Quão são os artistas se apresentam na composição de suas obras? Ao abordar a insanidade, a psicose ou o tresloucamento alheios, estariam seus criadores também num nível de irrealidade tão próprio à ficção que compõem? Vejamos os casos de Ilha do Medo (2010), de Martin Scorsese, e Aterrorizada (2010), de John Carpenter, obras de um mesmo tema, mas construídas sobre bases inequivocamente antagônicas.
Com a mão frouxa desde Vivendo no Limite (1997), Martin Scorsese pouco sabe o que fazer quando se encontra fora do ambiente da violência social. E esta parca certeza aparece em praticamente todas as camadas de Ilha do Medo. Os trejeitos, vícios cênicos e outras peripécias de Leonardo DiCaprio também contribuem para o esvaziamento audiovisual de um autor que se perdeu para sua própria técnica. O mundo da loucura pelo qual transita o detetive do FBI, Teddy Daniels (DiCaprio), escorre qual um efeito especial sem razão de ser. Mesmo almejando o medo provocativo ou um exercício de compreensão narrativa, roteiro e direção soam didáticos em demasia. Então, as reviravoltas que teriam valor punitivo para outros cineastas do gênero (Hitchcock, Shyamalan) ou alegórico/farsesco (Argento, Kubrick) perdem-se na casualidade rítmica que vem se apoderando de Scorsese cada vez mais neste século XXI. As passagens que apresentam o passado do detetive Teddy num campo de concentração em plena Segunda Grande Guerra ficam deslocadas a tal ponto que teria sido melhor guardar aquelas sequências para um filme que tratasse justamente do conflito em si, e não das perturbações mentais de um investigador federal que vê sua falecida esposa a cada quinze minutos. De todo modo, Ilha do Medo permanece numa difusa fronteira entre a diversão trivial dos filmes de suspense e uma apatia das personagens que conduzem a narrativa.
Enquanto Scorsese fracassa de maneira retumbante com seus delírios de diretor, John Carpenter projeta sua protagonista para além de suas próprias capacidades em Aterrorizada. Amber Heard deixa a inexperiência de lado e se torna o verdadeiro alter ego (ou alter cerebrum, por relação) de seu diretor numa história que alterca falta de memória com as surpresas características dos loucos. O eixo narrativo tem quaisquer aproximações com Ilha do Medo, mas está calcado na maestria do cineasta ao compor um painel elucidativo com uma elegância pouco comum no cinema industrial contemporâneo – o que, talvez, ajude a explicar sua diminuta filmografia nas duas primeiras décadas deste novo milênio. Aquele mesmo tempo que outros perdem em insinuações estilísticas, Carpenter condensa na dialética da protagonista Kristen (Heard): a razão mais emocional dentro de um sanatório ocupado por jovens mulheres. Quando assistimos ao filme pela segunda vez, damos com a certeza de que as cartas na manga do cineasta aparecem de imediato. Assim, permitimo-nos deixar levar pela contemplação lúcida num filme de terror tão elegante quanto sofisticado.
Um dos poemas mais conhecidos de Fernando Pessoa, sob o heterônimo de Ricardo Reis, afirma que para alcançar a grandeza é necessário ser inteiro; “nada teu exagera ou exclui”. Conselho renegado pela técnica preguiçosa de Martin Scorsese, mas que teve em John Carpenter uma veemente assimilação. Prossegue Reis: “Sê todo em cada coisa. Põe quanto és | No mínimo que fazes”. Novamente, um mantra que acompanhou Carpenter ao longo das décadas e ignorado por Scorsese desde a segunda metade dos anos 1990. Dois relevantes cineastas, mas só um deles permaneceu sofisticadamente louco para continuar a ser um artista.