn Monroe (1926-1962)


Ao mesmo tempo em que a história se realiza a partir de pequenos grandes momentos, o cinema se completa com cenas tão modestas quanto nobres. E poucas imagens se fizeram tão intrínsecas à sétima arte quanto o vestido esvoaçante de Marilyn Monroe em O Pecado Mora ao Lado (1955), de Billy Wilder. Claro que não cabe os méritos da cena devem ser compartilhados – o cinema é uma arte de equipe por excelência! –, mas o poder visual da atriz permanece como um fato indiscutível.

Ainda que conhecida e lembrada por papéis quase sempre de garotas ingênuas ou interesseiras, não há como negar: o talento de Marilyn saltava aos olhos. Entrementes, as performances da atriz nas películas soaram ligeiramente parecidas umas para com as outras. Uma realidade característica da chamada Era dos Estúdios, quando fórmulas pré-estabelecidas cerceavam a versatilidade de suas principais estrelas. Logo, a sensualidade ficara qual marca indelével da diva loura enquanto o dinheiro das bilheterias abarrotava os cofres dos seus empresários em Hollywood.

Apesar dos estigmas, Marilyn Monroe eternizou sua relação para com o cinema ao trabalhar com alguns dos melhores diretores em uma curta e produtiva carreira. Wilder repetiu a dose com a atriz no icônico Quanto Mais Quente Melhor (1959). Howard Hawks, um às atrás das câmeras em gêneros tão distintos quanto o faroeste ou as comédias românticas, tirou o melhor da atriz nos divertidos O Inventor da Mocidade (1952) e Os Homens Preferem as Loiras (1953). E Otto Preminger a colocou num papel ligeiramente mais sério no excepcional O Rio das Almas Perdidas (1954). Para além do imprescindível, talvez nem seja preciso elencar as parcerias com outros grandes mestres como Henry Hathaway, George Cukor e John Huston.

Mas se o cinema lhe sorriu, a vida pessoal foi um amontoado de momentos felizes intercalados por períodos atribulados. Norma Jeane Mortenson passou por lares adotivos, lidou com relacionamentos que não deram certo, além de fazer uso excessivo de drogas para dormir – que pode ter lhe causado a morte em 1962, quando ainda estava no auge aos 36 anos. Marilyn partiu cedo demais, mas suas pequenas grandes cenas ficarão para sempre!

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Judy Garland (1922-1969)


O ano de 1939 foi um dos mais icônicos na história do cinema estadunidense. E seria especialmente definitivo para Judy Garland, que protagonizava em technicolor O Mágico de Oz, de Victor Fleming. Mas Garland também estava bem acompanhada: John Wayne aparecia soberano em No Tempo das Diligências, de John Ford; James Stewart, já consagrado, estrelava A Mulher Faz o Homem, de Frank Capra; e, claro, Clark Gable e Vivien Leigh apareciam na mega-produção …E o Vento Levou, finalizado pelo mesmo Fleming.

Mas o clássico musical que imortalizaria a canção Over The Rainbow foi singular tanto na produção hollywoodiana daqueles anos dourados quanto na vida pessoal da talentosa Garland. A atriz, que começara no cinema aos dois anos e meio de idade, praticamente teve a infância e a juventude consumidas pela indústria. Durante a escolha do elenco, alguns afirmavam que Judy, aos 16 anos, era muito velha para encarnar a infante Dorothy dos livros de L. Frank Baum. Mas Louis B. Mayer, chefão do estúdio MGM, apostou na atriz e o resto é história… ainda que não das mais felizes.

A atriz tinha dificuldades em manter o peso e, para sedimentar sua imagem de estrela, o estúdio lhe impôs remédios de emagrecimento. Assim, começou um vício em drogas que lhe acompanharia até o final da vida, época em que se encontrava relativamente afastada do cinema.

Em 1944, quando estrelou Agora Seremos Felizes, de Vincente Minnelli, a atriz de 22 anos já havia participado de 19 produções. Desta vez, Judy quase recusou o papel da adolescente do começo do século, mas Minnelli soube convencê-la naquela que pode ser considerada uma de suas melhores performances em cena. Um ano após o filme, Garland e Minnelli se casaram e, outro ano mais tarde, nasceria a filha do casal: Liza Minnelli, que herdaria o talento cênico e vocal da mãe.

