Aguarde um segundo antes que o caos triunfe, ela me avisou. Guardei as munições que restavam na algibeira. O ouvido ainda estralava com o ressoar da última explosão. Dias de luta sem objetivo ou com o único propósito de permanecer por aqui mais algum tempo. Difícil compreender se realmente vale a pena. Mas cada sorriso dela ampliava em mim o senso de necessidade, coisas qualquer que a guerra não explica. Tampouco a cicatriz no lado esquerdo do seu queijo apagava uma ideia da beleza atemporal. Guerreiros fingindo ser guerreiros hoje, como antes.
Uma guerra marcada por histórias ou uma história marcada por guerras. Este enigma não tem solução ou absolvição. A casa em ruínas serviu de abrigo momentâneo. A chuva torrencial impedia sutilmente o combate corpo a corpo. O que se esconde sob as torrentes?, eu perguntei a ela enquanto o beijo na testa desnudou nossos vestígios de humanidade. Chegamos até aqui por uma trilha de corpos inertes, desaquecidos para todo o sempre. Um cheiro de miséria e morte que jamais vai nos abandonar.
Cochilei por um momento ou realmente a chuva terminou?, ela me questionou durante um abraço prolongado. Não dormir parecia ainda um sonho distante. Sol e lua nunca discutem ao amanhecer. O estampido veio de perto. Prefiro chamá-los de tudo, menos de inimigos. Não me parece existencialmente possível que uma espécie renegue a si mesma. Tão diferente dos instintos animais que nem saberia por onde começar a explanação. Agora, porém, quanto menos conversa, melhor. Mais atentos ficamos para o combate eventual.
Um segundo depois, o amanhã chegou. Então este é o triunfo do caos para o qual você me preparou durante anos? Ela não respondeu, fingiu tossir e se abaixou dos tiros disparados a esmo. Pinceladas de bege e azul no contraste entre o preto e branco. Nossa missão continuava a mesma desde a aurora dos tempos: proteger o pintor contra toda forma de autoritarismo. O quadro seria finalizado custe o que custar. Duas de nossas vidas terminaram conjuntamente com a pintura a óleo. A mulher chorando, a criança sem vida em seus braços, o touro, o soldado caído, o cavalo, a mulher na janela, a mulher correndo, a mulher encarando chamas. Nossa família e nossos bichos retratados ali com traços cubistas. Picasso acendeu a luz do caos: a Guernica triunfou velando por nós.