Antes que o caos triunfe


Aguarde um segundo antes que o caos triunfe, ela me avisou. Guardei as munições que restavam na algibeira. O ouvido ainda estralava com o ressoar da última explosão. Dias de luta sem objetivo ou com o único propósito de permanecer por aqui mais algum tempo. Difícil compreender se realmente vale a pena. Mas cada sorriso dela ampliava em mim o senso de necessidade, coisas qualquer que a guerra não explica. Tampouco a cicatriz no lado esquerdo do seu queijo apagava uma ideia da beleza atemporal. Guerreiros fingindo ser guerreiros hoje, como antes.

Uma guerra marcada por histórias ou uma história marcada por guerras. Este enigma não tem solução ou absolvição. A casa em ruínas serviu de abrigo momentâneo. A chuva torrencial impedia sutilmente o combate corpo a corpo. O que se esconde sob as torrentes?, eu perguntei a ela enquanto o beijo na testa desnudou nossos vestígios de humanidade. Chegamos até aqui por uma trilha de corpos inertes, desaquecidos para todo o sempre. Um cheiro de miséria e morte que jamais vai nos abandonar.

Cochilei por um momento ou realmente a chuva terminou?, ela me questionou durante um abraço prolongado. Não dormir parecia ainda um sonho distante. Sol e lua nunca discutem ao amanhecer. O estampido veio de perto. Prefiro chamá-los de tudo, menos de inimigos. Não me parece existencialmente possível que uma espécie renegue a si mesma. Tão diferente dos instintos animais que nem saberia por onde começar a explanação. Agora, porém, quanto menos conversa, melhor. Mais atentos ficamos para o combate eventual.

Um segundo depois, o amanhã chegou. Então este é o triunfo do caos para o qual você me preparou durante anos? Ela não respondeu, fingiu tossir e se abaixou dos tiros disparados a esmo. Pinceladas de bege e azul no contraste entre o preto e branco. Nossa missão continuava a mesma desde a aurora dos tempos: proteger o pintor contra toda forma de autoritarismo. O quadro seria finalizado custe o que custar. Duas de nossas vidas terminaram conjuntamente com a pintura a óleo. A mulher chorando, a criança sem vida em seus braços, o touro, o soldado caído, o cavalo, a mulher na janela, a mulher correndo, a mulher encarando chamas. Nossa família e nossos bichos retratados ali com traços cubistas. Picasso acendeu a luz do caos: a Guernica triunfou velando por nós.

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Guernica (1937). Pintura a óleo de Pablo Picasso (1881-1973)

Predicados litorâneos


Quem mora no litoral sabe que o calor quase sempre vem acompanhado de uma chuva passageira. É um jeito divertido de a natureza oferecer a companhia do mar, o calor tão indispensável à vida e, ao mesmo tempo, lavar tudo como quem apazigua os ânimos mais exaltados.

Para o verão, temos um incremento considerável nas chuvas, no calor e em tudo o mais porque a natureza é tão mágica quanto científica. Vide o caso desta Ilha, capital do estado e das discórdias emocionais. Esta cidade, carinhosamente apelidada por estrategistas publicitários de “ilha da magia”, é igualmente um paraíso da ciência construído a partir das mais imbricadas e complexas relações químicas. Átomos, quarks e bósons fazem valer sua presença tanto quanto as bruxas e outros seres fantásticos elencados por Franklin Cascaes. E é justo que seja assim, porque deuses e homens sempre compartilharam do mesmo universo.

Se a natureza foi divina para com a Ilha de Santa Catarina, devemos-lhe prestar algum tributo; seja numa crônica ou tomando um banho de mar antes que comece a chover. Estas homenagens, claro, dão-se cotidianamente ao longo do ano, mas acentuam-se no verão porque, então, a cidade torna-se amplamente ocupada, como se não houvesse lugar vazio ou inexplorado. Há locais, sim, subjugados à vontade de uns poucos – reservados pela separação física inerente ao capital. Mas o verão sempre foi uma estação marginal e, como tal, destinada à democracia muito mais que suas três irmãs. A chuva que cai molha o rico e o pobre deitados sobre o mesmo solo arenoso chamado praia. Uns bebem champanhe, outros cervejas populares: todos saúdam a algo muito maior e mais relevante.