Ainda seria indicada ao Oscar como melhor atriz no filme Nasce uma Estrela (1955), de George Cukor, e como melhor atriz coadjuvante em Julgamento em Nuremberg (1961), de Stanley Kramer – mas o prêmio lhe escapou nas duas oportunidades.

Judy Garland teve três filhos e se casou cinco vezes. Morreu de overdose acidental aos 47 anos. Sua obra permanece com aquele mesmo frescor inocente, trazendo em si mesma uma nostalgia agridoce típica de Hollywood. Os dramas pessoais da atriz são um exemplo clássico da distância entre a vida dentro e fora das telas de cinema. Além do arco-íris, os sonhos se tornam realidade, mas nem sempre do jeito que as pessoas desejam.

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Humphrey Bogart (1899-1957)


Seu rosto de traços fortes não era assim tão belo quanto o de Cary Grant. Sua elegância em cena poderia até não ser tão charmosa se comparada a de Clark Gable. Sua atuação impiedosa nem mesmo ecoava tão emocional como a de Marlon Brando. Mesmo assim, parece haver algo em Humphrey Bogart que falta em todos os outros atores: Bogie era “o cara”. Ou, ainda, “a cara” do cinema estadunidense.

Descoberto no teatro, seus primeiros filmes na década de 1930 não foram grandes sucessos. Ainda que tenha feito boas parcerias com grandes diretores, caso de Beco Sem Saída (1937), de William Wyler, somente na década seguinte Bogart cravaria seu nome na sétima arte. Com as produções Relíquia Macabra (1941), de John Huston, Casablanca (1942), de Michael Curtiz, Uma Aventura na Martinica (1944), de Howard Hawks, e À Beira do Abismo (1946), também de Hawks, a persona cinematográfica de Bogart estava praticamente estabelecida.

Mesmo com as atenções sobre si, o ator encarou o trabalho durante a chamada Era dos Estúdios em Hollywood com extremo profissionalismo. Certa vez, referindo-se aos comentários sobre sua atuação, comentou: “Eu queria dizer aos críticos que eu preciso, de verdade, saber atuar para engolir água sabor caramelo e fazer o público acreditar que é uísque”. Uma frase com a ironia fina ou cinismo requintado que caracterizou boa parte de seus papéis, inclusive aquele que o imortalizou em cena: Rick Blaine, o herói amargurado de Casablanca.

Casablanca abordava a Segunda Grande Guerra enquanto conflito acontecia. E Blaine surgia na tela qual figura rara, aparentando certa indiferença, mas alguém que no seu âmago sabia que a vitória seria dos aliados. Por isso, pela presença de Ingrid Bergman, por ser uma história de amor, por ter um roteiro certeiro com diálogos divertidos, e por milhões de outros motivos, Casablanca e Bogart se tornaram ícones de um período fundamental na história do cinema. Não por acaso, o renomado American Film Institute o elegeu como a maior estrela masculina do cinema norte-americano em todos os tempos. E quem há de discordar?

HumphreyBogart

Uma Aventura na Martinica (1944) e Os Homens Preferem As Loiras (1953), ambos de Howard Hawks


Howard Hawks equilibrou seu cinema com um toque de mestre: sustentar suas películas no pilar da empatia de seus atores e suas atrizes. Como retribuição, Hawks pôde trabalhar com as mais famosas e talentosas personalidades dos anos dourados ou prateados de Hollywood.

Para decifrar o cinema de Hawks tanto em Uma Aventura na Martinica (1944) quanto em Os Homens Preferem As Loiras (1953), a proximidade jamais pode ser deixada de lado.

A trama folhetinesca de Uma Aventura na Martinica, baseada numa história de Ernest Hemingway com roteiro de William Faulkner, extrapola os limites da simpatia por meio do casal de protagonistas. Suas personagens quase sempre estão próximas umas das outras e, também, da lente da câmera. Tal circunstância ganha contornos ainda mais curiosos porque Hawks não é um adepto contumaz da utilização de closes. O diretor refuta veementemente a obviedade dramática do close em favor de um olhar que humaniza as cenas – e o carisma de suas estrelas só faz ampliar a qualidade. Não obstante, tamanha proximidade vazou para fora das telas com a união de Humphrey Bogart e Lauren Bacall, enciumando o diretor e produtor. A câmera de Hawks quer de seus atores e atrizes, principalmente Bogart e Bacall, o que lhes é íntimo e pessoal.

