Quase uma ressaca


Ali perto do agito das ruas, quando o Carnaval se faz vibrar, seja pelo balanço dos corpos ou pela elevação das ondas sonoras, alguém descansava enquanto um ou outro folião ainda caminhava apressado, segurando parte da fantasia que levaria para a avenida. Sábado de Carnaval na cidade, quando o Centro ferve e a passarela pulsa naquele dia que é o cerne de sua existência. Florianópolis coloca, pois, uma máscara e transforma o calor do verão em motivo de alegria e êxtase.

Ainda que meus anos não sejam muitos, como são os dos meus mestres e mestras, também posso dizer que já tive “meus dias de Carnaval”, idos e vividos com mais intensidade do que agora. As brincadeiras de rua em Canasvieiras, no tempo da efervescência gringa. Seguindo o trio elétrico, ou uma caixa de som qualquer, tanto na Lagoa da Conceição quanto no Centro da Ilha e, até mesmo, no Kobrasol da vizinha São José. O que me pesa hoje não é a desculpa da idade, mas sim uma quase ressaca de uma festa grande demais para mim.

Mesmo deitado, não muito longe da Praça XV de Novembro, o descanso não é interrompido por nada. Não há tamborim, cuíca ou pandeiro capaz de provocar outra reação que não a trégua de si mesmo. Ele passaria despercebido, não fosse uma ligeira simpatia de relance, motivo de uma crônica de jornal, dessas que se confundem com contos, desses que aumentamos um ponto ou dois.

Se o Carnaval de Florianópolis mudou e, quiçá, continua a mudar, tão normal é a sensação nostálgica que esse fenômeno provoca. E, assim, para uns as lembranças dos carros de mutação, para outros memórias de pessoas que já nos deixaram e que, não por acaso, também se esbaldavam nas festas do Mercado Público e de outros tantos lugares à beira mar – porque os aterros ainda são adolescentes procurando uma razão de ser nesta Ilha.

Quando o repouso chega ao fim, aquele mesmo homem de barba cor de palha, um jeito assim meio boêmio / meio Machado de Assis, soergue o corpo um bocado dolorido e seu caminho vai se perder desta narrativa nalguma esquina da Felipe Schmidt, não sem antes deixar uma impressão de cumplicidade, uma felicidade íntima e sem explicação, razão mor destas mal traçadas.

> Crônica publicada no Jornal Notícias do Dia em 26/02/2009.

Travessa Ratclif


Aos turistas, a cidade dos monumentos, das praias agitadas, da praça XV de Novembro, da Ponte Hercílio Luz (um dia, quem sabe). A nós, nativos, moradores ou trabalhadores, visitantes diários e filhos adotivos desta cidade, as nuanças de uma Ilha sempre a ser redescoberta. Em praças escondidas, em becos de consumo ligeiro, em travessas e vilas convidativas à admiração encontram-se os momentos de um deleite urbano, como quem diz “hummm” após a refeição.

Lugar de rápida travessia (e não por acaso seu nome é praticamente uma derivação disto), a Travessa Ratclif no centro da Capital é um desses lugares simbólicos pela pequenez de seus metros, mas de enormes insinuações sociais no seio da urbe. Como não se assanhar com a beleza destes dias em que as horas voam ao som das conversas filosóficas de botequim? Então, alguém aparece com um violão, uma pasta de elástico repleta de músicas antigas – Nelson Gonçalves, Adoniran Barbosa – e a boêmia está feita. Manda avisar lá em casa que não me esperem para dormir, outro diz enrolando uma ou duas palavras. Sem pressa, a senhorita com olhos de tigresa, percebe sua presa municiada de uma simpatia inata e de alguns trocados necessários para comprar seus brincos, anéis e pulseiras de fabricação caseira.

E há os eventos culturais, gente que se diverte quando pensa nas artes de forma atenciosa, diferente destas políticas de ocasião mal geridas por governos passageiros. Em certa medida, à cultura caberia a mesma atenção do turismo – porque lucro não é somente bens materiais. E aquela travessa, esquecida numa paradoxal frequência cotidiana, é um sintoma de que essas grandes ideias de pequenos grupos, como as agitações culturais, não podem ser caladas com leis ou proibições infantis que, por vezes, já tentaram inutilizar a rua para as coisas mais divertidas da vida. Contação de histórias, varais literários, música ao vivo, projeção de filmes: há um ilimitado número de possibilidades que não permitem o esfacelamento dessa urbanidade presente em todos nós, citadinos que só conhecem o campo nas viagens do fim do mês.

Que mundo é esse escondido nas Travessas da cidade?, pergunta o filósofo de botequim, enquanto pede a saideira.

> Crônica publicada no Jornal Notícias do Dia em 05/02/2009.