Hoje, aqui no litoral, é dia de compor uma ode ao verão. Por isso, pego meu violão e sigo toda vida reto até a primeira praia que me apetece. Não estou nem aí para o trânsito lento, as buzinas mal educadas ou a fumaça dos veículos. As únicas reações químicas que me interessam passam longe da combustão que nos leva de lá para cá. Sigo contra a corrente, mas a favor da maré e dos mares. Navego sem conexões wi-fi.

Pronto, cheguei. Sinto-me mais do que preparado para traduzir em melodia esses predicados litorâneos sempre ligados a sujeitos ocultos e felizes. Enquanto o sol ponteia o horizonte, ponteio cá as cordas do violão comprado em dez prestações. Agora, a canção está pronta, mesmo que ninguém além de mim a conheça ou venha a conhecê-la. Será para sempre um mistério não resolvido disputado pela magia e pela ciência: um empate técnico sob a chuva.

> Crônica publicada no Jornal Notícias do Dia em 03/03/2016.

Chove esta noite


De alguma forma pouco evidente, outra grande contribuição de Darwin ao nosso entendimento das coisas foi a seguinte: não adianta ir contra a natureza. Por mais que se esforce para dominar essa diva soberana que deixa qualquer estrela de Hollywood no chinelo, o resultado é efêmero. Suspiramos.

A chuva, por exemplo, faz por merecer a fama que tem. Quando escassa, todos sentem falta de qualquer pingo para encher açudes ou reservatórios. Quando em demasia, todos reclamam de sua inconveniente obstinação ao encobrir o sol e adiar os programas ao ar livre. E nem mesmo adianta ver a chuva poeticamente, como as lágrimas de deus ou aquele excesso que vaza da banheira dos anjos desastrados. Chove esta noite, e convém apenas a conformação.

De um tempo para cá, foi muito propício colocar a culpa dos desastres naturais e mudanças climáticas no acontecimento global. E isso tem sua razão. Mas não nos enganemos quanto ao poder original da natureza. Olhemos, particularmente, para o passado da Terra. Não foi preciso nenhum ser humano poluindo os rios ou esburacando a camada de ozônio para que aqueles simpáticos gigantes monstruosos chamados dinossauros viessem a sucumbir ante o peso do ambiente. Mesmo aquele asteroide que lhes custou o início dessa derrocada foi tão natural porque previsível e surpreendente: afinal, essa vida que aí está também é poeira de estrelas.

Por outro lado, a gente racionaliza demais, mesmo em situações tão triviais quanto a chuva. Percebemo-la qual um agente transitório, porque vai e vem quando lhe dá na telha. Mas a transitoriedade é só o que existe na natureza. A reciclagem é um princípio do universo quase tão fundamental que explicaria até o Big Bang se tivéssemos uma testemunha ocular daquele acontecimento. Chove esta noite, e os poetas podem compor canções molhadas, enquanto as galáxias se reciclam. Respirem fundo.

Mas a pergunta principal ainda permanece sem resposta: O que fazer nestes dias chuvosos? Deitar-se no quarto com as cortinas fechadas enquanto os pingos marcam seu próprio ritmo na janela não é a solução universal. Bang. Para os que querem crer nestas palavras crônicas, não deixo respostas porque prefiro os questionamentos. De que adianta saber o que fazer se você não estiver inspirado em como fazer?

Chove esta noite, e ganhamos outra chance de nos colocarmos em nossos devidos lugares. Não estamos acima ou abaixo da natureza, ainda que as chuvas nos cubram e o sol nos queime. Somos outro pingo do enredo darwinista. E chovemos juntos.

> Crônica publicada no Jornal Notícias do Dia em 05/11/2015.

Impressões digitais


Escrever sobre o clima é chover no molhado, principalmente se o tempo for chuvoso. Colocar expressões do ambiente, quase no estilo de um designer de interiores, pressupõe conhecimentos do que é e do que não é, interpretando as opções do indivíduo em releituras exteriores. Organizar as características de uma personagem qualquer, dessas de romances baratos vendidos em bancas de revistas, não é apenas a glória da mediocridade, mas também um exercício de humildade humana ou intencionar o zelo pelo senso comum.