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Lauren Bacall e Humphrey Bogart em Uma Aventura na Martinica

Em Os Homens Preferem As Loiras, os processos de aproximação também estão mais que visíveis. O câmera e a câmera querem estar perto e mais perto de Marilyn Monroe (e quem não desejaria o mesmo?), mas Jane Russell também lhes desperta o interesse na medida em que se deixa levar sem qualquer ciúme para com a loira que divide as cenas. Com a sensibilidade leve dos musicais e comédias românticas dos anos 1950, a história da garota interesseira (Monroe) e da garota interessante (Russell) se ampara nos clichês mais saborosos. Eis, pois, a legítima forma de como produzir mais do mesmo e manter as características mais relevantes de sua cinematografia.

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Jane Russell e Marilyn Monroe em Os Homens Preferem as Loiras

Humphrey Bogart, Lauren Bacall, Marilyn Monroe e Jane Russell atenderam com especial gentileza as sugestões de Howard Hawks, deixando como legado dois filmes imprescindíveis, como são todas as coisas com as quais mais queremos estar próximos.

O Matador (1950), de Henry King


Se o pêndulo vai e vem, o tempo corre. O matador espera, ocultando o relógio do seu campo de visão. Convencido por si mesmo de que esta decisão é a única possível, Jimmy Ringo deseja o reencontro com Peggy Walsh. Ele não sairá à sua procura: ela terá de decidir pelos dois. Um amor sem a intensidade de antes. Os velhos tempos importam ou não? Oito anos mudam um homem! E uma mulher também? Feminismo elegante e possível naqueles idos de 1880. Gregory Peck e Helen Westcott na antessala do comedimento.

Sob a direção resoluta de Henry King, O Matador (1950) como que antecipa a hesitação de Matar ou Morrer (1952), de Fred Zinnemann. Os filmes conversam entre si, mas Gregory Peck não dialoga com Gary Cooper. Jimmy Ringo cavalga numa trilha diferente de Will Kane. Duas linhas paralelas em sentidos contrários, ainda que não necessariamente antagônicos. A película de King compreende a diferença essencial entre estar fora da lei e ser um vilão. Aliás, não existe exatamente um vilão na história – talvez o que mais se aproxime desta figura seja a contingência.

Há um aceno muito singelo ao american way of life daquela nascente década de 1950: um fazendeiro – a representação da classe média – vai ao bar tomar apenas um drinque (sim, apenas um, que é exatamente o que sua mulher autoriza) após um dia de árduo trabalho. Casado com uma linda mulher, o fazendeiro não quer saber de nada par além do seu trabalho e de seu casamento. Pouco lhe importa o nome do sujeito para quem paga uma dose – justamente Ringo, como que invejando seu rancho com 400 cabeças de gado e uns 30 cavalos. O rancheiro entra e sai de cena à francesa, deixando que as autoridades e a sociedade se ocupem consigo mesmas – como o faz a organização das senhoras da cidade em defesa da ordem, da moral e dos costumes. Eis o típico trabalhador fabril de 1950, alienado num mundinho voltado para si e para os seus.

Trata-se também de um recorte muito específico da América, sem negros, sem mexicanos; no máximo um trabalhador oriental ocupa uns dez segundos de cena varrendo a entrada de um restaurante. Menos um aceno e mais uma piscadela à imigração que atua nos bastidores tanto de Hollywood quanto dos Estados Unidos. Nenhuma menção sobre o racismo ou a questão indígena. Menos um parágrafo e mais um asterisco na história estadunidense. Uma produção tão singular quanto aquele tempo que cabe historicamente ao faroeste, cujo período auge talvez ocupe 20 ou 30 anos da segunda metade do século XIX.

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Cidadão Kane (1941), de Orson Welles


Há cineastas de uma obra apenas, mas há aqueles que fizeram uma definitiva – obra-prima, obra-de-mestre, qual seja a titulação – que acabou ofuscando tanto suas obras seguintes quanto suas carreiras como um todo. Para Orson Welles, Cidadão Kane (1941). Impressionam os fatos do diretor-ator-roteirista-produtor ter realizado a obra aos 25 anos e sem jamais ter dirigido um longa-metragem. Um desses casos raros de genialidade cósmica, algo que ultrapassa as possíveis explicações mundanas.

Nunca uma reportagem investigativa rendeu um trabalho tão interessante, ainda que o filme se situe numa fina intersecção entre realidade e a ficção: Charles Foster Kane (interpretado pelo próprio Welles) teria inspiração numa poderosa figura da imprensa estadunidense, o magnata da imprensa William Randolph Hearst. O roteiro montado como os quebra-cabeças da segunda mulher de Kane fica na tênue alternância de uma história consagradora ou de uma tragédia aos moldes clássicos.

Orson Welles era um prodígio antes mesmo de almejar Hollywood. Em sua precoce carreira, fizera fama no teatro ao adaptar obras de William Shakespeare para o cidadão comum. Também fora um ícone no rádio, que ficou à beira do abismo com A Guerra dos Mundos, sua versão radiofônica da ficção científica do escritor britânico H. G. Wells. Mas o tumulto inesperado alçou ainda mais o nome de Welles, que ganhou um contrato para dois filmes com a RKO Radio Pictures, nos quais teria controle total sobre as obras. Era tudo o que o jovem autor precisava. E a história do cinema agradeceria, colocando Cidadão Kane repetidamente em primeiro lugar na lista das produções cinematográficas mais importantes já realizadas – às custas, claro, da carreira vindoura de seu criador. Assim, parece ser necessário assistir Kane saindo de cena justamente ao atravessar um espelho de imagens repetidas e infinitas: Welles ficaria aprisionado em si mesmo dentro daquele seu primeiro e definitivo filme.

Poderoso que era, Hearst fez o que pôde para retirar Welles da mídia – talvez por considerar Charles Foster Kane uma homenagem um tanto quanto ofensiva. Não obstante, os próprios excessos do cineasta lhe impingiram certa impopularidade. Ainda assim, Welles participou de importantes produções como tanto como diretor/ator – vide A Dama de Shanghai (1947), Othello (1952) e A Marca da Maldade (1958) – quanto somente atuando – vide O Favorito dos Borgia (1949), de Henry King, e O 3º Homem (1949), de Carol Reed. Entretanto, nenhuma destas obras obteve o frescor criativo das ideias exploradas por Cidadão Kane, obra que retomou o artesanato de Charles Chaplin e deixou espaço para a consagração do cinema artístico e de entretenimento realizado por Alfred Hitchcock.

O que é Rosebud? A resposta vale uma carreira inteira nos cinemas.

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Mocinho Encrenqueiro (1961), de Jerry Lewis, e Um Convidado Bem Trapalhão (1968), de Blake Edwards


Seria qualquer coisa injusta e ilógica comparar o humor de dois atores tão distintos quanto Peter Sellers e Jerry Lewis apenas pelo fato de que fizeram comédias, incluindo duas produções de temáticas tão similares quanto no caso destes Um Convidado Bem Trapalhão (1968), de Blake Edwards, e Mocinho Encrenqueiro (1961), do próprio Lewis. De todo modo, vamos agrupar as duas películas para efeitos crônicos e cômicos.

Edwards, que já trabalhara anteriormente com Sellers nos filmes A Pantera Cor-de-Rosa (1963) e Um Tiro no Escuro (1964), utiliza seu protagonista num minimalismo dramático que, devido ao talento do ator, paradoxalmente, ocupa todas as cenas. Jerry Lewis, por sua vez, tira de si mesmo o carismático e conhecido exagero em piadas visuais que, por vezes, soam um tanto longas em tempos presentes. Anos mais tarde, o próprio autor (Lewis fora também o corroteirista da película) comentou que poderia ter limpado mais o texto. Deste modo, Mocinho Encrenqueiro acaba deixando uma impressão condizente às ambições de seu criador à época. Trata-se de uma produção com grandes momentos – em especial, a cena na qual sua personagem brinca na mesa de reuniões do seu chefe ao som de uma balada jazzística –, mas que almeja tirar de si mais do que deveria.

Em Mocinho Encrenqueiro, Lewis interpreta um colador de cartazes de cinema que é chamado pelo dono do estúdio no qual trabalha para descobrir por que os gastos no local estão altos. Assim, o rapaz se torna uma espécie de faz tudo e provoca distintas perturbações por onde passa, feito um completo desastrado. Ingenuidade e nobreza como que dosadas na meticulosidade característica do diretor-ator.