Nalgum momento da história, as impressões digitais serão esboços ou divagações elaboradas por complexos computadores. Amantes da tecnologia serão surpreendidos pelo desenvolvimento destas impressões, porque seguirão à risca os principais conceitos criados por homens e mulheres ao longo do fio do tempo-memória-livros-bytes. O pensamento binário não inibirá essas impressões das vaidades típicas, porque mesmo máquinas elencam situações e premissas como fossem verdades universais, coisas que não se alteram sem a quebra de paradigmas ou a descoberta de universos paralelos.

A última nova estação revela uma paleta de cores até então desconhecida por artistas da era presente. Matizes e tons resultantes transfiguram as paisagens em futuros imprecisos: teorias inventadas a cada nuance de cor. E os caminhos ganham novos traçados à medida em que as revoluções por minuto completam uma volta completa.

Depois de um café da manhã aprazível tendo a baía ao longe por cenário, o meta-humano aposentado adianta-se ao tempo e sai à rua com o guarda-chuva sob o braço, mesmo que o sol desponte em sua própria soberania. Súdito do astro-rei, o meta-humano imagina-se noutros tempos, quando era um herói em plena ação, aprisionando vilões que se faziam passar por políticos de cara limpa. Terminada a alucinação, aceita a existência que lhe foi inventada sem que lhe dessem outras opções. E a história que se apresenta sem pé nem cabeça, sem eira nem beira, com muito diz-que-me-diz, termina numa explosão no céu, feito uma comemoração de fim-de-ano, feito um texto que se quis crônica porque feito para o jornal.

> Crônica publicada no Jornal Notícias do Dia em 27/05/2010.

Ao mar e à luz do sol profundo


Manhã de outono às margens da Cidade-Ilha. Chegamos quando o sol profundo começa a submergir com seus raios soberanos, típicos alicerces de um Astro Rei. Súditos que somos, despertamos mesmo que a natureza nos faça dormir de olhos abertos, vigilantes dos oceanos, fiscais de águas e mares.

Eu e minha esposa Mera sempre preferimos ficar ao sul. “As águas são mais quentes, Arthur”, Mera me lembra toda vez que planejo uma viagem. Não que eu seja avesso ao calor, mas há momentos nos quais surge uma vontade de conhecer outras paragens, outras praias, novos litorais. Assim, consigo levá-la comigo em algumas aventuras pelo mundo.

A cada retorno, porém, a paisagem desta Ilha-Cidade está diferente. Aqui do mar, temos uma visão privilegiada do mal chamado progresso humano. Neste outono, identificamos novas estruturas feitas com areia, água e mais um ou dois elementos. Mera não entende essa capacidade que as pessoas têm de transformar um local praticamente verde em floresta petrificada, acinzentando o cotidiano como num dia de chuva sem sol.

Sabemos que a vida sob ou sobre o mar segue um ritmo próprio, bastante divergente daquele em terra firme. Mas, se pensarmos bem, toda vida acompanha a cadência deste Planeta que navega no vácuo da Galáxia. Mesmo que as espécies sejam distintas, a origem é uma só e daí que não é fácil consentir que uns poucos bilhões de habitantes (poucos, se pensarmos em toda a vida marinha ou mesmo de organismos praticamente invisíveis) interfiram de forma tão devastadora nas paisagens mais belas jamais vistas, como é o caso desta Cidade-Ilha a qual escolhemos como lar.

Devo admitir que não é muito diferente em todos os continentes, arquipélagos ou ilhas que já visitamos. A preservação é deixada de lado, e a história insiste em se repetir mesmo que à nossa revelia. Porque Mera e eu somos os peixes mais velhos do mundo e não gostaríamos de ver esta querida Ilha terminar seus dias de forma mais sombria que o mais profundo dos mares.

> Crônica publicada no Jornal Notícias do Dia em 22/04/2010.

Toda chuva tem fim


Não há razão para chorar, mesmo que tudo aquilo se acabe antes do desejado. Sem quaisquer justificativas, a certeza da finitude das coisas é inequívoca como inevitável fora aquele estalo universal chamado Big Bang; e nem há verdades ou mentiras, porque mesmo a chuva cairá feito um desfecho de um filme: último negativo a ganhar as telas em múltiplos pontos de luz.