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Jerry Lewis em Mocinho Encrenqueiro

Um Convidado Bem Trapalhão apresenta um ator indiano que, após causar um enorme prejuízo ao destruir uma produção cinematográfica, é chamado por engano para participar de uma festa justamente na casa do produtor a quem prejudicara em seu último trabalho. Peter Sellers, na pele do indiano atrapalhado, pontua toda a história com uma simplicidade arrasadora. Logo, nem mesmo suas desventuras ao longo da festa fazem com que deixemos de torcer por seu êxito consagrador. E, se o ator não tem sorte naquele evento festivo tipicamente hollywoodiano, cheio de figurões do cinema e de gente que faz tudo (ou quase) pela fama, ao menos consegue cativar a única pessoa verdadeiramente nobre e interessante naquele local: eis o amor a cumprir uma função antissocial no filme, algo até hoje tão original que é mesmo difícil de ser reprisado.

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Peter Sellers em Um Convidado Bem Trapalhão

As encrencas atrapalhadas de Lewis e Sellers podem soar como opostos complementares, mas convém ainda destacar que mesmo as plateias pretendidas por seus realizadores são distintas. Entretanto, as duas obras atingem um espectador comum: o apreciador de clássicos instantâneos.

Levada da Breca (1938) e O Inventor da Mocidade (1952), ambos de Howard Hawks


Muito mais o talento e menos o acaso que proporcionou ao diretor Howard Hawks trabalhar com as principais estrelas de Hollywood durante quase cinco décadas. Estrelas como aquelas exaltadas pela mídia, sim, mas também atores e atrizes de primeira linha como Cary Grant, Dean Martin, Gary Cooper, Humphrey Bogart, James Cagney, Jane Russell, John Wayne, Katharine Hepburn, Kirk Douglas, Lauren Bacall, Marilyn Monroe, Montgomery Clift e Robert Mitchum, fazendo uma seleção de gosto pessoal. Seus filmes nos mais diversos gêneros, com destaque para o western e as comédias românticas, são pontuados igualmente pelo profissionalismo na direção de seus astros e pelo bom humor recorrente.

Em algumas ocasiões, Hawks contou com a elegante presença de Cary Grant, dentre as quais estão estas duas películas essenciais quando da compreensão de toda sua obra: Levada da Breca (1938) e O Inventor da Mocidade (1952).

Ao lado da sempre exímia Katharine Hepburn, a elegância de Grant ganha os contornos sofisticados de Hawks em Levada da Breca. A ação ininterrupta do roteiro recebe traços de singeleza, mas com requintes que fazem corar os mal chamados humoristas deste século XXI. Não existem fórmulas, mas sim formas que se fundem ao conteúdo celebrado por Katharine. A atriz consegue se sair melhor do que Cary porque não se limita à personagem que interpreta. E ela sobra em cena.

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Cary Grant, um filhote de leopardo e Katharine Hepburn em Levada da Breca

Se a marcha é célere em Levada da Breca, o ritmo em O Inventor da Mocidade parece uma montanha-russa, com momentos frenéticos entrecortados por suspiros curtos e profundos. Mas as sequências intermitentes não são problema para Hawks, desta vez com Grant sendo a força central, apoiado por Ginger Rogers (um pouco desconfortável, mas não a ponto de comprometer suas cenas) e por Marilyn Monroe (a um passo de se tornar o ícone mundial). A farsa encenada pelo chimpanzé que descobre acidentalmente uma fórmula da juventude serve ainda como paródia dos próprios protagonistas, nomes feitos de uma indústria obcecada pela imagem.

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Marilyn Monroe e Cary Grant em O Inventor da Mocidade

O olhar contemporâneo pode sugerir que o humor de outrora, na época dourada de Hollywood (entre os anos 1930 e 1960), perdeu o contato daquela plateia mais inocente. Podem ainda apontar que a empatia das comédias antigas sucumbiu à tecnologia destes nossos dias. Bobagem e nada mais. Se o mundo não parece tão divertido como tempos atrás, o cinema de Hawks não tem nada com isso. O bom humor não perde tempo com explicações.

Crepúsculo dos Deuses (1950), de Billy Wilder


O que mais chama atenção em Crepúsculo dos Deuses, dirigido pelo mestre Billy Wilder, é o quanto a arte pode ser pretexto para as maiores nulidades. Aproveitadores baratos (Joe Gillis) ou de alta classe (Norma Desmond) são não mais que seus próprios vilões. Anti-heróis de si mesmos na grande ilusão que foi Hollywood da primeira metade do século XX, quando longe das telas. A genialidade de Billy Wilder está justamente no que se chamaria de um “sarcasmo honesto”. Buster Keaton é o epicentro coadjuvante deste humour sem graça. O resultado é uma espécie de gag moral aplicada pelo diretor na qual o jogo de bridge (Keaton é um jogador no filme) sintetiza as qualidades de uma indústria que é, ao mesmo tempo, divina e cruel. Gloria Swanson, descendo as escadas em busca da glória, personifica essa crueldade dos deuses em fim de festa, com o rosto de uma Greta Garbo maquiavélica desfocando no último plano da película. Já William Holden é o modelo do que seria George Peppard anos depois em Bonequinha de Luxo (1961). Todos são aproveitadores, vivendo em um circo armado por Wilder – talvez o único que entendeu a piada à época.

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Pânico na Multidão (1976), de Larry Peercer


Olhando a posteriori, uma grande parte do cinema americano nos anos setenta ficou ausente de charme. Talvez essa carência de um estilo social tenha contribuído para o aumento da violência (urbana, sobretudo) em esfera mundial. E, não por acaso, o gênero que desabrocha nesse contexto é justamente o cinema-catástrofe. Pânico na Multidão (1976), de Larry Peercer, traz então um símbolo dessa época, com uma das expressões faciais mais duras de Hollywood: Charlton Heston. À personagem do eterno Moisés cabe evitar o inevitável. O filme envelhece mal não pela temática que insiste em se repetir, mas pela abordagem focar somente na situação presente e se esquecer do universo contemporâneo. O atirador que decide abrir fogo aleatoriamente contra a multidão num estádio de futebol americano permanece ele mesmo fruto de sua incapacidade. O estádio de futebol se chama Coliseu, referenciando à violência de tempos antigos, mas alertando para o olhar interno dentro da própria brutalidade no futebol americano. A demora na ação do atirador impõe ao filme uma narrativa de sugestão, sem pontos oscilantes. Ainda que irregular e nada atraente, Pânico na Multidão tem um jeito todo seu de incomodar, qualquer coisa que fica presa na garganta, como uma frase sem fim ou um atirador sem motivos aparentes.

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Caçadores de Obras-Primas (2014), de George Clooney


George Clooney, que escreve e dirige este Caçadores de Obras-Primas (2014), possui uma carreira autocontrolada como poucos astros da atual Hollywood. Quando estrelou Batman & Robin (1997), de Joel Schumacher, o ator precisava de um filme-evento para tornar seu rosto viável no meio do cinema. Deu certo, mesmo com o retumbante fracasso do filme que enterrou a franquia do herói mascarado por oito anos. Clooney aprendeu com o erro. Desde então, já faturou um Oscar como melhor ator coadjuvante por Syriana – A Indústria do Petróleo (2005), de Stephen Gaghan, e outro como produtor pelo filme Argo (2012), de Ben Affleck.

Acontece que o ator, produtor, roteirista e diretor também se tornou um ativista ou coisa que o valha. Por consequência, volta e meia damos com notícias de seu engajamento em questões políticas e sociais. Em 2012, chegou a ser algemado e preso, acusado de invadir a embaixada do Sudão em Washington, em protesto contra as ações do presidente Omar al-Bashir. Deste modo, o principal nome do cinema oriundo da série televisiva Plantão Médico (1994-2009) divide sua carreira entre megaproduções e filmes de baixo orçamento, nos quais aborda temas mais complexos.

Quanto aos filmes que dirige, Clooney ambiciona discutir situações sérias e importantes para sua visão democrata. No entanto, falta-lhe o talento necessário para ficar atrás das câmeras com a mesma segurança que tem ao atuar. Nalguma medida, ele não soube aproveitar o fato de ter trabalhado com diretores inventivos e originais, caso de Robert Rodriguez em Um Drink no Inferno (1996), Terrence Malick em Além da Linha Vermelha (1998) ou de Alfonso Cuarón em Gravidade (2013).