Toda chuva tem um fim, e a canção molhada termina numa palavra brusca, grito resoluto em abismos profusos e profundos. Uma rua sem saída é escolhida ao acaso, porque o acaso também finda naquilo que se lhe apresenta mais espontâneo. Somos também peixes fora d’água, animais sozinhos tentando aprender com a chuva, com abraços gentis, com a semântica esquecida numa crônica de jornal.

A madrugada que se esconde quando a manhã chega favorece aos olhos que se fecham ainda mais, porque o sono da noite faz mais sentido quando o dia se impõe soberano. Mesmo naquelas horas em que o sol faz as vezes de tímido, poucos fogem à vontade de largar tudo, pegar uma cadeira de praia e dormir o sonho dos bem aventurados. E lágrimas são totalmente desnecessárias ao dia-a-dia, porque sempre chove e toda chuva tem fim.

Colocar palavras no papel tende a parecer uma perda proposital, porque assim que as palavras nos deixam, também deixamos algo ali, cientes de que é preciso envolver dramas comuns, situando o mínimo na forma do máximo, enlouquecendo atores de uma trama oca, cobrando sentidos daqueles que já não se querem mais sensíveis – porque estes são muitos, vagando sorrateiros nas esquinas urbanas.

E se me perguntarem o que me é estranho, trarei comigo a resposta pronta sobre a humanidade de ontem e amanhã, porque mesmo o progresso não me diz nada de concreto. E, entre crises e maçãs do amor, saberemos evitar cinismos e a inveja alheia, aprenderemos a apreciar o fim da chuva como a criança brincando molhada, e retribuiremos tudo o que nos foi dado como se estivéssemos cara a cara com um anjo pagão a nos sorrir um sorriso que também se acabará.

> Crônica publicada no Jornal Notícias do Dia em 19/11/2009.

Dentro do mercado


Se chove, o local fica cheio de gente. Se não chove, também. Se é véspera de Carnaval, todos se encontram por ali. Se não é natal, dá-se o mesmo. Porque aquelas paredes em tons amarelados são uma parte da cidade na qual as épocas se confundem, feito passado e presente num só dia, feito netos e avós conversando sobre as mesmas coisas, de igual para igual, respeitando as diferenças. O Mercado Público de Florianópolis é mais um desses paradoxos contemporâneos: lugar fixo e absoluto, frequentado por cidadãos de passagem em busca de necessidades e prazeres efêmeros.

Entre as alas, o vão central é sempre musical, mesmo quando não há nenhum músico ou cantor em atividade. Aquela música urbana por companhia feita por tudo e todos. Batidas ritmadas de sapatos e tamancos que levam corações mais ou menos experientes. Uma síncope inesperada de vendedores de loterias ou de pipoca. Convites (ou intimações) dos lojistas como versos de um poema repetido indefinidamente – Pronto, moço? Tarefa praticamente impossível (e é fácil conferir): passar olhando os produtos à venda sem que algum vendedor faça tal pergunta. Eis o som do Mercado: mistura fina de ritmos vários.

Que dizer, então, do cheiro de peixe íntimo da ala sul? O mar, que banhava o local em outros tempos, tornou-se um vizinho distante. Mesmo assim, os frutos do oceano continuam em exposição nos balcões de vidro, como uma oferenda aos populares – aos deuses, convém admirar suas criações se esbaldando com tainhas, camarões e ostras. O bicho homem, sempre a alterar a natureza, também altera a si mesmo quando deixa as compras (gastronômicas ou não) de lado e finca âncora num dos muitos bares que fazem a fama do Mercado Público. Puxar o banquinho, descansar o corpo e pedir um chopp em plena região central faz parte de uma tradição inventada, missão de turista e integração social – uma rede urbana, com uma porção de marisco e outra de batata frita.

Não existe Mercado sem histórias, assim como não existe romance sem palavras. Ilhéus ou não, artistas e anônimos, ricos e aqueles que compram fiado: estas são as personagens desta trama diária, armada sob sol ou chuva, aquarelando a paisagem da Ilha a partir do amarelo de suas paredes.