Mas em Caçadores de Obras-Primas, sua inspiração parece ser mesmo a do inconstante diretor Steven Soderbergh, com quem trabalhou meia dúzia de vezes, sendo três destas na trilogia iniciada com Onze Homens e um Segredo (2001). Assim como na película de Soderbergh, Clooney também chama uma penca de atores famosos para contar sua história. Neste caso, porém, os homens que buscam as obras de arte roubadas pela Alemanha nazista durante a Segunda Grande Guerra são inspirados em pessoas de verdade, com nacionalidades distintas – o que dificulta ainda mais para o diretor, arraigado em valores tipicamente estadunidenses.

Imaginamos que Clooney almejava prestar uma homenagem para estes heróis de guerra, cuja missão consistia em preservar uma parte importante do patrimônio cultural e mundial. Pena que a intenção louvável se perde numa narrativa sem sobressaltos e tão previsível como a derrota do Terceiro Reich. Suas cenas curtas não carregam nem mesmo aquela agilidade divertida como nos truques narrativos de Soderbergh; seus atores não são exigidos (vide a falta de entusiasmo nítida em Bill Murray e Matt Damon); para completar este tom de desacerto, o lado cômico sugerido nas relações entre os caçadores tampouco melhora o enredo do filme.

Ao final de suas próprias batalhas, George Glooney parece não ter tanto autocontrole assim, pelo menos quando está sentado na cadeira de diretor.

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Chaplin (1992), de Richard Attenborough


Muita gente conhece Richard Attenborough pelo carismático personagem Dr. John Hammond, de Jurassic Park: Parque dos Dinossauros (1993). Mas Richard também foi um diretor de grandes produções, quais Uma Ponte Longe Demais (1977), Gandhi (1982) e Chaplin — este último protagonizado por Robert Downey Jr. no final de sua primeira grande fase em Hollywood. O filme acabou sendo um fracasso de bilheteria, mesmo com a surpreendente atuação de Downey, muito antes de se tornar o Homem de Ferro. Interessante também que a atriz Geraldine Chaplin, filha do cineasta responsável por Tempos Modernos (1936), interpreta sua avó Hannah Chaplin na película.

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Uma questão de humanidade


Dos recentes tremores de terra que atingiram o Haiti, sobram questões universais que dizem respeito à urgência de humanidade. Ainda que seja um conceito novo para a raça humana – talvez, coisa de três séculos passados (e o Iluminismo tem aqui sua presença registrada) –, a humanidade, no que diz respeito a intenção de que todo ser tem a mesma origem, exalta uma ferida jamais cicatrizada dentro da espécie. Porque, se nos vemos e reconhecemos, como é capaz de existir diferenças tão grandes como é o caso, por exemplo, do dia-a-dia haitiano?

Tais atitudes de ajuda e pesar que chegam com tragédias deste tipo são distribuídas por praticamente todo o globo através dos meios de comunicação. Assim, cidadãos florianopolitanos – e região – são abastecidos por uma onda de informações parciais, dessas que se importam apenas com a comoção e não focalizam no cerne das desigualdades sociais. E o paradoxo está feito: notícias do todo acabam por individualizar ainda mais este Ocidente competitivo. Ou nas palavras do dramaturgo Nelson Rodrigues: “Amar a humanidade é fácil; difícil é amar o próximo”.

Fosse possível a felicidade por comparação, as pessoas aceitariam as longas horas da cidade, e mesmo a fila nas pontes ao deixar a Ilha seriam oportunamente melhores que a miséria alheia; não existe compensação pelo que deixamos de fazer. Logo, nosso julgamento individual não corresponde à realidade observada nos jornais e pelas janelas dos automóveis. Incongruências à parte, o sentimento para outrem aparece como incômodo contemporâneo, tão atual quanto as psicologias sociais de último século, tão rotineiro como o estresse funcional.

A questão da humanidade ainda não está assimilada por completo. Pequenos gestos simpáticos à causa da igualdade se agitam aqui abaixo da linha do Equador e, mesmo, acolá no que chamam de países desenvolvidos (porque sabem esconder os erros com campanhas publicitárias eficientes feito filmes de Hollywood). E todas as questões que sobram deixam o mundo ainda mais humano, desigualmente humano.

> Crônica publicada no Jornal Notícias do Dia em 21/01/2010.