> Crônica publicada no Jornal Notícias do Dia em 21/05/2009.

A dama dos céus


Ela está lá fora agora, ao mesmo tempo em que escrevo estas mal traçadas. Não que seja uma convidada a quem deixo esperando enquanto me divirto na frente da tela do computador. Muito pelo contrário. Ela sabe que seu lugar é solta, na liberdade inata de sua natureza.

Quando sozinha, esporádica, assemelha-se em suavidade às carícias de um grande amor. Onda de refrescância perene, sem hora certa de chegar ou sair. Mas quando acompanhada, principalmente daquelas companhias que não sabem o momento de ir embora, pode ser um tanto abrupta, mas nunca deixa de ser necessária como, veja só, os carinhos do mesmo eterno amor – pois todos o são.

Por estes meses idos e vividos, alguns a estão culpando pelos maus dias que têm se seguido. Ainda que não apresente modos ou face de vilã, acusam-na como a principal responsável de uma tragédia que não lhe diz respeito. Dão a sentença sem ao menos avaliar os pontos obtusos – e todos não têm o direito legal da dúvida?

Em determinadas épocas do ano, ela ainda é mais necessária. Bate-nos uma saudade de sua presença como naquela canção do Roberto na qual ele corre demais. Noutros períodos, costuma deixar muitos por aí mal humorados, feito aqueles que não conseguem assistir ao final do filme, sem saber se o casal principal terminou unido. Alguns querem-na aqui; outros acolá – mais para o Nordeste. Mas ela não faz nem pede cerimônia. Temperaturas altas ou baixas, dias quentes ou de bater queixo: podemos ou não contar com a sua presença; basta ela querer. Ela vem e vai embora como que cumprindo sua função: uma mensageira de recados doces e amargos.

Neste final de ano, ela visitou com mais freqüência algumas cidades catarinenses, principalmente aquelas do Vale, entrecortadas por rios. No meio de tanto destruição e tristeza, o lado humano de todo um país falou mais forte. Suas constantes visitas transformaram-se num alerta do nosso longo caminho de exploração. Mas não, não se trata de vingança. É apenas um lembrete de quem somos e onde estamos. Afinal, é preciso respeitar essa dama dos céus chamada chuva.

> Crônica publicada no Jornal Notícias do Dia em 04/12/2008.

Da arte de apreciar a chuva


Qualquer ser humano possui uma ou duas verdades absolutas. São quaisquer certezas capazes de lhe tirar o sono, mesmo após uma longa noite de amor ou de um filme clássico e raro nas altas horas da madrugada. Ciente dessa verdade, a pessoa em questão jamais pedirá conselho algum no que se refere a outra possibilidade. Nunca. Só existe um caminho, como quando o poeta encontra a única palavra-descoberta para o seu verso. Não sendo propriamente um poeta, eis minha verdade: a chuva não combina com as metrópoles.

A cena é do cotidiano, tão corriqueira em determinadas estações que a cidade não lhe tem em boa conta. Trata-se do fluxo sem cadência, do ir e vir sem sair do lugar, da pilhéria refeita em dias chuvosos quando os carros vão ter uns com os outros num trânsito tão estático quanto caótico. E não deixamos de registrar, seja em boletins de ocorrência ou câmeras de celulares, o que acontece com os apressadinhos: uma pista molhada, um pneu careca e mais outro acidente para as estatísticas.

O humor das cidades grandes não combina com a chuva. Um rosto fechado dentro do carro ou na mesa apertada do escritório são alheios aos possíveis prazeres que a água das nuvens oferece aos que vivem em terra. Quem trabalha na rua não gosta de chuva (a exceção, talvez, dos vendedores de sombrinhas e guarda-chuvas que surgem dalgum lugar tão logo os primeiros pingos do céu se apresentam).

As metrópoles só querem saber do sol e dos seus raios UV, estes últimos nunca em demasia. Poucos na cidade gostam da chuva. São aqueles que sabem que apreciar a chuva é uma arte guardada na mente desde criança.

> Crônica publicada no Jornal Notícias do Dia em 30/04/2008.